O CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA
7 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W
Salvador é a cidade mais colorida de todo o continente sul-americano, em cores de pele, em cores de fachadas de edifícios, em cores de terra e de rochas, de árvores e de flores. Até o céu espanta pelo seu azul imaculado nos dias de sol e pela escuridão pesada das nuvens negras donde desabam aguaceiros medonhos sobre tudo quanto se ergue do solo. Coloridos são os altares das igrejas e os trajos rituais dos orixás do Candomblé. Os grafitti das paredes e tapumes, os colares de sementes, as fitas do Senhor do Bonfim laçadas aos turistas, as decorações dos berimbaus, são um espectáculo de imaginação colorida. Até os peixes, da garoupa à lagosta, copiaram do arco-íris as cores básicas e multiplicaram as variantes.
O mês de Junho é o mais festivo e colorido dos meses do ano: Corpo de Deus, Santo António, festa do solstício, São João e São Pedro batem todos os recordes; são as “festas juninas”, a celebração do Inverno. Todas estas festas são transposições dos festejos populares e tradicionais portugueses do velho continente para o espaço brasileiro, enriquecidas com a dinâmica própria das mesclas étnicas e da exuberância da criatividade dos trópicos. Não há terreiro de festa nem arraial que não esteja a ser minuciosamente preparado para os espectáculos do mês; não há serão que não levante o véu sobre um prenúncio do produto final, enfeitado de cores afeiçoadas a cada santo.
Viver a euforia das festas faz parte da identidade do cidadão bahiano. As manifestações festivas, onde se juntam o sagrado e o profano numa simbiose inextricável, são assumidas como próprias, independentemente da origem étnica predominante de uns ou de outros. Se os santos vieram do velho continente na memória e na identidade dos imigrantes, eles pertencem hoje a todos os que os adoptaram como referência religiosa ou profana, como pretexto de alegria e de celebração. As grandes festas populares da Bahia no tempo de Vieira eram mais diversificadas ao longo do ano e correspondiam aos grandes sermões que ele pregou: São José, Santo António, São Gonçalo, São Sebastião. A maioria das festas religiosas era antigamente de estrito ritual religioso pesado e desprovido de fantasias, triste e rígido, no âmbito do calendário litúrgico, hoje muito diluído com uma prática religiosa limitada a um número reduzido de devotos. Muitas igrejas católicas de Salvador nem sequer abrem ao Domingo, ou quando muito durante uma a duas horas. É evidente que são muitas, não serão as 365 como escreveu sem as contar o poeta e músico Caymi, mas são mais do que as necessárias para satisfazer a religiosidade dos devotos.
No final do século XVII existiam em Salvador, para além do clero regular, grandes comunidades religiosas: jesuítas, carmelitas, franciscanos, mercedários, capuchos, beneditinos, dispondo de conventos e outras instalações imponentes e fornecendo clérigos para o serviço religioso da cidade e dos engenhos do Recôncavo; a fartura de gente dedicada ao serviço de Deus, homens e mulheres, não era sinónimo de qualidade. Até os bispos se queixavam da abundância de religiosos. O Convento do Carmo (hoje uma Pousada do grupo Pestana) era o maior convento de carmelitas do mundo. Igrejas como a de São Francisco e da respectiva ordem terceira são de uma riqueza e de uma qualidade de execução que deslumbram qualquer forasteiro. Tanta riqueza e ostentação eram na altura exibições de fé e de poder, baseadas em outra hierarquia de valores que não a dos nossos dias. Vieira criticava: “Esta tua fé tão liberal, tão rica, tão enfeitada e tão cheirosa, não é fé viva: pois que é? É fé morta, embalsamada”.
Eram outros tempos, outros modos de se estar na vida e de
se identificar a uma história. O poder desmoronou-se, os valores passaram
de moda e inflacionaram, mas os vestígios desse modo de viver ainda
se aguentam de pé e servem de palco a outras manifestações
de outros poderes, de outras esperanças e alegrias, de desesperos e
de evasões, em busca de felicidade. A vida é criança
e o céu pode esperar.
Tinha um grupo de velhos, com cara de negros e de índios, jogando dominó
em silêncio às portas da igreja da Graça, batendo as peças
ruidosamente na mesa de plástico. Eu perguntei-lhes se sabiam quem
era a Catarina Paraguaçu que tem túmulo naquela igreja. “Sei
não, doutô. Mas não deve ter família, não,
que não vem cá ninguém rezá”.
8 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W
Paraguaçu era a filha de um chefe índio que acolheu, depois de um naufrágio, um português chamado Diogo Álvares Correia; o verdadeiro nome da moça era Guaibimpará. A história é pouco clara, mas parece que o homem, natural de Viana, viajava numa das muitas naus francesas que lambiam a costa, à procura de oportunidades para carregar pau-brasil, escravos, gatos bravos, macacos, papagaios e toda a espécie de novidades susceptíveis de entusiasmar os franceses. Corriam os anos de 1510, por aí. Reza a lenda que o português causou espanto ao matar um pássaro com um tiro de bacamarte, diante dos selvagens incrédulos. Pretendem outros que os indígenas o encontraram escondido entre os pedregulhos da praia e deram-lhe o nome de “moreia”, “caramuru” na língua deles, peixe que se esconde nas pedras. Daí a tornar-se um bom partido para a filha do chefe Tupinambá terá corrido pouco tempo. O certo é que o homem negociou uma posição confortável no meio indígena e impôs-se como um elemento pacificador na zona densamente povoada e movimentada da Bahia de Todos os Santos.
Em 1526 o Caramuru viajou para França, levando consigo a sua índia de estimação e uma comitiva de indígenas que foram apresentados à corte francesa em Rouen, causando grande admiração e espanto; o português Diogo André de Gouveia estava por perto e relatou o acontecimento a D. João III. A ideia romântica do “bom selvagem” terá decorrido de encontros como esse. A índia foi baptizada em Saint-Malo com o nome de Catarina Paraguaçu em 1528, sendo madrinha dela a mulher de Jacques Cartier, de nome Catarina; o registo de baptismo foi encontrado em Dieppe. Jacques Cartier, o descobridor do rio São Lourenço, que chegou ao Québec em 1534, tinha participado em viagens pela costa brasileira e tinha de lá trazido vários índios e índias para Saint-Malo, donde era originário. Não se sabe ao certo quando o Caramuru e a sua comitiva regressaram à Bahia; supõe-se que foi antes de 1530 e sabe-se que o casal teve pelo menos três filhos homens, Gaspar, Gabriel e Jorge, assim como pelo menos uma novena de filhas, com descendentes até aos nossos dias.Quando D. João III decidiu enviar para a Bahia o primeiro governador para pôr ordem nos negócios mal geridos do Brasil, acompanhado de quase um milhar de pessoas para construir uma cidade, acautelou a operação escrevendo com antecedência ao célebre Diogo Caramuru, para que ele preparasse os autóctones para o grande acontecimento. O titular da capitania, o rude Francisco Pereira Coutinho, tinha acabado morto e comido pelos indígenas.
Na verdade, as poucas dezenas de colonos portugueses que sobreviviam entre os indígenas da Bahia, as visitas regulares de navios isolados provenientes de Portugal, França e Espanha ao Recôncavo em cata de mercadorias, não afectavam a paz e a tranquilidade dos indígenas; mas a chegada de uma pequena frota (três naus, duas caravelas e um bergantim) com quase um milhar de pessoas podia ser encarada como uma séria ameaça, como uma invasão. O Caramuru, que morava naquelas terras há mais de 30 anos, desempenhou um papel preponderante na preparação da chegada dos colonos, assim como um genro seu (mencionado por Nóbrega) e merece um destaque especial na história da fundação de Salvador (1549) e da presença dos portugueses na zona. Morreu em 1557 e a sua esposa índia em 1589.
