CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA

21 de Dezembro de 2007, Hamilton.

Nunca pensei ter que passar um Natal nas Bermudas, mas vai mesmo acontecer. Não é uma surpresa agradável, é apenas mais um acidente neste ano das nossas vidas. A tempestade tropical OLGA causou-nos estragos e dificultou-nos a navegação, mas não foi o pior; até chegámos a este destino cumprindo os prazos que tínhamos fixado. Os estragos resolvem-se todos com menos de 350 euros; os efeitos psicológicos da fúria do mar e do desaparecimento de dois companheiros de viagem, esses sim são muito mais graves, deixando-nos por momentos aterrados. Os estabelecimentos de material e serviços náuticos aproveitam para dar férias ao pessoal nesta época e só voltam a abrir no dia 2 de Janeiro, paralisando-nos nesta ilha, onde tudo se paga a preços de luxo, por mais duas semanas.

Ilhas de escravos negros desde o século XVII, eles eram a mão de obra do tabaco e das hortas de cebola, baleeiros, pescadores, construtores de casas e igrejas, carpinteiros navais, navegadores, pilotos, alguns chegaram a capitães de longo curso. Os primeiros colonos ingleses ocuparam esta ilha desabitada em 1612 e os primeiros escravos negros chegaram em 1616. Muitos deles obtiveram as suas cartas de alforria pelos serviços prestados na navegação. Também aqui chegaram como escravos alguns indígenas americanos, mohicans e narragansetts, que deixaram marcas profundas na história genética da população. A escravatura foi abolida nas Bermudas a 1 de Agosto de 1834. Como aconteceu nos Estados Unidos com o famoso romance de Harriet Beecher Stone, A Cabana do Pai Tomás, também a obra literária de uma escrava das ilhas contribuiu para o fim da escravatura; Mary Prince publicou a sua história em Londres, em 1831, intitulada A História de Mary Prince.

Isoladas no Oceano Atlântico, as ilhas formam um arquipélago de coral com pouco mais de 80 quilómetros quadrados de terra firme, rodeado de cerca de 800 quilómetros quadrados de baixios recheados de rochedos à flor de água, criando uma zona no oceano que só tem semelhança com o Atol das Rocas, na costa brasileira, uma formação idêntica inabitada, com menos de 5% de toda a área das Bermudas. No século XVIII os carpinteiros navais criaram a embarcação mais rápida e sofisticada do tempo, construída com o cedro que crescia nas ilhas, o “Bermudian Sloop”. O modelo mais evoluído foi a embarcação de três mastros com cerca de 35 metros, que cruzou o Atlântico em todos os quadrantes com as suas velas triangulares que ainda hoje têm o nome das ilhas onde foram inventadas. Uma réplica dessas embarcações navega hoje com turistas e alunos das escolas à descoberta do passado.

Este pequeno espaço sempre esteve sob poder britânico e foi palco de muitas disputas no tempo da independência dos Estados Unidos da América. A quantidade de fortificações que se espalham pelas ilhas, apesar das defesas naturais das barreiras de coral, testemunham do seu posicionamento estratégico. Mas o nome das Bermudas está antes de mais associado a um vasto espaço geográfico onde acontecem fenómenos estranhos sem explicação lógica razoável, conhecido por “Triângulo das Bermudas”; o primeiro desses acontecimentos deu-se em 1851 quando o navio Minerva apareceu frente à entrada de Ely´s Harbour sem ninguém a bordo, as velas içadas e sem o mínimo vestígio de qualquer incidente. O navio tinha largado dois anos antes com destino à Europa e a África; nunca ninguém conseguiu explicar como regressou ao seu porto de partida sozinho, passando sem encalhar pelos estreitos e sinuosos canais entre as barreiras de coral. Os apaixonados por histórias de extra-terrestres encontram nos fenómenos estranhos que acontecem nesta zona uma prova cabal da sua existência e do seu interesse pelo planeta dos humanos.

Do tempo dos escravos restam memórias, ritmos e festas, que enchem de cor e animação as ruas da cidade quando desfilam os Gombeys, dançando mascarados ao ritmo dos tambores. A imagem de marca das Bermudas é a do presente: um paraíso turístico, um dos espaços mais sofisticados em qualidade de vida do planeta, o primeiríssimo mundo. Para quem chega do Brasil, de uma cidade como Belém onde o modernismo e a riqueza se cruzam com o ruído e a violência, já as Caraíbas nos aparecem como um choque de civilização e estas ilhas completam o impacto da diferença no forasteiro. Tudo está nos limites da perfeição: a qualidade do espaço edificado, a beleza dos lugares públicos, a ordem e a disciplina dos habitantes, a tranquilidade e a segurança. Nas ruas da cidade cruzam-se todas as raças, sem predominância de nenhuma delas; a circulação é dominada pelos veículos de duas rodas e nada parece perturbar a calma e a serenidade de ninguém. Já houve nestas ilhas um caminho-de-ferro e comboios circulando com mercadorias e passageiros. Foi o mais pequeno território de terra firme do mundo a possuir um caminho-de-ferro. As instalações da marina onde nos encontramos são as mais luxuosas de todas quantas eu encontrei em toda a minha vida de navegante; os sanitários têm a qualidade de um hotel de luxo, coisa perfeitamente dispensável por nós, habituados que estamos a tão pouquinha coisa.