A história do Caramuru forneceu matéria para um poema épico, publicado em 1781 por um monge agostinho, frei José de Santa Rita Durão, nascido em Minas Gerais (1718-1784), mas que viveu quase toda a sua vida em Portugal. O poema, com dez cantos de oitava rima em decassílabos heróicos, à moda de Camões, é uma epopeia em verso para celebrar os pioneiros da terra brasílica e sobretudo para elevar a raça indígena à dignidade da nobreza. Foi o primeiro texto de um movimento literário romântico tipicamente brasileiro, denominado de Indianismo, que culminou com José de Alencar e Gonçalves Dias. O enredo vai acompanhar Paraguaçu até à corte de França, onde passa a fazer parte da grande nobreza do mundo civilizado, depois de trocar a sua identidade de indígena Tupinambá pela de uma cristã católica, falando a língua de um reino civilizado e assumindo um nome a condizer.
Nobreza merece túmulo, para memória, veneração e orgulho das gerações futuras; Catarina e Henrique têm o deles na igreja de Saint Denis, próximo de Paris, um monumento diferente dos demais, à altura da ousadia e da coragem com que a rainha-mãe de três reis enfrentou, depois de viúva, à sua maneira própria de matrona Toscana, a sociedade complicada e dividida do seu tempo. O casal está retratado em êxtase, numa cama, após o prazer do sexo. Assim, sem mais nem menos, aos olhos pudicos dos crentes, dentro de uma Igreja, sem que ninguém tenha ousado, ao longo de tantos séculos, por pudor ou moralidade, estender-lhes por cima um lençol. Desatinos da realeza!
Catarina Paraguaçu morreu velhinha, tem campa rasa e lápide mural na Igreja de Nossa Senhora da Graça, a primeira da Bahia, construída pelo Caramuru depois do regresso de França, em 1534. Ela é considerada a “mãe das mães” do povo brasileiro. Paraguaçu é nome de rio, o maior que alimenta a baía de Todos os Santos; em língua Tupi significa “mar grande” e é nome feminino.
11 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Visitas grandes a bordo, Sexta-feira passada, mal recebidas por um pobre coitado afectado por uma bronquite violenta. Sina traçada na palma da mão de quem teima, contra todas as profecias das ciganas, em ficar acordado sem motivo razoável. Coisa ruim que já aconteceu a outros. Foi a Academia de Letras da Bahia em peso, sob pretexto de Vieira, que invadiu o CHIC. Anunciava-se um fim-de-semana doloroso, sem poder substituir a garrafa de oxigénio nem partilhar pelo 10 de Junho os bons vinhos da nossa reserva de bordo, mas o apreço, a alegria e a amizade venceram. Por vezes é mais fácil bater no fundo do mar do que à porta dos vizinhos, porém aconteceu o milagre: pegaram em mim e ofereceram-me os melhores cuidados médicos disponíveis na cidade de Salvador. Quem tem amigos não morre na cadeia e se esses amigos são médicos só se morre na hora certa. Hoje deixei a garrafa de oxigénio e acompanhei o CuéCué no seu passeio-cocó, correndo ao seu lado e respirando o ar matinal da Ribeira, cheirinho de manga e de jaca; há fôlego para a conversa luso-brasileira no Pestana Bahia. Ainda há gente humana neste mundo e de nada serve camuflar as vergonhas.
De nada serviu ao príncipe regente D. João
ter à sua volta os oficiais do navio e as autoridades locais em fileira
cerrada, todos o viram, com a língua de fora, assinar os documentos
reais por cima das iniciais desenhadas a lápis no papel, porque o coitado
do fugitivo não sabia ler nem escrever. Isto aconteceu vai fazer 200
anos, coisa do passado, é para esquecer; só que hoje o país
continua com 10% de analfabetos adultos primários, mais outros tantos
analfabetos funcionais e ninguém parece envergonhar-se com a situação.
O rei de hoje sabe ler e escrever. Parece piada mas não é: já
era vergonha em 1808. Há quem ache que os coitados vão morrer
e o problema resolver-se-á pela própria natureza; por isso o
rei e todos os seus mordomos dormem tranquilos. Por essas e tantas outras
é natural que muito poucos entendam o que estamos aqui a fazer e que,
afinal, ninguém nos encomendou. Por isso aceitamos o sofrimento e o
risco, o carinho e a amizade dos nossos anfitriões, sem vergonha, porque
até sabemos ler, escrever, falar acertado, tirar retratos e fazer cinema;
também sabemos navegar num barco à vela, como no tempo de Vieira
e do príncipe que não precisava de saber ler para se empanzinar
de frango assado. Ele há coisas que não mudam nunca, mas hão
de mudar um dia!
Aos amigos de Salvador e à companheira distante
Falasse eu as línguas dos homens e dos profetas, não tivesse amor eu seria apenas um gongo barulhento, um címbalo incómodo.
Fosse eu poeta inspirado e conhecesse todos os mistérios
do conhecimento, tivesse uma fé de derrubar montanhas, não tivesse
amor eu não seria nada.
Distribuísse pelos pobres toda a minha riqueza, entregasse o meu corpo
para ser queimado, não tivesse amor de nada me serviria.
O amor é paciente, acolhedor, sem ciúmes, sem vaidade, sem orgulho
nem egoísmo. Não age por interesse, não se irrita, não
tem maldade.
Não se compadece com a injustiça, regozija-se com a verdade.
Sofre tudo, acredita em tudo, espera e suporta. O amor nunca esmorece. As
inspirações desaparecem, as línguas morrem, o conhecimento
passará porque a inspiração e o conhecimento são
coisas passageiras.
(…) Agora restam-nos a fé, a esperança e o amor; destas
três, a maior de todas é o amor.
São Paulo, 1ª carta aos cristãos de Corinto, no ano 57 da nossa era.
13 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Hoje é dia de Santo António em todo o mundo e feriado religioso em muitas terras onde se fala português. O santo é tão popular que é reclamado por dois países como santo nacional. Salvador tem duas igrejas das maiores que lhe são dedicadas, uma das quais, a de Santo António da Barra, onde Vieira pregou em 1638, desempenhou um papel importante nas guerras contra os holandeses. Hoje, a alvorada do segundo comando naval, mesmo ao nosso lado, não se fez com o apito do costume mas com tiros de canhão, por ser dia de Santo António. Por onde se expandiu a presença portuguesa ficaram vestígios duráveis da passagem, mesmo que efémera, de uma cultura poderosa, muitas vezes transmitida por gente rude e desesperada.Ouvi um dia um reputado conferencista dizer que o empreendimento marítimo e colonial português tinha sido uma série de actos de coragem e de loucura, que só um povo desesperado poderia ter realizado. Acrescentava que toda essa arrogância era de facto uma opção de senhores feudais fora do tempo, senhores da guerra que arrastavam com eles centenas de desesperados para satisfação das suas próprias ambições. Não era isso que me tinham ensinado na disciplina de História, não era esse o teor dos versos de Camões, nem era isso que se apregoava nas notícias que vinham da terra, muito menos o que dizia o hino nacional que me tinham ensinado na escola: heróis, nobres, valentes e imortais. Estávamos no início da década de ’60, dizia-se mal de Portugal por toda a parte e a palestra que eu ouvia tinha lugar na Bélgica, numa universidade onde estudava gente de todo o mundo, que até encontrava prazer em ouvir tão maldosas insinuações.
Quando os professores ensinam a história nas escolas não podem passar o tempo a contar anedotas nem pormenores de somenos importância; além do mais são funcionários públicos e, por convicção ou por conveniência, afeiçoam-se a respeitar as ideias de quem lhes paga e que vigoram na praça, para que sirvam de orientação e de norma à juventude. O tempo de escola não dura sempre e há que escolher o que se diz e o que se não faz. Com curiosidade e paciência para vasculhar factos e ideias, acabei por saber que de facto, enquanto as caravelas do Infante abarrotadas de marinheiros ignorantes e de condenados arranhavam a costa africana, o país debatia-se com pestes e epidemias medonhas. Entre a segunda metade do século XIV e finais do século XV a população do reino diminuiu, tal foi a mortandade; aproximava-se a aventura da Índia e o país era dizimado por epidemias que obrigaram a evacuar cidades e vilas: 1479, 1485, 1489. Em 1524 e 1569 já se povoava o Brasil e o glorioso mártir São Sebastião, advogado celeste contra a fome, a peste e a guerra, era solicitado por todo o reino. E quando morreu o rei do mesmo nome surgiu nova epidemia por todo o reino, atingindo centenas de milhares de vítimas.