A nossa prisão é de luxo. Os estragos da OLGA não nos permitem ficar ancorados, porque necessitamos de peças para recompor o gerador, que mergulhou na água salgada; já repusemos em ordem a parte mecânica, limpámos e secámos a bobina, mas falta-nos substituir pequenas peças das ligações eléctricas que ficaram danificadas. As baterias de bordo mantiveram-se no seu lugar sem qualquer estrago; porém os interruptores gerais que as ligam e desligam ficaram danificados pela água salgada. Estamos a servir-nos da corrente 220 do cais para as nossas necessidades a bordo, razão pela qual temos que ficar atracados a um pontão de marina.

 

23 de Dezembro de 2007, Hamilton.

O nome destas ilhas vem do seu descobridor, um espanhol de nome Juan Bermudez que por aqui passou em 1503 a bordo de um navio chamado La Garza. Mas o primeiro acontecimento digno de menção nas chegadas e partidas é a de uma nau portuguesa que naufragou na costa Leste em 1543, num local hoje incluído na maior reserva natural e santuário da vida selvagem das ilhas, e que tem o nome de Spanish Rock (para os britânicos, tudo quanto vem da península Ibérica é “Spanish”, à excepção do Vinho do Porto). Os portugueses ficaram por aqui apenas o tempo suficiente para fabricar, com o cavername e o tabuado do navio naufragado e mais algumas madeiras das ilhas, uma nova embarcação com a qual seguiram viagem, uns 60 dias depois. Antes de partir deixaram marcada numa peça de bronze embutida numa rocha a marca da sua passagem: a cruz de Cristo, as letras R.P. (Reino de Portugal) e a data, 1543.

Este posto avançado do poder britânico, uma espécie de Gibraltar raso no meio do Oceano Atlântico, guarnecido com catorze fortificações, era de facto um lugar estratégico. Em qualquer estação do ano, mesmo quando as tempestades invernais não permitiam o acesso aos portos da Nova Inglaterra, a rota das Bermudas era sempre possível. Assim é ainda hoje, por isso aqui viemos parar na nossa travessia invernal.

O território tem o estatuto de uma “região autónoma” da Grã Bretanha, portanto faz parte da Comunidade Europeia; porém a sua autonomia política é tal que faz dele praticamente um país diferente, com as suas leis que nem sempre se enquadram no estatuto da Comunidade, a sua moeda própria, as suas fronteiras cerradas. Se os bermudianos podem circular livremente pelos países da comunidade, os cidadãos europeus não o podem fazer nas Bermudas. Dos 63.000 habitantes apenas cerca de 40.000 possuem de facto cidadania “bermudiana”; os demais são “residentes”, não usufruindo dos mesmos direitos nem podendo alcançar a “nacionalidade”, mesmo se cá habitam há dezenas de anos. Filhos de imigrantes açorianos, nascidos aqui há mais de 40 anos, continuam com o estatuto de residentes e não de cidadãos. O “residente” não pode adquirir uma propriedade, ser dono de um comércio, não tem direito de voto. Os novos imigrantes, depois de 1989, só podem chegar com contratos de trabalho a tempo certo, não podem trazer com eles a família, nem residir nas Bermudas mais de seis anos, seja qual for o seu desempenho ou a qualidade da sua profissão. Uma parte do salário do contratado, variável entre 20% e 50%, é enviado directamente pelo contratante para a família distante. As portas do paraíso nunca se abrem, apenas se entreabrem.

A imigração portuguesa para as Bermudas começou a 4 de Novembro de 1849, quando chegaram os primeiros 58 madeirenses a bordo da brigantina Golden Rule. Os que se seguiram foram quase exclusivamente procedentes dos Açores. Revelou-nos um estudioso da história da ilha, Robert Pires, um descendente de açorianos, que o sangue português corre em metade da população permanente do território, se bem que o número de pessoas que fala correntemente a língua portuguesa, a segunda mais falada depois do inglês, seja apenas de cerca de 12.000; ele mesmo já não fala português, assim como a quase totalidade dos descendentes a partir da terceira geração. No entanto, a comunidade de hoje deseja falar português e tem feito todos os esforços junto do Governo Regional dos Açores e junto do Governo Português para conseguir apoios para o ensino da língua, sem qualquer resposta. O Clube Vasco da Gama, uma associação recreativa e cultural, tomou a iniciativa de contratar um professor que ensina a língua portuguesa a cerca de 150 alunos entre os 6 e os 12 anos, divididos por 6 turmas, com 3 horas de aulas por semana cada uma. Ricardo Pratas, um professor setubalense que passou alguns anos nos Açores, é o professor da Escola Portuguesa da Bermuda, sustentada pelas cotizações dos sócios do Clube, com uma ajuda simbólica do Governo Regional dos Açores de 5.000 euros por ano.

Também estão desamparados os cidadãos portugueses pela falta de um cônsul permanente ou pelo menos regular; mais de 150 pessoas ficaram impossibilitadas de viajar este Natal por não terem onde nem como renovar o passaporte. Parece que um funcionário consular provisório vai chegar a Hamilton na próxima Quinta-feira, 27 de Dezembro, o que não resfria a revolta dos nossos compatriotas, prejudicados pela falta de assistência em questões que relevam dos serviços consulares e que vão muito além dos passaportes, tais como documentos oficiais, escrituras, procurações, certificados de nascimento e óbito, etc. Na sua quase totalidade a comunidade portuguesa é originária da ilha de São Miguel, aos quais se misturam uns poucos originários da ilha da Madeira e quase todos trabalham na construção civil, nos serviços de limpeza e na jardinagem, alguns na agricultura. Os mais novos, escolarizados e abertos a novos desafios, começam a ocupar espaços em várias profissões liberais; já existem médicos e advogados de origem açoriana e uma quantidade razoável de funcionários públicos, para além de bancários, executivos de companhias de seguros, e cada vez mais na área comercial. Nomes portugueses começam a enfeitar as listas dos partidos políticos. Originariamente católicos, dividem-se hoje em proporções iguais entre as paróquias católicas e anglicanas, sendo que a geração mais nova adere preferencialmente aos Adventistas do Sétimo Dia.