À escassez de mão-de-obra resultante das epidemias há que acrescentar a penúria provocada por decisões político-religiosas inoportunas, expulsando do reino uma população competente e eficaz, e ainda pelos maus anos de colheita. Era preciso muita coragem e muita loucura para encher naus e caravelas com tão pouca gente válida que sobrava, para satisfazer a ambição desmedida de alguns. Os lucros eram chorudos, cobriam os riscos e feitas as contas valia a pena. Mas valia a pena só para alguns, porque no auge das especiarias da Índia, do pau-brasil e do açúcar de Pernambuco o povo estava mais pobre do que nunca e era no meio desse povo ignorante e desesperado que se arrumava a marinhagem necessária para as tripulações das naus e a ocupação das terras. E ainda se esvaziavam as prisões e se caçavam uns tantos bêbedos às portas das tavernas, na maré das largadas.
Não terá sido assim tão simples e não é justo resumir tão importante fase da nossa história em “coragem e loucura de um povo desesperado”. Coragem não faltou a muitos marinheiros, capitães e armadores; loucura houve quanta bastasse por parte dos investidores gananciosos e o desespero era tanto pelas terras do reino que até não faltava quem preferisse fugir para o desconhecido e ficar por lá. Tudo bem contado e ponderadas as coisas, houve realmente um pouco de tudo na grande epopeia por tantos invejada; mas nem todos eram corajosos, nem todos eram loucos e o desespero não rondava por toda a parte a toda a hora.
Quando se ensina a história de um povo a uma nova geração de cidadãos, o poder instituído não se mantém isento de nobres intenções: há que educar as novas gerações na auto-estima, no respeito e admiração pela ordem estabelecida, evitando equívocos e confusões desnecessárias. Só que pode acontecer algo de muito contraproducente neste esquema, quando os cidadãos crescem e verificam que lhes ensinaram apenas os pedaços mais saborosos e esconderam nas prateleiras umas tantas amarguras. E como a curiosidade não tem limites e o poder estabelecido tem cada vez menos o monopólio das verdades, as amarguras acabam por cair na sopa de todos os dias como qualquer mosca. Basta uma mosca para mandar para o lixo a mais apetitosa das sopas.
Um dia destes, ainda nos aparece alguém a contar umas tantas amarguras sobre as nossas gloriosas façanhas mais recentes e a sua panóplia de heróis: o 25 de Abril, a Democracia, a Expo 98, o Euro 2004… não haverá mais Santo António que nos valha e lá vai mais uma panela de caldo para os bacorinhos. Pelo meio de tanta epopeia ainda os espíritos irrequietos vão acabar por questionar a coragem de alguns, a loucura de muitos e o desespero dos milhões de excluídos que acendem velas ao santo mas nem sequer aprendem a cantar o hino nacional. Estes, quando lhes aparece uma barata no caldo, jogam-na fora e comem o caldo na mesma. Que remédio!
14 de Junho de 2007, Salvador da Bahia
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Terminámos as gravações exteriores para a TVEducativa
sobre Vieira, textos meus, realização do Luís, artistas
bahianos, pessoal técnico e produção da estação
de televisão do Estado. Como fui forçado a proteger-me da agressão
de vírus inoportunos, estive longe dos palcos da acção
e apenas vou participar na montagem final que se inicia hoje. Vieira viveu
nesta cidade durante 42 anos em duas fases da vida: a da juventude até
ao início da sua actividade missionária e de pregador, entre
1615 e 1641 e a da velhice, entre 1681 e 1697. Dos seus mais de 200 sermões,
cerca de 30 foram pregados nesta cidade, a maior parte deles na primeira fase.
Quando regressou à sua cidade de eleição aos 73 anos
de idade, contrariado e inconformado por ser obrigado a residir numa casa
de campo destinada aos padres idosos da Companhia, desenvolveu uma intensa
actividade de escrita tanto ao nível epistolar como na preparação
da edição dos seus sermões, planejando ainda o que ele
considerava a grande obra da sua vida, a História do Futuro, sob a
forma de um novo texto que intitulou Clavis Prophetarum, a Chave dos Profetas.
Ainda lhe sobrou tempo para se meter em brigas pesadas e levar as suas opiniões
até às últimas consequências, com todo o ardor
dos seus anos entusiasmados de luta por causas impossíveis. Viveu e
morreu lutando por ideais nobres; ele foi o maior português da sua geração,
quiçá de todos os tempos.
Passou pelo Centro Náutico onde estamos a chama dos Jogos Panamericanos, que deu uma volta pelo forte de São Marcelo antes de subir ao Terreiro de Jesus, espaços emblemáticos da origem e da identidade da cidade de Salvador. À passagem pelo Terreiro foram lembradas as grandes personalidades que por aqui passaram; as primeiras nomeadas foram o Caramuru e Paraguaçu, Tomé de Sousa, Nóbrega e Vieira.
Fizemos um magnífico trabalho em Salvador, reconhecido e acarinhado pelas instituições brasileiras que se dedicam à cultura e à educação, apoiados pelos amigos que sempre nos incentivaram e que nos deram pedaços do seu tempo e algum do seu dinheiro para nos guardar vivos e activos. Na hora dos preparativos para deixarmos esta cidade não temos palavras para lhes agradecer, apenas uma grande amargura por não podermos retribuir quanto desejaríamos. Anunciam-nos ainda uns tantos programas de convívio para o fim desta semana, mais ainda umas visitas de gente do interior que vem de propósito, entusiasmada com o primeiro programa da TVE.
Tivemos um convite que muito apreciámos da Casa dos Açores, onde todos os portugueses da Bahia regularmente se acalentam matando saudades das sardinhas assadas e do cozido à portuguesa e um apoio sustentado da Câmara de Comércio Portuguesa no Brasil/Bahia, instalada no Hotel Pestana que também nos presenteou com uma recepção e nos ofereceu uma estadia para quando for necessário em qualquer um dos seus hotéis. Foram muitas as pessoas que nos veicularam pela cidade e fora dela, em especial Abel Travassos, de partida por estes dias para Portugal, ajuda preciosa para quem desconhece a geografia local e não se entende com o tráfico de uma cidade de 3,5 milhões de habitantes.
Se levarmos a cabo o nosso trabalho, não deixaremos de recompensar todos estes nossos anfitriões no próximo ano com o produto das nossas ambições: um livro ilustrado sobre o itinerário de Vieira, acompanhado de um DVD e outras produções adequadas à comemoração de uma data importante. Teremos sofrido por uma causa que achamos nobre, no meio de muita indiferença e de alguma ignorância, como lhe aconteceu a ele. Teremos enfrentado vendavais, tormentas e calmarias, como ele, com um caranguejo e um punhado de farinha. Até fomos vítimas dos piratas dos tempos modernos, só nos resta evitar de naufragar, nisso não queremos imitá-lo.
15 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Preparativos para mais uma largada, maré de mecânica. Todo o aparelho vélico do CHIC já foi revisto, a vela grande restaurada para aguentar a navegação ao longo da costa brasileira, reparados alguns percalços com as borrachas das gaiutas, substituídos os cabos desgastados, verificadas as roldanas e a tensão dos brandais. Faltava completar a revisão do gerador e introduzir-lhe algumas modificações para reduzir o ruído, desmontar o piloto automático que pifou entre Fernando de Noronha e Salvador e naturalmente mudar o óleo e os filtros do motor. Iniciei a tarefa pelo motor, por ser a mais suja e a mais fácil; foi necessário substituir a correia do alternador, demasiado gasta, resultado de uma tensão inadequada, assim como o vedante do filtro de gasóleo. O empanque do veio deixa escorrer uns pingos, mas vou deixá-lo tal qual pelo momento.
Depois lancei-me na tarefa mais ingrata e incerta de abrir o piloto automático, coisa que fazia pela primeira vez, sem saber se os problemas eram da mecânica ou da electrónica. Felizmente eram apenas mecânicos, uma peça quebrada, facilmente substituída por uma semelhante ajustada com um trabalho de lima e de alicate de corte. Funciona. O último desafio à minha competência mecânica era o gerador, desmontado há um par de semanas e modificadas algumas peças graças ao génio do amigo de Arganil, o arquitecto Abel Travassos. As peças do alternador são de origem italiana, o motor é chinês, assim como os acessórios, desde o invólucro até aos suportes, incluindo todos os parafusos, porcas e cablagem. Os problemas são mais que muitos, todos tão simples quanto difíceis de resolver.