Os portugueses, sobretudo os “contratados”, são conhecidos como verdadeiros escravos do trabalho, trabalhando mais de 12 horas por dia, mesmo aos Sábados e Domingos quando podem, vivendo à meia dúzia em apartamentos de dois quartos, desinteressados de tudo quanto não seja ganhar dinheiro para enviar para a terra; são cerca de 4.000 neste momento e a vida social e cultural deles é praticamente nula, muitos deles chegam ao fim do contrato sem saberem balbuciar uma frase em inglês. Normalmente trabalham com portugueses e para empresas de portugueses das primeiras levas de imigrantes e não saem desse ambiente restrito. Aqueles que possuem estatuto de residentes permanentes é que conseguem interessar-se por outros valores, mas apesar de tudo a vida associativa e cultural é muito reduzida. O interesse crescente pela língua portuguesa é uma novidade dos últimos anos, resultado do aumento do nível de educação dos descendentes daqueles que, por sua vez, já até deixaram de falar português no seu quotidiano, como é o caso de Robert Pires, consultor financeiro e militante político pela causa da igualdade dos direitos dos residentes permanentes.

Na Music Box, a loja do senhor Eduardo de Melo, um patriarca da comunidade chegado às Bermudas há 57 anos, a música portuguesa tem espaço especial e de relevo; não falta nada, dos Madredeus e Marisa ao padre Borga e Quim Barreiros, dos CD´s com os hinos dos clubes de futebol aos dos grupos folclóricos. Tem ainda à venda muitas imagens de Nossa Senhora de Fátima, do Senhor Santo Cristo, livros de receitas de cozinha portuguesa e em relevo, logo à entrada, vendido como um best-seller, o livro de luxo sobre Cristiano Ronaldo. Nas Bermudas, o pequeno-almoço do Domingo é o portuguesíssimo bacalhau com batatas e nenhum bar merece ser frequentado se não vender bolinhos de bacalhau. Todos os empregados da limpeza dos pontões da marina são açorianos, os da padaria mais próxima também.

 

27 de Dezembro de 2007, Hamilton.

José Gonçalves de Abreu tinha 32 anos quando chegou às Bermudas em 1849, na primeira leva de imigrantes madeirenses, a bordo da brigantina Golden Rule. Vinha contratado por um colono de nome F. Peniston. Em 1854 casou com uma bermudiana, Sarah Elisabeth Tynes e nesse mesmo ano nasceu a primeira filha, Mary Elisabeth; em 1857 nasceu Joseph, dois anos depois Faustina e em 1860 nasceu António. Mas no registo de baptismo do quarto filho de José Abreu e de Sarah Tynes ficou escrito António Bernard Aubrey. Em 1864 nasceu Luísa, também Aubrey e no ano seguinte James Aubrey. Depois, em 1887 nasceu Victoria Maude Aubrey, filha de Joseph, neta de José e todos os filhos do casal Joseph Abreu e Josephine Wilhelmina passaram a chamar-se Aubrey.

José Gonçalves de Abreu faleceu em 1867 e na sua campa ficou escrito Joseph Aubrey. No ano de 1900 havia nas Bermudas 4 nomes Abreu e 38 Aubrey, todos descendentes do patriarca madeirense. Na lista telefónica os Aubrey ocupam hoje meia página; é nome de comércios nas ruas e de rua nos arrabaldes da capital. Muitos da família Abreu emigraram das Bermudas para Fall River e New Bedford nos primeiros anos do século XX, onde as listas telefónicas contêm dezenas de Aubrey. Três oficiais bermudianos de nome Aubrey fizeram parte das tropas dos aliados na segunda guerra mundial e um deles morreu em combate.

Frederik Aubrey, um dos filhos de Joseph e Wilhelmina faleceu em 1941 aos 61 anos; o seu pai Joseph tinha falecido em 1931 com 74. Frederik tinha casado com Anne Catherine King em 1905 e tiveram vários filhos que faleceram todos muito jovens. Por isso ajudaram a criar os filhos de parentes com prole numerosa, numa época em que grande parte dos jovens que chegava à idade adulta sonhava com os Estados Unidos. Mary Elizabeth nasceu em 1937 e foi criada por Frederik e Anne Catherine; toda a família emigrou para New Bedford, só ela ficou nas Bermudas fazendo companhia a Anne Catherine, viúva. Festejou neste Natal 70 anos, possui uma livraria de livros antigos e usados com espaço Internet. Das suas origens açorianas guarda algumas fotos nas paredes e sabe apenas que o patriarca da família veio de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel. Nunca saiu da ilha, nunca teve vontade de conhecer outros espaços, nem os dos ancestrais nem os dos familiares no continente americano. São os seus parentes que vêm visitá-la, na casa antiga sobranceira ao mar, virada para Leste, para o lado dos Açores. Quando fecha a loja, às 5 horas da tarde, vai para o Centro Evangélico, onde se ocupa da biblioteca e da correspondência. Sabe dizer algumas palavras em português, mas uma das suas sobrinhas viajou recentemente para Portugal afim de estudar a língua dos seus avós.

Os descendentes dos pioneiros da Nova Inglaterra, chegados em 1620 a Cape Cod a bordo do navio Mayflower, os Pilgrim Fathers, constituem hoje uma espécie de referência genética e cultural da nação americana. Esta centena de puritanos ingleses atravessou o oceano à procura de um espaço de liberdade, abandonando as suas terras também por razões religiosas. Os madeirenses da diáspora de 49 e os que rumaram para a Guiana e outros destinos das Caraíbas não se preocuparam em preservar intactos os seus nomes. Misturaram-se à população local, casaram com descendentes de escravos, com membros da aristocracia local, com imigrantes originários de outras latitudes, integraram-se na comunidade e muito poucos dos seus descendentes mostram hoje interesse em evidenciar as suas origens portuguesas. Contrariamente aos Pilgrim Fathers, eles não reclamam nenhuma honra nem nenhuma nobreza por terem sido os primeiros de uma multidão. O sangue deles faz parte do património genético silencioso de muitas nações.

Patrícia Marirea Mudd, descendente de açorianos, nasceu e cresceu nas Bermudas, emigrou para o Canadá, voltou às Bermudas, casou com um cidadão americano e vive agora no estado do Kentucky. Apaixonada pelas suas origens, dedicou uma dezena de anos da sua vida a uma investigação exaustiva sobre os portugueses das Bermudas e publicou em 1991 uma obra excepcional: Portuguese Bermudians – An early history and reference guide (1849-1949), 702 páginas de textos e documentos preciosos, um memorial do património genético português.

Eles deixaram as suas casas e as suas hortas com mágoa e enfrentaram com serenidade o desconhecido, em cata de algo mais que achavam que mereciam. Ignorados e desprezados pelos outros, eles acreditaram neles mesmos e na capacidade de criarem com as suas próprias mãos uma outra vida, traçarem um outro destino, escapando à pobreza e ao escárnio, à sina triste dos oprimidos. Perderam uma identidade, construíram outra, com a humildade e a fé dos corajosos.

 

29 de Dezembro de 2007, Hamilton.

O arquipélago é pequeno: de uma ponta a outra das ilhas, contando as pontes que as ligam, tem 25 milhas de estrada, das inglesas, uns 40 quilómetros, passeio tranquilo de 4 horas a cavalo pela trilha do antigo caminho de ferro. A paisagem é deslumbrante, não seja este o topo do mundo da qualidade de vida. Aqui um painel de azulejo na fachada de uma casa com as bandeiras de Portugal e das Bermudas, ali outro com uma paisagem dos Açores, mais adiante uma Nossa Senhora por demais conhecida, um Senhor Santo Cristo desfigurado, é assim que os açorianos afirmam a sua identidade numa terra que não é deles, mas onde eles detêm o poder produtivo e o poder económico de base. Mesmo ao lado, sem muros nem vedações sólidas que as separem, estão as mansões de nomes badalados de artistas de cinema, de antigos craques da NBA e do basebol americano, algumas das maiores fortunas do mundo, que eles cotejam todos os dias, porque foram eles quem lhes construíram a mansão, são eles quem as limpam e lhes fazem a manutenção, tratam dos jardins e cuidam dos animais de estimação quando os donos estão ausentes.

O Clube Vasco da Gama existe há mais de 70 anos e tem sido o suporte humanitário, social e cultural da comunidade, funcionando como beneficência, lugar de encontro e lazer, e ultimamente como escolinha da língua. Termina actualmente a renovação das suas instalações à maneira desta terra, tudo da melhor qualidade, onde passará a funcionar uma sala de festas e de conferências, um restaurante, um espaço de convívio e uma biblioteca. Mas até agora o Clube não dispõe de um único livro em português, para além de poucos manuais escolares e de algum espólio disperso em casa de particulares. O próximo objectivo a atingir é guarnecer este espaço com um acervo cultural, aberto aos açorianos e a todos os que desejem conhecer o idioma e as culturas de língua portuguesa, de modo a preservar a identidade dos açorianos das Bermudas e difundir os valores de uma cultura presente em todos os continentes da terra.

Keyla é brasileira de São Paulo, está nas Bermudas há 15 anos, trabalha na manutenção doméstica, é casada com um empresário açoriano na área da jardinagem e têm uma filha de 10 anos. Em casa fala-se somente o português. Desde há dois anos que Keyla dá aulas de português a grupos de bermudianos adultos que desejam aprender a nossa língua; fá-lo sem qualquer apoio oficial, apenas com os seus próprios recursos e alguns manuais escolares de língua portuguesa que trouxe do Brasil. Tem neste momento três grupos de adultos totalizando mais de 60 pessoas, que se encontram duas vezes por semana nos espaços cedidos por uma escola pública. Encontrámos Keyla num supermercado, estava acompanhada por duas açorianas há muito radicadas nas Bermudas, também elas mães de família que vieram visitar-nos a bordo do CHIC e nos ajudaram nas nossas necessidades. Os filhos dessas famílias açorianas já não falam nem mostram interesse em falar português, apesar da boa-vontade dos pais. Sem apoio, sem um suporte institucional que evidencie os valores da cultura portuguesa, os jovens preferem assimilar-se à maioria para não sofrerem as consequências de uma discriminação que ainda se manifesta na vida quotidiana dos habitantes das Bermudas.