As peças chinesas de fundição em alumínio e plástico são de má qualidade, quebram facilmente, o mesmo acontecendo com os parafusos que partem ao desapertar, enquanto as cabeças se desmancham com as chaves Allen. Tarefa ingrata de furar os parafusos partidos, introduzir a contra-rosca para os sacar fora, refazer as roscas originais e substituir os parafusos, tudo com um cuidado cirúrgico para não estalar as peças fundidas. Produto chinês é bom e barato, mas peca pela má qualidade dos acessórios: quando superarem este problema haverá concorrência brava no mercado. As idas e voltas em cata de parafusos e o trabalho de substituir as miudezas levaram mais tempo do que todo o trabalho de manutenção do barco e custaram mais caro do que as peças. O gerador está inteirinho no seu lugar, pronto a funcionar, mas falta ainda encontrar um tubo para o retorno do gasóleo que liga o injector ao depósito, que foi mudado de lugar; o dito tubinho só se vende numa loja especializada do fim do mundo, para os lados do Senhor do Bonfim. A viagem será mais cara do que a peça, mais uma vez.
A mecânica sempre foi a minha distracção de luxo e a minha terapia. No palmarés das minhas vitórias sobre motores tem um Mercedes 300 SEL de 1960, uma das mecânicas mais perfeitas jamais saídas da Daimler: 6 cilindros a injecção, 3.000 cm3, compressor na culassa (o veículo tinha suspensão pneumática!), a cambota mais perfeita que jamais equipou um veículo automóvel. O motor equipou também o célebre Mercedes 600, versão de 1963. A gasolina, naturalmente. Outra vitória sobre válvulas e pistões foi um motor de Tigger Moth dos anos 40, que depois de refeito voltou a voar com total segurança e fiabilidade. No domínio marítimo aconteceu ter que tirar um pistão a um Alpha e fazê-lo funcionar apenas com 5 dos 6 cilindros, o que não impediu de navegar com segurança durante mais de 6 meses, entrando e saindo dos portos na maior das normalidades. Na viagem do ano 2000, no regresso do Brasil, por causa de gasóleo contaminado abastecido na Mauritânia, tive que desmanchar no mar as bombas de injecção e os injectores do motor principal e do gerador do Barconauta. E tudo voltou a funcionar. Uma vez ou outra aconteceu sobrarem porcas e parafusos que guardei como recordação.
Para umas férias de mecânica estou sempre disponível, desde que os destinos não sejam de injecção electrónica nem de turbo-compressores; na realidade dou-me bem apenas nos “resorts” atmosféricos, suportando no máximo uma turbina de ar forçado. Quanto mais convencionais melhor, entre um monocilindro a dois tempos e um 19 cilindros em estrela, versão segunda guerra mundial ou guerra da Coreia. Só um resistiu às minhas investidas: aquele Rolls Royce estacionário que tocava um alternador de 200 KW a 400 rpm e que eu queria transformar em motor marítimo. Não havia chaves que dessem conta dos parafusos das culassas. Virei-o ao contrário, tirei-lhe a cambota e os pistões, todos os acessórios, voltei às culassas e acabei carregando as peças para a sucata. Muitos quilos de ferro da melhor fundição, delicadamente usinados. A cambota era uma peça de museu, para os apreciadores deste tipo de arte. Pena que não dava para colocar em cima de uma mesa de salão, com os seus mais de 200 quilos de aço temperado e um volante de 105 de diâmetro.
A mecânica é uma arte muito próxima da poesia, com ritmo, métrica e rima. Quando eu for grande hei-de montar um Clube de Mecânica, com mais alguns aficionados da perfeição.
16 de Junho de 2007, Salvador da Bahia
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São dias fartos em espectáculos musicais, no Terreiro de Jesus,
no Pelourinho, no Mercado Modelo. Música clássica, orquestras,
e sobretudo muitos espectadores, praças cheias, o que prova que os
brasileiros não se emocionam apenas com a cantoria nordestina, o baião,
o chorinho, o forró, o samba e a bossa nova. Há para todos os
gostos: Watermusic and Fireworks de Haendel, a Heróica de Beethoven,
O Relógio de Haydn, o Concerto de Aranjuez de Joaquin Rodrigo. Depois
dos tiros de canhão e dos estouros dos fogos de artifício, outros
géneros de harmonia revitalizam o cérebro e o ritmo cardíaco,
antes das folias do São João.
Ontem foi dia de acertar o relógio com a Universidade Federal da Bahia, onde me levou pela mão o prof. Fernando Peres, um especialista em Gregório de Mattos e não só, ex-director do Centro de Estudos Baianos, hoje dirigido pela professora Kátia Custódio, proveniente do departamento de Comunicação, destacada para este centro universitário de investigação e de publicações. A troca de ideias e de experiências pôs-nos logo de acordo sobre uma constatação inquietante: as universidades passaram de catedrais do conhecimento a capelinhas de sabichões, onde os departamentos não se falam, desconhecem-se e até se odeiam. Parece que o conhecimento em língua portuguesa carece de palavra e de emoção, necessitando de uma séria intervenção de carácter terapêutico, no que toca ao autismo. Sinais dos tempos, sintomas do nosso atraso crónico no relógio da história moderna, neurónios em confusão.
Quando os professores ensinavam em Paris, Lovaina, Bolonha e Salamanca, criavam a universalidade do saber; a palavra universitas significa o intercâmbio entre todos os domínios do saber. Antes mesmo de surgirem os primeiros centros universitários cristãos, já existiam Escolas da Sabedoria em Bagdad, Córdova e Fez, no mundo islâmico, onde se ensinavam todas as ciências, dois séculos antes da primeira universidade cristã, a de Bolonha. Moisés Maimónides fazia autópsias clandestinas em Toledo, Descartes também as fez em Leiden sem precisar de se esconder, só que passaram-se quase 500 anos entre as escapadas dos dois médico-filósofos. O nosso Santo António, no seu itinerário místico e intelectual, passou por um desses centros de sabedoria, a cidade de Fez e não foi para lá com a intenção de converter os muçulmanos. A ciência ocidental nasceu na península Ibérica, viajou por toda a Europa nos alforges dos peregrinos de Santiago e até aos confins do mundo civilizado graças às caravanas e às naus do comércio. A biblioteca califal de Córdova possuía, no século XI, mais de 400.000 volumes catalogados. Foi necessário esperar pelo século XIX para voltar a encontrar outra biblioteca com igual número de volumes, a British Library de Londres. No vaivém das caravanas do conhecimento, sacudida a poeira das sandálias dos peregrinos, nas largadas e arribadas das naus da pimenta, nem sempre o fluxo compensou a ressaca.
Damião de Góis sugeriu a D. João III que convidasse Erasmo para ensinar em Portugal e o rei, apesar de seriamente criticado pelo humanista de Roterdão, concordou. O convite não chegou a ter efeito dada a indisponibilidade de Erasmo; chegou outro humanista, Clenardo, que passou pelas passas do Algarve em Évora e em Braga para fazer o seu trabalho e não teve melhor sorte em Espanha. Damião foi vítima do fanatismo e da ignorância da nossa gente e morreu à paulada, depois de perseguido, espoliado e reduzido à miséria. É o destino que o país tem reservado aos melhores dos seus. Erasmo ficou-se por Basileia e safou-se de um destino trágico; em Portugal poderia ter acabado numa das primeiras fogueiras da Inquisição. Mas porque será que a história de Portugal está tão cheia de tragédias vergonhosas? Será mesmo que isto não muda nunca? Continuamos condenados a ser os ”cafres da Europa” de Vieira?