A maioria negra das ilhas detém o poder político, a elite anglo-saxónica controla os valores culturais e preserva a integridade das suas regalias, a comunidade açoriana possui o poder produtivo e toda a ilha vive do turismo, das empresas off-shore e do movimento de capitais. Falta neste momento à comunidade portuguesa dar o passo cultural, armar-se de argumentos para impor os seus valores, a sua identidade, através da língua, da música, do espectáculo e da criatividade. Só assim os portugueses das Bermudas conseguirão obter dos outros habitantes o respeito que lhes é devido e o apreço pelo seu desempenho, pelo seu trabalho. Eles chegaram aqui há dezenas de anos sem outras alfaias que os seus próprios braços, muitos deles analfabetos e desprezados nas suas terras. Conseguiram um padrão de vida digno, são orgulhosos daquilo que fazem, das suas casas plantadas ao lado das maiores fortunas do mundo, mas falta-lhes agora alcançar um novo patamar na hierarquia dos valores, tarefa de uma nova geração. Para o sucesso de uma empreitada desta envergadura é necessário o apoio de Portugal, do Brasil, das outras comunidades que em outras partes do mundo já conseguiram impor os seus valores culturais.

Para que os outros nos respeitem é necessário mostrar-lhes quem somos e o que valemos e esse é um desafio colectivo no qual todos temos que nos implicar. Uma questão de sobrevivência, de história do futuro. A bordo do CHIC, percorrendo os mares e os rios por onde Vieira andou e até outros como este que nos calhou em caminho, nós fazemos a nossa parte.

 

30 de Dezembro de 2007, Hamilton.

O Diário de Bordo não é o lugar apropriado para elaborar definições da identidade e da cidadania numa perspectiva do século XXI, nem para esmiuçar os meandros de uma semiótica que mudou de rumo e de conteúdo a partir dos anos 80. São assuntos de sala de aulas. Este texto mantém a fidelidade aos objectivos definidos desde o início e situa-se no âmbito da literatura de viagens, abordando uma temática circunstancial: uma das grandes referências da identidade cultural dos portugueses é um dos seus mais nobres e mais emblemáticos cidadãos, porventura o maior português de sempre, o padre António Vieira, nascido há 400 anos.

Na introdução a este Diário, há quase um ano, em Janeiro de 2007, eu escrevia: este texto é um exercício de comunicação e uma partilha de emoções ao longo da viagem que se inicia e que vai durar um ano da minha vida e muitos meses da dos meus companheiros a bordo de um veleiro. A razão mais imediata deste percurso por três continentes é a descoberta de valores próprios às culturas da nossa língua e particularmente aos valores que um dos maiores portugueses de todos os tempos, o padre António Vieira, tentou no seu tempo defender e esclarecer. A dimensão profética das suas ideias ainda hoje espanta quem se apaixona pelas suas utopias, descobrindo nelas um clarão que ilumina as mais modernas teorias com que os homens tentam enxergar a razão das euforias dos povos e das civilizações. O Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania (CHIC) foi pensado à medida do espaço percorrido pelo missionário, político e cidadão do mundo do século XVII. Hoje, depois de ter percorrido uma grande parte do seu itinerário de vida, eu mudaria apenas uma palavra deste parágrafo: “utopia”, porque descobri entretanto que aquilo a que muitos leitores de Vieira chamam utopias nunca o foram. A referência de todas essas supostas utopias é o Quinto Império, que nunca foi na mente dele uma utopia mas sim uma antevisão do futuro da humanidade, qual filosofia da história, quiçá visionária, patriótica e cristã, uma genial concepção do futuro. Nada mais nada menos que uma globalização. Na sua mente ela seria cristã, evidenciaria os valores da nação portuguesa e duraria muitas gerações – era o que ele enxergava nos textos dos profetas.

Porque ele queria para Portugal grandeza e liderança, ele criticava a mesquinhez e a inveja, a falta de visão, o desperdício e a ineficácia. No jornal O Público de ontem, o político e cronista Pacheco Pereira desabafava contra o mostruário da nossa pobreza, da nossa rudeza, da falta de independência que caracterizam o nosso “portugalinho” – o que podiam ser palavras copiadas de muitos textos de Vieira. Até parece que em mais de 350 anos muito pouco ou quase nada mudou e que as mentes mais esclarecidas se revoltam contra a mesma fraqueza.

Já no último dia de Fevereiro, a duas semanas da largada, eu acrescentava, também à maneira de um desafio, uma observação de Miguel Torga, que dizia assim: Querido Leitor: Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar e, se possível for, comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos. Ele escreveu esta nota severa na sua aldeia de São Martinho da Anta em Setembro de 1945, tinha eu dois anos e meio. Cresci com os textos em verso e prosa do autor dos Contos da Montanha, que foram sempre e até hoje uma das minhas leituras preferidas, mais a poesia de Eugénio de Andrade. A moda do país é outra, mas tenham paciência: Saramago aborrece-me e Fernando Pessoa não bate ao ritmo do meu coração. Esse grande poeta de língua inglesa que está na moda e que também escreveu versos em português, alguns sublimes, não me comove, nem o mostrengo me assusta. Pena que os poderes clandestinos de um país às avessas tenham travado tão obstinadamente, no tempo oportuno, a promoção daquele médico de aldeia a um prémio Nobel por demais merecido. Fez cem anos que ele nasceu.

Passado quase um ano de viagem por vezes atribulada e quase a chegar a 200 páginas de Diário, espanto-me da fidelidade dos meus textos ao projecto original: exercício de comunicação, partilha de emoções, descoberta de valores, identidade, cidadania, regalo e comoção, sem nunca esquecer que a casa está a arder e que essa catástrofe, como todas as demais, excita a curiosidade, deslumbra os sentidos e perturba quem lê.

Mas eu acrescentava ainda nesse texto, de 28 de Fevereiro: … há sempre outra razão para além da mais evidente; cada criatura é um ser em viagem entre um porto de partida e um porto de chegada, com muitas escalas pelo caminho, entre bonanças e tempestades. Este Diário de Bordo pretende partilhar com os leitores as euforias e os desencontros, os sucessos e as frustrações de uma viagem que, por ser longa e por espaços exóticos, não deixa de ser apenas mais uma viagem, como qualquer uma daquelas que cada um faz cada dia que o sol nasce. A sensação de estar vivo é a mais sublime das emoções, quando os cais desaparecem no horizonte e quando se avista outra vez os paredões do próximo porto. Um dia, todos nós nos encontraremos num derradeiro porto, na alvorada do oitavo dia da Criação. Era o dia dos meus 64 anos, Inverno, dia de temporal. Já imaginava que ao longo da rota surgiriam muitos imprevistos, malentendidos e desperdícios, por isso precavia-me contra a escuridão do rescaldo dos incêndios, deixando entreabertos os portões do imaginário para as noites sem luar, aquelas noites longas e tempestuosas que nos deixam vulneráveis e com saudades do futuro.

 

31 de Dezembro de 2007, Sommerset Island.

No nosso ingénuo imaginário, imutáveis eram as ideias, definitivas as decisões e as certezas serenas como as manhãs de Maio. Ainda crianças já sabíamos torcer um pavio de candeia, ordenhar uma vaca, amassar o pão, guiar uma parelha de bois pelo cabresto, chapéu de esteira, camisa de riscado e vara de aguilhão, aparelhar o arado e engraxar a charrua, escoar um barco e velejar contra a nortada numa bateira; bastava olhar para uma canga para saber quem a tinha esculpido e pintado. As nossas irmãs urdiam uma teia, fiavam e cardavam como as nossas avós, erguiam o centeio e sachavam o milho como gente grande à moda dos antigos. Os pés pousavam na terra e os olhos não enxergavam para além do horizonte fechado pela copa eucaliptos e a bruma da maresia; era quanto bastava. Nas nossas casas não havia electricidade, nem na escola; só na igreja é que encontrávamos a salvação, a verdade e a luz. Crescemos convencidos que era assim desde o princípio do mundo e que comeríamos o pão do nosso forno até o mundo acabar.

Chegou o ano da seca e os mais atrevidos alvoraram da terra, arrastando com eles os indecisos. Os que ficaram abriram poços e as vacas rodaram o cambão das noras ao ritmo do travão tilintando no rodízio do engenho, até à exaustão. O milho não crescia e a tristeza tomou conta dos lavradores, dos moliceiros e até dos bichos. As cegonhas voaram pelo São Simão e poucas regressaram pela Páscoa, deixando os ninhos sem crias até desaparecerem por completo. Também os milhafres, as rolas bravas, as águias de asa redonda, as garças e os gansos bravos sumiram. Quando os primeiros peregrinos regressaram, meteram luz em casa e as mulheres lavavam roupa na pia do poço com o rádio bem alto para que toda a aldeia ouvisse os Parodiantes, a música dos ranchos, o trio Odemira, as notícias, o terço e as cantigas que anunciavam os detergentes. Os homens abalaram de novo antes da Primavera e foi assim que a incerteza invadiu a gente e desfez a serenidade. O sino continuou a tocar a finados e a trindades, as mulheres a enfeitar os altares, cada vez mais sozinhas, que os homens e os filhos foram seduzidos pelos horizontes da fortuna; alguns nunca mais voltaram. As crianças deixaram de nascer e os barcos apodreceram na lama fedorenta dos esteiros.

A aldeia passou do tempo da serenidade à era da globalização como quem passa por um arraial e volta feliz, carregado de farturas e música pirateada. De repente as cegonhas também voltaram, depois chegaram os milhafres, as rolas e as águias. Há quem espere ainda pelos gansos, pelas garças, pelos barcos e pelos que foram embora nos anos da seca. As costureiras espreitam pela janela cada vez que o som de uma voz estranha estremece nos vidros; as tecedeiras param de bater o pente quando o sino toca e ligam o rádio para saber quem morreu. Mas nem as vozes nem os sinos espantam a solidão. Os que andam longe, pelas margens dos grandes rios, juntam-se para comer, cantar e chorar saudades, na esperança de um dia voltarem; cansados, penduram suas guitarras nos choupos enquanto os da cidade lhes pedem para cantarem mais um fado da sua terra distante. Mas as vozes estão roucas da poeira dos sertões malditos, sem fôlego nem alegria que os erga do cansaço e da solidão. Eles querem voltar, mas para onde, se já ninguém os reconhece nem eles relembram o toque dos sinos, as marés e as velas, o cheiro do junco, da erva-doce, do azevém maduro e o chilrear dos pardais?

E voltar para quê? O regresso ao passado não é vida que se viva nem futuro que seduza; e até o passado despejou os seus prazeres num charco imundo e nauseabundo que nem o sal das lágrimas sara. Os que ficaram eram tão poucos e tão pobres que deixaram ao abandono um património que se transformou em pesadelo, corrompido pelo lixo que invade as matas, as levadas e as grandes águas. As consolações passageiras invadem o asfalto, empurrando as criaturas e os cães vagabundos para as valetas, sem o abrigo dos combros, sem o sabor das amoras, sem a verdura patética dos chorões, sem o cheiro das rosas bravias. A minha aldeia tem hoje iluminação em todas as ruas, contentores de lixo nas encruzilhadas, computadores na Junta, televisão em todas as casas e automóveis em quase todas. Não fosse a tristeza, a impiedade e a ignorância, seria um canteiro cheiroso do primeiro mundo.