Um dia, um poeta que também sabia cantar apareceu
num lugar selecto e cantou poesias acompanhado do seu violão, instrumento
de gente pobre e de baixa condição. Chamava-se Catulo da Paixão
Cearense e um outro poeta do tempo do desespero, muito estimado pelos portugueses
de hoje afeiçoados às modas, considerava que ele era o único
escritor de língua portuguesa que merecia o prémio Nobel. Foi
Fernando Pessoa, num intervalo de lucidez. Joaquin Rodrigo esperou mais de
meio século para que o seu concerto merecesse as honras dos palcos
selectos, por causa do violão. A emoção saiu das unhas
de Narciso Yepes; foi preciosa a ajuda de um cantor popular de sucesso efémero,
Richard Antony. Ao escrever estas linhas estou a ouvir Yepes, tocando violão
no Concerto de Aranjuez com a Orquestra de Câmara de Londres, no salão
aconchegado do CHIC, por causa da chuva que cai torrencialmente lá
fora. Chuva pesada, bem caída e bem molhada, chuva brava da Bahia.
Sempre há coisas que mudam, afinal. Compaixão pela ignorância,
luz vermelha para o desespero!
17 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W
Gentes, não creiam não que em meu canto haja sequer um reflexo
de vida!
Oh não! Antes será talvez uma queixa de espírito sábio,
Aspiração do fruto mais perfeito,
Ou talvez um derradeiro refúgio para minha alma humilhada…
Me deixem um canto apenas, que seja este canto somente,
Suspirar pela vida que nasceria apenas do meu ser!
Porque meu irmão pequeno é tão bonito como o pássaro
amarelo,
E eu quisera para ele o sabor do meu próprio destino
A projecção de mim, a essência duma intimidade incorruptível…
(…)
Chora, irmão pequeno, chora
Cumpre a tua dor, exerce o rito da agonia.
Porque cumprir a dor é também cumprir o seu próprio destino:
É chegar àquela coincidência vegetal
Em que as árvores fazem a tempestade berrar.
Como elementos da criação, exactamente.
Mário de Andrade, 1931
Escutando o Bolero de Ravel em domingo de chuva, aguardando que alguma coisa aconteça sem perturbar o destino da criação nem a alegria sublime do Criador.
18 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Há três tipos de barcos de recreio nas marinas por esse mundo fora: os estacionários, os papa-léguas dos oceanos e os que redescobrem o mundo conhecido. Os primeiros estão limpinhos, vistosos e arrumadinhos, cromados e luzidios, verdadeiros pubs flutuantes onde os seus usuários se deliciam nos tempos livres, convivendo sem riscos nem sobressaltos com as criaturas de estatuto social aparelhado e adequado às circunstâncias. São os mais numerosos, os que verdadeiramente alimentam as marinas. Os segundos são verdadeiras máquinas de esticar panos e torcer cabos, construídos em materiais sofisticados, armados de cabrestantes poderosos, para gente que tem muito pouco tempo para percorrer muitas milhas, que delira com a velocidade e as ventanias nos limites do razoável. Finalmente tem os outros, construídos para os inconformados que fazem do seu barco um ponto de observação do mundo, com suas gentes, suas danças e feitios, rumando para destinos diferentes dos habituais, ao encontro das criaturas. Carregam muita tralha no convés, procuram a autonomia e a segurança, navegam por paixão pelos espaços distantes, tentam evitar as tormentas e chegar felizes ao próximo ancoradouro, com suas âncoras e correntes enferrujadas de tantos fundos salgados. Navegam muitas vezes em família, mas também há os solitários e os apaixonados pelos espaços onde quase ninguém se aventura. São uma espécie rara de “cidadãos do mundo”.
Marinas e ancoradouros são para os navegantes de todos os gostos o ponto de encontro, onde se obtém a mais credível informação sobre rotas e destinos, onde se partilham emoções e paixões, onde se restauram as forças e se domam os medos. Uns largam, outros chegam, todos têm qualquer coisa para dar; ninguém fica indiferente ao gesto de largar a última amarra, de ver os companheiros de alguns dias, que partilharam o nosso pão e o nosso vinho, que nos deixaram um CD de música, um búzio, uma aguarela, um retrato, fundirem-se no horizonte, quem sabe para sempre. Nos encontros fugazes todos fazemos qualquer coisa uns pelos outros e todos juntos reinventamos um pedaço do futuro. Guardamos a esperança de um dia nos reencontrarmos num cais qualquer, antes do encontro enigmático e luminoso do derradeiro cais.
Didier largou ontem antes do anoitecer, solitário, com seu cachorro rafeiro, entre duas bátegas de chuva, no seu barco à vela de 9 metros. Quis aproveitar estes dois dias da frente fria para correr à frente das rajadas de sudeste rumo às Caraíbas, para depois ganhar o Pacífico via Panamá e depois… Ficámos todos com saudades de um companheiro culto, alegre, generoso, cheio de vida e de ambições no dia em que festejava 72 anos de vida. Levou uma das garrafas da nossa reserva, um Dão da Quinta da Falorca, para um dia se lembrar da gente, entre duas borrascas.
20 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Quando Charles Darwin escreveu o seu Diário de Bordo (The Voyage of the Beagle), a sociedade puritana do tempo escandalizou-se com as suas observações, ao ponto da comunidade científica britânica o apontar como dissidente e inoportuno; era jovem e inexperiente, razão ainda maior para ser censurado e apontado como um perturbador da fleumática tranquilidade das consciências puras. Quando morreu, aos 73 anos, em 1882, tinha vendido mais de um milhão de exemplares. Revoltou-se contra a iniquidade e a mentira, a insolência dos ignorantes poderosos, não cedeu às convenções nem pactuou com a mediocridade. Vieira também não e sofreu por isso; os próprios colegas de Companhia deixaram-no cair e estavam prontos a sacrificá-lo no pódio dos pactos assumidos. Quando o feriam na sua vaidade ele desabafava em berros ferozes que se ouviam até nos púlpitos mais sagrados e na presença da divindade una e trina exposta à adoração dos crentes. Quando o mandaram calar ele calou-se, inconformado e revoltado, para mais tarde largar a palavra em cachoeiras de metáforas e arrancadas de verbo sarcástico.
Dizem os nordestinos que o homem de verdade, o cabra-macho do sertão, deve saber berrar no momento oportuno, como o bode, só não deve chorar no momento do encontro com a onça caetana, a figura armorial da morte. O berro do bode ouve-se muito ao longe no silêncio do sertão, incomodando a boiada, os vaqueiros e a própria onça malhada que se balança e lambe nos galhos da aroeira.
Meu sangue, do pragal das Altas Beiras
Boiou no mar vermelhas caravelas:
À nau Catarineta e à Barca-Bela,
Late o Potro castanho de asas negras.
E aportou. Rosas de ouro, azul chaveira,
Onça-malhada a violar cadelas,
Depôs sextantes, astrolábios, velas,
No Planalto da pedra sertaneja.
Hoje, jogral cigano e tresmalhado,
Vaqueiro de seu couro cravejado,
Com medalhas de prata a faiscar,
Bebendo o sol de fogo e o mundo oco,
Meu coração é um Almirante louco
Que abandonou a profissão do mar.
Ariano Suassuna, 1980
21 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Não tentem entender tudo o que eu escrevo; contentem-se de ler e saborear como se abrissem uma garrafa de vinho desconhecido e de repente, “não mais que de repente”, sentissem assim como uma emoção, um sentimento de serenidade, revolta ou raiva que vos enchesse a boca de mel ou o estômago de fel. Uma coisa estranha, uma espécie de pecado gostoso sem cotação nos programas de acesso ao inferno. Estamos a sul do equador, deixámos o pecado do lado de cima!
”O tempo é abundância e a vida é criança” escrevia um poeta das nossas bandas há quase mil anos, ainda a língua portuguesa não existia; mas existiam a emoção, as lágrimas e a saudade, muito antes da língua ser codificada pelos gramáticos. E o que conta na vida é a emoção e o imaginário, parâmetros de identidade da espécie humana muito anteriores a qualquer forma codificada de inteligência, de lógica racional ou de moral. Esta é uma linguagem que só está ao alcance dos poetas e dos matemáticos, mas que os inocentes enxergam; como a embalagem do produto não está padronizada, é coisa que não se cata nas lixeiras dos pinhais do nosso país, tão ricas em detritos humanos e domésticos.