O sino dobra a finados, depois das trindades, mas ninguém morreu na aldeia. Foi alguém que morreu muito longe, do outro lado do mundo, mais um que nunca mais voltou. Dizem que vai chegar para ser enterrado na terra, deixou tudo certo para que nada faltasse. Quem não se lembra do melhor moliceiro de toda a terra marinhoa! Um dia bolinou contra a última nortada, arreou a vela, descarregou a última maré, lavou o barco pela última vez, embrulhou as tralhas que guardava na proa, deixou a vara, o ancinho e o engaço ao camarada e foi-se embora. Lega aos herdeiros uma empresa de camionagem e arremessa os ossos para o cemitério que a maré cheia lambisca. Por onde andou criou riqueza, distribuiu felicidade, realizou esperanças, curtiu desejos e saudades. Só que não era aquela a sua terra e deu-se ao luxo de juntar o pó dele à lama dos seus irmãos enquanto espera pela hora do espectáculo final.

Quando soarem as trombetas do último Outono, os barcos chegarão do norte com suas proas iluminadas, suas velas de seda, mastros de prata, envergues salpicados de brilhantes, as falcas enfeitadas com plantas de fragrâncias sublimes e a cada leme um anjo de cor diferente, suas asas soltas, seu rosto de luz, pisando junco fresco e grinaldas de murta. Os de proas baixas e bordos altos sobressaem pela sua grandeza, seus dois mastros com velas vermelhas, e trazem bandas de música, coros e animais adestrados; melros, gaios, corvos e milhafres pousam nos cabos e nos ombros das criaturas que se juntam à procissão a caminho do sol do meio dia. Eles passam sem deixar rasto, sem ruído de marulho de água, deixando atrás de si uma chuva salgada de diamantes que transforma toda a lama em fragrância, toda a matéria em luz, esvaziando o tempo de suas tristuras e purificando a morte de suas paixões. Os de proas altas e bordos baixos navegam imersos na névoa, empurrando na proa uma vaga de papoilas e carreiam crianças brincando, seus chapéus enfeitados com violetas, seus bolsos abarrotados de laranjas e romãs. E navegam na esteira deles as bateiras que trazem os que viveram de esmola e de aflição, suas velas douradas, suas cavernas de marfim, distribuindo sorrisos e perfumes de serenidade; eles mesmos as guiam, sentados ao leme, como príncipes de um reino escondido que já lhes pertencia muito antes da grande festa. E depois vêm as atrelagens de cavalos engalanados com penachos, galopando em silêncio, seus olhos luminosos, suas narinas engolindo a névoa, seus arreios de cambraia, guiados pela voz das mulheres, vestidas de flores de romãzeira. São tantos e de todas as pelagens, parelhas de todas as raças, de todos os tamanhos, que se espalham pelo infinito, transportando criaturas que cantam Aleluia em louvor dos Elohims.

Miríades de silhuetas silenciosas, sem nome nem forma, erguem-se do pó que se aglutina em cristais luminosos e fundem-se numa dança de luz que abrasa todo o horizonte, engolindo o sol e as estrelas, os pensamentos e os desejos, o bem e o mal, o tudo e o nada. Depois do último som de trombeta, da última badalada de sino, do voo do último gavião, o silêncio. Por todo o universo apenas ecoa o tilintar de um travão num rodízio de nora, que a derradeira andorinha ainda não deixou o ninho, escondido por debaixo da trave de carvalho que sustenta o engenho. E a última vaca roda pelo passeio do poço, indiferente ao mundo torturado pela última seca, acertando o passo pelo ritmo de um tango verde que anuncia a Alvorada.

No dia da Grande Misericórdia, eles serão tantos que ninguém jamais os poderia contar. Somente o anjo negro de asas negras, criado desde antes de todos os seres para acompanhar a euforia da vida, sabe o nome de cada um, desde o primeiro impulso vital até ao supremo momento do seu derradeiro suspiro. Ele conhece até as emoções mais secretas de todos quantos morreram sem chegar a nascer e daqueles mortos que voltaram a viver. Nada escapa ao olhar penetrante do anjo que tem presente, num só reflexo de luz, todas as histórias de todas as vidas e de todas as paixões.

No derradeiro cais da história da vida encontram-se, num único momento sem passado nem futuro, todas as criaturas que partilharam a energia vital, despojadas de todos os adornos provisórios que as distinguiam e as diferenciavam, libertas de todas as ideias e de todas as regras que afectaram a história do mundo. Ao som das trombetas dos anjos da luz o espaço e o tempo concentram-se num só momento, no único lugar do espanto e da verdade, quando todas as criaturas finalmente se encontram com elas mesmas e com o seu destino.

Num único e silencioso olhar o Criador identificará cada criatura, concebida desde antes do começo do tempo para sua alegria e glória e cada ser reconhecerá finalmente o seu lugar em toda a história da vida, entenderá a razão para a qual nasceu e a do tempo provisório que durou. Nesse mesmo momento todo o universo será abalado pelo som de um imenso clamor, o das criaturas cantando Aleluia em honra do Santo Nome, que jubila com a beleza incomparável da sua obra e a imensidão do seu poder.

O estrondo desse clamor apagará o brilho das estrelas e as galáxias entrarão em colapso, prelúdio de uma nova criação, feita de desejos ainda mais poderosos, para satisfazer a bondade e a suprema inteligência do Amor, que exulta num orgasmo cósmico, na alvorada do oitavo dia da Criação: tudo isto é lindo!

Para todos os que amam a vida e domam a morte, Feliz Ano Novo

 

1 de Janeiro de 2008, Hamilton.