“De repente da calma fez-se o vento” e os moinhos chiaram nos rodísios, as mós crepitaram no roçar do granito picado, triturando o grão caído das moegas polidas por lustros de maquias, a farinha escorreu como esperma divino, “silencioso e branco como a bruma” . A história dos povos e da humanidade sempre esteve intimamente ligada ao vento, pelos moinhos e pelos navios. Seria pecado violar os desertos com caravanas se não houvera à chegada colinas com moinhos e um porto de abrigo para os navios. Era assim em Sídon e Tiro, em Gadès, o destino do fugitivo Jonas, no país de Ofir, terreiro imaginário dos negócios de Salomão, em Samarcanda de Tamerlão e em Calecut…
Ontem foi serão especial a bordo do CHIC, “fez-se da vida uma aventura errante”, assim de repente, sem esperar, apenas porque aconteceu. Vieram e deixaram-nos a alma em festa, quando já só esperávamos por soluções radicais, gente que há um mês não nos conhecia de parte nenhuma, assim “de repente, não mais que de repente”. Aconteceu a Vinícius de Morais qualquer coisa assim a bordo de um navio que o levava para Inglaterra em 1938. Não vale a pena sequer tentar entender, são coisas de poetas e de matemáticos, que não se encontram nos pinhais. Aparecem às vezes nos grafitos das paredes abandonadas, pelo meio de uma letra de canção, nos pregões dos garotos-sanduiche, coladas às ementas dos restaurantes populares, ou simplesmente nos olhos brancos de um cego cantador que bate muito de levezinho com a sua bengala no tronco de uma mangueira, para lhe sentir a alma.
22 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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A história de Caramuru e Paraguaçu faz parte da génese da nação brasileira, da identidade de um povo que nasceu de um encontro entre autóctones e forasteiros e que cresceu com pactos de desejo e investidas de ambição ao longo de cinco séculos de transformação profunda e de criatividade. A história do Brasil não tem igual nem parecido em nenhuma parte do mundo e disso os brasileiros são, com todo o mérito, conscientes e orgulhosos. Em Salvador, a Roma Negra do continente americano, o espaço geográfico e antropológico a partir do qual se formou a identidade brasileira, a originalidade deste percurso histórico é mais evidente do que em qualquer outra região. A festa de São João, que atinge o auge da euforia no Nordeste e é celebrada em mais de 300 municípios, é mais uma oportunidade para exibir a vaidade de pertencer a uma grande nação; na Ribeira, uma estátua do místico percursor do Messias está sumariamente vestida de verde e amarelo.
Para que não fique em suspenso um possível malentendido no meu texto passado sobre Paraguçu e Caramuru, quero esclarecer que o rei de França que terá recebido o casal “luso-brasileiro” em Rouen não foi Henrique II, mas o seu pai Francisco I, o grande rival de Carlos V e um dos mecenas de Leonardo Da Vinci. Quando falo no fim do texto do túmulo de Henrique e Catarina, faço-o referindo-me ao enredo do poema de Santa Rita Durão. De facto Henrique II reinou a partir de 1547, quando o casal luso-índio já estava na Bahia; também houve em 1550 uma entrada espectacular do rei em Rouen, com um grande aparato de índios brasileiros, fornecidos e treinados pelos armadores afim de darem uma bela imagem dos “bons selvagens” da França Antárctica, mas não foi nessa parada festiva que se exibiram o Caramuru e Paraguaçu. E naturalmente que a madrinha de baptismo da Paraguaçu nunca podia ter sido a “rainha” Catarina de Médicis, nascida em Florença em 1509. Fantasias bem intencionadas de um monge poeta obstinado em seguir a moda francesa!
O romance em verso de Santa Rita Durão é uma das primeiras tentativas, um tanto ingénua, de dignificar o indígena em língua portuguesa, de lhe atribuir uma nova identidade reconhecível, quando em França o Romantismo já tinha divulgado a ideia do Bom Selvagem, promovida pelos negociantes do exotismo que se serviram dos filósofos “esclarecidos” para aumentarem a sua riqueza e o seu prestígio. O comércio, a cultura e a religião sempre cresceram de mãos dadas, em todas as épocas da história; o grande desafio da burguesia e o seu maior sucesso foi deixar entender que os filósofos e os poetas esclareciam o mundo e traçavam o seu destino. Hoje a nova burguesia, que não precisa nem entende de poetas nem de filósofos, aplica os mesmos princípios, velhos e corroídos mas eficazes, com os políticos. Sucesso garantido!
23 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Basta um trovão para estremecer o corpo, mas não há raio que sacuda uma mente entorpecida. Só mesmo uma escuridão intensa e durável permite enxergar o essencial, invisível aos olhos. A noite escura de São João da Cruz (“a noite sossegada, ao lado dos levantes da aurora, a música calada, a solidão sonora, a ceia que distrai e enamora”), a nudez da consciência de Ibn Al Arábi, a loucura da indiferença sofredora de Lucrécio são alguns exemplos da cegueira metódica que abala as estruturas do pensamento humano, na busca de uma identidade profunda onde se fundem a genética celular, os esquemas matemáticos e geométricos da organização da inteligência. Não podemos abordar a temática da identidade através de superficialidades acomodadas nos altares das capelinhas de montanha nem nos nichos das alminhas dos palacetes do saber.
A questão ética e filosófica da identidade pode ser abordada, nos nossos dias, através de um paradigma muito simples criado por um artista que passou grande parte da sua vida atormentada à procura da sua própria identidade: “Que somos, donde vimos, para onde vamos”, palavras escritas à maneira de grafitos num quadro pintado por Gauguin em Tahiti. Esta abordagem serve apenas como um ponto de partida didáctico para esclarecer ideias, há quem prefira outros caminhos. Nas paredes velhas das ruas de Salvador, os artistas de fim-de-semana exibem técnica e inspiração na definição da identidade, enfrentando a escuridão da indiferença e o silêncio do saber instituído. Os seus riscos vadios nas paredes em decomposição gritam a paixão pela vida, o delírio dos desejos consumados e das paixões sofridas.
As paredes vão ruir e as pinturas serão despedaçadas em moléculas insignificantes de cor e de pó; o artista terá rumado para outros destinos à procura de oxigénio e de luar para o seu corpo dolorido e resfriado por causa das enxurradas da indiferença. Vai haver silêncio e escuridão, é festa de São João e vai ter outras festas com fogos e cantigas que deslumbram as crianças e entristecem os palhaços, por causa dos estouros e das luzes artificiais, por causa das roupas com que se vestem os fidalgos e das pipocas que saciam uma felicidade embalsamada, por causa dos mendigos de todas as cores, rolando a bebedeira na calçada que cheira a mijo e a cerveja.
25 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Há sempre qualquer coisinha a fazer a bordo de um barco para melhorar
o conforto e a segurança dos andarilhos do mar; por vezes são
uns tantos pequenos detalhes que mudam completamente o ambiente de uma jornada
ou até de uma travessia. O desenho estava feito e revisto desde Cabo
Verde, calculado o material, faltava apenas encontrar pelo caminho quem executasse
a obra. Como nas marinas encontramos sempre alguém que se propõe
resolver todos os nossos problemas, porque é da terra e sabe onde se
encontra a cachaça, foi ao primeiro esperto que apareceu que solicitei
um orçamento, desenho na mão, lista de material, tudo certinho.
A proposta não tardou, custava 500 reais, uns 190 euros.
Também não tardou a contra-proposta, foi na
hora, um convite gentil mas muito firme para dar várias voltas à
primeira rotunda que encontrasse, que é ali mesmo, à volta do
Mercado Modelo. Apareceu um segundo candidato com outro orçamento para
o mesmo boneco, com ar mais sereno de um bom senso aceitável e de intermediário
atinado, ele fazia por 250 reais. Levou o mesmo destino, outras tantas voltas
à mesma rotunda para oxigenar os neurónios.
Não foi difícil verificar que todas as embarcações
de pesca que por ali circulam têm vários apetrechos em aço
inoxidável e que qualquer serralheiro capaz de fabricar aquelas peças
estaria perfeitamente habilitado para executar o meu desenho. Como sempre
compro o peixe que comemos na banca improvisada do mesmo peixeiro, também
não foi difícil saber onde mora o artista que fornece os pescadores:
numa ladeira de acesso complicado e algo lúgubre, mas um dos pescadores
ofereceu-se como guarda-costas, garantindo-me total segurança em troca
de uma garrafa de cachaça Pirassununga 51, que custou 4,65 reais.
Com o boneco no papel e o melhor sorriso do dia abordei um negrão atlético
numa gruta transformada em oficina que mais parecia uma sala de espera ou
antecâmara do inferno, escura e a cheirar a carvão, pois ainda
lá se trabalha com fole, malho e bigorna. – Oi, doutô,
já cá vieram mais dois antes do siô com esse papéu!
Como já não era novidade, a conversa foi curta: ele fazia a
peça não em barra como eu tinha desenhado mas em varão
de 8 mm, porque não lhe faltavam restos de outras obras. E o orçamento?
– Pô’’a, já fiz duas vezes, são 100
reáu! E quando ficaria pronta? - Vou pegá agora mesmo, pode
vir daqui por duas hora. Me deixa 50 reáu pró moleque ir comprá
varinha de soldá. Eu mesmo fui comprar os eléctrodos, ajudei
o homem a cortar o varão e a soldar as peças e o artista ainda
me descontou 20 reais no orçamento. Comprei duas cervejas das grandes
para irmos bebendo, por causa da poeira de carvão, a 2,50 reais cada
uma. Custo total da obra de arte: 89,65 reais, ao câmbio médio
dá cerca de 35 euros, cêntimos à parte.A peça é
tão simples quanto eficiente: trata-se de uma espécie de tripé
com dois círculos, dentro dos quais cabe a garrafa de Camping Gaz e
a panela, tudo segurado de modo a não cair com os balanços do
barco. Podemos utilizar o sistema quando não necessitamos de ligar
o gerador, em qualquer lugar do barco, no interior ou no exterior, por exemplo
para fritar peixe no cais flutuante e convidar os colegas para uma chicharrada
com um tinto do Dão. Até se poderá utilizar dentro de
uma caravana em andamento, numa estrada razoável, ou numa carroça
puxada por cavalos bem conduzidos. Dois colegas dos veleiros em escala já
foram encomendar outras tantas peças iguaizinhas ao “negão
da ladeira”. Talvez devesse registrar a patente e ainda um dia ia ficar
rico.
Hoje vai ser noite de cantoria, vai haver peleja de repentistas no cais, o mote é Vieira e a nossa viagem, na sequência da reportagem do jornal A Tarde. Ofereceram-nos para o evento 12 quilos de chicharro e 12 caixas de cerveja. A peça de arte vai ser experimentada. Tudo por alma de umas tantas páginas que venho escrevendo há anos sobre Literatura de Cordel, a identidade pela palavra mais genuína de todo o Nordeste brasileiro.
26 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Estava tudo pronto para ser um final de dia grande, ontem, a bordo do CHIC,
noite de festa e de alegria. Os amigos foram chegando de mãos cheias
e os primeiros repentistas pareciam inspirados para horas de cantoria e peleja,
cantigas ao desafio, a partir do mote lançado: “Vamos celebrar
Vieira/ Profeta da utopia”. Já se aquecia a sextilha, vinha o
oitavão, o galope alagoano, a décima, o martelo agalopado…,
“caíam rimas do céu / saltavam rimas do chão /
todos tiravam o chapéu / às toadas do sertão”.
E já se cantava a saudade, a nossa identidade comum, em versos de boiadeiro:
“Que os grandes poetas, patrão / os príncipes da poesia
/ teçam poemas à saudade / em seu estilo altaneiro / que eu
me contento em dizer-vos / bravia e rusticamente / como é que a sente
um vaqueiro”.
Tímidos, os navegantes de uma dezena de países espreitavam o ritmo que abanava o cais flutuante e aguardavam pela hora anunciada, qual eco do São João do fim de semana. De repente, por detrás dos prédios da cidade alta, aparece uma nuvem negra, pesada, medonha, que despeja uma bátega de água diluviana, tocada a vendaval. Entalados no salão do CHIC, espalhados pelas cabines, poetas e violeiros esperavam que aquela escuridão aliviasse e se pudessem soltar as rimas. Mas as horas passaram, a música era a do vento e a palavra pertencia à chuva.
Verdadeiras sardinhas em lata, todos se acomodaram como puderam a bordo, e já que não havia cantigas, podíamos pelo menos lembrar umas tantas glórias da poesia popular nordestina. O grande jurista e académico Sílvio Romero, de origem portuguesa e nordestina, dizia o seguinte, na Academia Brasileira de Letras: “Se vocês querem poesia, mas poesia de verdade, entrem no povo, metam-se por aí, por esses rincões, passem uma noite num rancho, à beira do fogo, entre violeiros, ouvindo trovas de desafio. Chamem um cantador sertanejo, um desses caboclos distorcidos, de alpercatas e chapéu de couro e peçam-lhe uma cantiga. Então sim…” Ele definia o nordestino como um homem naturalmente triste. Já Anchieta falava da alma melancólica do índio. Mas Sílvio Romero explicava melhor: “O nordestino é naturalmente triste porque tristes são as três raças que contribuíram para a sua formação; o português é nostálgico, como mostram os fados, o africano um abatido, as suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do exílio; o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queixa dos rios e o murmúrio das selvas misteriosas”. Tudo junto deu a mística e a sensualidade próprias do povo do nordeste, que se manifestam na poesia popular como marcas inequívocas da sua identidade. A cantoria, a peleja, o repente, o “desafio”, como se diz em Portugal, é a maior e mais extensa manifestação cultural do povo brasileiro. Não há festa popular, no sertão ou na cidade, que não inclua poetas populares. Muitas centenas deles vivem exclusivamente dos seus versos, o que não acontece em nenhum outro país do mundo.
Graças ao novo toldo de cobertura do CHIC, patrocínio generoso da DURIT, pudemos enfrentar a borrasca dentro do veleiro, com algum conforto apesar do número, mantendo as janelas e as entradas abertas. Saquei de algumas páginas do meu texto sobre Cordel e expliquei aos brasileiros como acabou em Portugal a poesia popular. Na primeira metade do século XX, ainda havia cantadores a percorrer o país de norte a sul. Poetas como António Aleixo, de Loulé, Manuel Alves, de Anadia e o Calafate, de Setúbal tiveram a sorte de encontrarem no seu percurso beneméritos eruditos que editaram em livro as suas rimas. Miguel Torga cita no seu diário (1943) o João Cantador, poeta e bailarino que se embebedava com vinho verde; Tomaz da Fonseca encantou-se com o Manuel Alves e publicou os Versos dum Cavador (1900), que foram admirados por Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, Fialho de Almeida, Afonso Lopes Vieira e outros da sua geração; o general Henrique das Neves coligiu os versos do Calafate de Setúbal, publicados com um prefácio de Guerra Junqueiro (1901). O Aleixo teve o apoio do Dr. Joaquim Peixoto Magalhães e existe hoje uma fundação, criada em 1995, com o nome do poeta que foi tecelão, padeiro, cabo corneteiro, polícia, emigrante, pastor de cabras e vendedor de cautelas. Até o Adelino Veiga, o poeta-operário de Coimbra, encontrou os seus mecenas.
As criações poéticas de outros, menos sortudos mas não menos inspirados, caíram no esquecimento ou foram sendo lentamente deturpadas porque não apareceu ninguém que protegesse e codificasse em papel, para o futuro, as suas trovas e os seus desvarios. Assim aconteceu com o Marques Sardinha (1859-1941) e a Maria Barbuda (1869-1946), de Estarreja, cujos legados escritos são muito residuais, mesmo que o José Marques, (nascido no lugar de Sardinha da freguesia de Avanca) tivesse cantado para a rainha D. Amélia nas termas de S. Pedro do Sul, tendo recebido como presente um relógio de ouro. Em 1922 o Prof. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz convidou o Marques Sardinha e a Deolinda do Couto, uma repentista de Cucujães, para cantarem ao desafio na inauguração da Casa do Marinheiro, na presença da numerosa família de Abreu Freire e de convidados da elite da sociedade portuguesa. Só na região de Aveiro, na primeira metade do século XX, havia mais de vinte cantadores e uma quinzena de bons tocadores de concertina, rabeca e viola. Em 1971 ainda cantavam à desgarrada nas aldeias da Beira Litoral a Maria Rocha (morreu em 1982) e o Teixeira (morreu em 1979).
A grande inspiradora do José Marques era a Maria Barbuda; o nome diz tudo: tinha barba como um homem. Cantaram ao desafio na casa do futuro Nobel de Fisiologia e Medicina para o pintor Malhoa e para o Bispo do Porto, D. António Barroso, acompanhados com viola e concertina. Iniciavam sempre o desafio em quadras inocentes de apresentação, mas logo o ambiente aquecia.
Eu sou o Marques Sardinha
Da freguesia d’Avanca
Não posso mostrar carinha
A quem me mostra carranca.
E a Barbuda respondia:
Sou a Maria de Sousa
Por apelido a Barbuda
Nas noites de grande Inverno
A barba também ajuda
Quando o Sardinha se descontrolava, recebia o troco desta maneira:
O Zé Marques diz que são
Grandes as barbas que tenho
Que faria se ele visse
As barbas do meu engenho
Marques Sardinha tem a sua figura preservada, para memória dos vivos, num painel de azulejo da estação ferroviária de Avanca. As barbas da Maria de Sousa deram nome a um restaurante. É tudo quanto resta. Já noite avançada, acabada a cerveja, os convidados fizeram-se à chuva e foram-se embora; quem sabe entre hoje à noite e amanhã, se parar de chover, poderemos fritar os chicharros e distribuí-los, que mal cabem no frigorífico. É tudo quanto resta.
27 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
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Caros leitores assíduos ou esporádicos deste
Diário de Bordo: Chove! Tempo de leitura!
É provável que muitos de vós nunca tenham lido outro
Diário de Bordo antes deste. Trata-se de um género de escrita
que faz parte das expressões literárias ao mesmo título
que a ficção, a poesia, a crónica, o comentário,
etc., geralmente incluído no género mais vasto de “Literatura
de Viagens”. No passado, os diários de viagem costumavam ser
publicados em jornais antes de serem editados em livro, o que aliás
aconteceu também com muitas obras de ficção. Ainda em
1951, um dos mais originais textos de ficção em língua
portuguesa foi publicado em folhetins num jornal (Última Hora, do Rio
de Janeiro) e só foi publicado em livro em 1981, um ano depois da morte
do seu autor: trata-se de O Homem Proibido, de Nelson Rodrigues, que acaba
de ser reeditado mais uma vez pela editora Agir, depois de ter dado filme
e novela televisiva. A Literatura de Viagens, como qualquer outro género
literário, tanto excita os seus fãs como os seus demolidores.
Um ser humano em viagem é certamente a mesma pessoa, com a mesma identidade e os mesmos pesadelos de quando abre a porta da sua casa todas as manhãs. Mas a sua percepção do mundo, das coisas, dos bichos e dos homens é muito diferente, pelo jeito do seu olhar e pelo impacto do imprevisto que pode bater a qualquer momento, pelos dias que se seguem mas não se parecem. A sua escrita segue o mesmo rumo: imprevisível, surpreendente, atrevida. Olhando de longe para as tralhas do seu quotidiano sedentário, acontece que as veja com olhos diferentes e as aprecie à luz de outros valores que não os habituais. Já era assim no tempo dos peregrinos de Santiago, que deixaram relatos detalhados da mudança que aquela caminhada iniciática provocava na vida deles. Quem viaja assume a nudez como método de observação e o espanto como parâmetro de comparações. Quem não viaja sofistica naturalmente o seu guarda-roupa e aconchega-se na tranquilidade das ideias comuns. Por isso eu entendo aqueles que, tendo comentários e reparos a fazer ao que escrevo, não o queiram fazer através do espaço reservado para esse efeito, no final de cada texto, mas prefiram fazê-lo através do meu correio pessoal, preservando assim um anonimato estratégico e livrando-se deste modo de eventuais reversos inoportunos estampados por outros leitores.
Quero agradecer a todos aqueles que o fizeram, alguns dos quais detectaram e corrigiram erros de história, outros acrescentaram observações pertinentes, mas o espaço para o fazer é o que está destinado para esse efeito no final dos textos e eu não posso nem quero dialogar seja com quem for por outras vias. Não é por desprezo nem por falta de consideração para com os meus interlocutores, mas por uma questão de ética e de dignidade: porque a escrita é um acto público. O diálogo, a partilha e o confronto de ideias, a discussão filosófica, o uso da palavra como provocação da inteligência, obedecem a normas éticas no relacionamento humano global do nosso século. Falada ou escrita, a palavra é um dom, uma paixão, é o sal de um oceano de verdades; por isso ela partilha-se com todos os comensais do tempo.
Revolto-me contra os doutos intelectuais que se recusam a
partilhar as suas verdades, reservando-as, quais porcelanas preciosas, para
as intimidades de alcova. Imbuídos de uma vaidade insaciável
e fechados em capelinhas remotas, eles cortam os laços com a sociedade
globalizante e aberta, utilizando a sua inteligência e os seus conhecimentos
à maneira das beatas que cochicham escondidas na penumbra poeirenta
das traseiras dos altares. Impossível mover tanta auto suficiência
inerte, levá-los a discutir na praça pública as suas
ideias e as suas propostas, dado que se consideram acima de toda e qualquer
utilidade prática, o que degradaria a sua intocável dignidade.
Exultam de gozo e contentamento com títulos, incensam-se entre amantes,
partilham segredos insondáveis, interpretam os mesmos cometas e consideram
que nada devem à sociedade que os nutre.
Este diário teria efeitos terapêuticos se provocasse uma raiva
tal que um dia eles despejassem na rua, qual chuva de verão, toda a
angústia e frustração que lhes castra a alma.
28 de Junho de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W
Quem viaja aceita o imprevisto sem encontro marcado. Ela não tinha dito que vinha, apareceu assim pelo cais flutuante, silhueta de mulher madura e elegante, na fragrância sedutora dos 65. Eu estava em conversa com outra visita, ela parou um instante, esperou que eu olhasse e disse apenas: “o meu pai chamava-se António de Abreu Freire e era português”. Nas notas genealógicas da família tem um António Alexandre de Abreu Freire Valente, que emigrou para o Brasil em 1913. Nasceu em 1893, na Figueira da Foz, filho de Joaquim Valente, mas ficou órfão de pai muito jovem, aos cuidados da mãe, Conceição de Abreu Freire e de umas tias de Avanca, aldeia berço das duas famílias. Estudou no Porto e um dia rumou para o Rio de Janeiro, onde fundou um jornal com um antigo professor também ele desiludido de Portugal nos anos agitados de uma jovem república sem rumo.
O jornal durou pouco tempo e ele mudou-se para São
Paulo onde fundou o Banco Português do Brasil. Em 1924, durante a revolução
paulista de Isidoro Lopes e o bombardeio da cidade pelas tropas federais,
a sua casa foi atingida por uma granada que matou a esposa, e o deixou sem
uma perna e um filho de três meses. Este viria a ser campeão
nacional de remo e faleceu aos 26 anos no Rio de Janeiro, vítima de
um acidente de viação. De um segundo casamento teve mais um
filho e uma filha; o filho foi um comerciante de sucesso, representante no
Brasil, em dada altura, dos móveis da famosa escola de arquitectura
alemã Bauhaus. Foi uma das muitas vítimas do colapso monetário
do tempo de Collor de Melo e suicidou-se há uns anos. A moça
fez-se a mulher bonita que apareceu no cais ainda não era meio dia.
António Alexandre faleceu em 1981. Tudo o que resta da família
reside agora em Salvador da Bahia, onde também reside um descendente
de outro ramo genealógico daquela família de Avanca, João
Adérito Valente, gestor, sócio-gerente da DURIT, filho do engenheiro
Manuel Avenilde Valente, membro do senado da Universidade de Aveiro.
Marília Angenilde casou com um cidadão sueco, viveu alguns anos
na Suécia, regressou ao Rio de Janeiro, teve um filho e uma filha,
enviuvou. O filho é músico, tem uma banda Rock, a Volts, neste
momento em digressão pela Europa. A filha é médica no
Hospital da Marinha em Salvador. Marília conversou em sueco com o nosso
companheiro Dietmar, matando saudades do país nórdico das florestas
e dos lagos. Vai voltar no fim de semana, com a filha, os netos e os sobrinhos
– há futuro para as famílias Abreu Freire e Valente, por
terras do Brasil. Coisas que acontecem, quando se está vivo!