A vida de um emigrante tem o seu purgatório sofrido e as suas revoltas contidas. Bemvindo a todos os países desenvolvidos, o português é conhecido pela sua tenacidade e pelo seu desempenho, pela capacidade de adaptação às situações mais extremas e sobretudo pela sua eficiência produtiva, apesar de nem sempre as condições de trabalho serem justas e humanas. Os açorianos que chegaram às Bermudas depois de 1948 não podiam trazer com eles esposas e filhos; todos aqueles que tinham chegado antes de 1957 só em 1960 puderam fazer chegar mulher e filhos com menos de 14 anos. Apenas em 1968 é que foi permitido a todos os imigrantes açorianos com mais de 7 anos de residência nas Bermudas juntar a família e em 1973 puderam finalmente usufruir das mesmas regalias que os outros trabalhadores europeus não pertencentes ao Commonwealth. Durante muitos anos eles foram vítimas de discriminação, de muitas injustiças e humilhações. Mesmo assim, valia a pena sofrer para conseguir longe do seu lar aquilo que no país jamais poderiam alcançar.

O grande artesão da luta pelos direitos dos trabalhadores açorianos foi o padre Filipe Paiva Macedo que durante 24 anos assistiu a comunidade portuguesa, de 1958 a 1982. Em 1962 foi nomeado vice-consul de Portugal e em 1966, com o apoio da igreja Anglicana e de outras igrejas reformadas, intensificou a sua campanha junto do poder político das Bermudas em favor dos direitos dos imigrantes. Pelo seu desempenho e pela sua tenacidade, recebeu do governo português a comenda da ordem do Infante em 1968. No final da sua estadia nas Bermudas a Igreja Católica concedeu-lhe o título de Monsenhor. Faleceu em 1992 na casa a que chamou Vila Bermuda, na sua terra natal, Ruivães, aos 78 anos.

Quando o padre Macedo chegou às Bermudas, Manuel Eduardo de Melo tinha 18 anos de idade. O seu pai tinha chegado antes de 1948 e por isso pôde trazer a família em 1950. Exemplo de adaptação às circunstâncias e às oportunidades, o garoto que abalou de São Miguel com 10 anos e a terceira classe de escolaridade, que aos doze anos conduzia sozinho uma carroça puxada por um cavalo vendendo legumes pelas ilhas, cresceu e transformou-se em empresário nos ramos da importação e do espectáculo, trazendo às Bermudas nomes como Mahalia Jackson, Ray Charles, Stevie Wonder, Charlie Pride, Hank Williams Jr. e, como não podia deixar de acontecer, Tony de Matos e Amália Rodrigues. Nos últimos tempos e por iniciativa dele, aqui se exibiram as grandes estrelas do reggae da Jamaica. Dono da Music Box, o espaço mais selecto e mais completo em tudo quanto se refere a música, ele é hoje cidadão bermudiano e o patriarca dos imigrantes do após-guerra, tendo contribuído para a coesão e o bem-estar da população imigrante açoriana. Pelos seus serviços em prol da comunidade foi agraciado pelo governo português com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique e pelo governo inglês com o Queen´s Certificate of Honour.

Nem tudo é riqueza e sucesso neste paraíso sofisticado do primeiro mundo onde os portugueses detêm o poder produtivo e não são as decorações nem as honras de fachada que resolvem os problemas de um quotidiano recheado de muitas desilusões. Tem filhos dos imigrantes que não sabem nem querem falar português, língua que os segrega dos demais de cultura anglo-saxónica e que os identifica às suas origens: um arquipélago de um país de pobreza e de mesquinhez, que não se empenha em mostrar aos outros os atractivos da sua cultura e a riqueza da sua história. Sem apoios, sem investimento cultural e sem referências positivas do país de origem, eles distanciam-se de uma identidade que os humilha e tentam construir outra, adaptada ao espaço sócio-político onde pretendem integrar-se, desejosos de ultrapassar as dificuldades e os preconceitos. Porém, desprovidos de meios, apenas conseguem atingir o patamar das imitações.

Regressou finalmente a Hamilton, por um período de dois meses, um agente consular para assistir às necessidades legais da comunidade; muitos ficaram privados de viajar pelo Natal por não terem podido renovar os seus passaportes. Os responsáveis pelos serviços consulares tinham-se entretanto esquecido de pagar a renda do espaço que ocupam e, sob a ameaça de despejo do local, foi um membro da comunidade quem salvou a situação, assumindo o compromisso do pagamento da dívida e evitando mais uma vergonha para a comunidade. ” Mais vale tarde do que nunca”, reza um ditado bem português, mas parece que os atrasos, os esquecimentos e as coisas mal feitas são mesmo uma doença endémica. Passámos, durante a nossa viagem, por lugares como Recife, São Luís do Maranhão e Belém do Pará e em todas estas cidades onde vivem grandes comunidades de portugueses, muito mais numerosas que a das Bermudas, ouvimos as mesmas queixas e o mesmo desencanto em relação à atitude do governo português. Deverá haver uma razão para o que está a acontecer com as representações consulares, mais convincentes do que os cortes orçamentais, mas os cidadãos portugueses merecem pelo menos uma explicação plausível, para além do direito que lhes assiste de poderem resolver os seus problemas de cidadania. Humildes e resignados, eles não fazem estardalhaço da sua situação precária, mas não merecem nem nunca mereceram ser tratados como se fossem “os cafres da Europa”, como já acontecia no tempo de Vieira. É uma questão de justiça e de respeito pela pessoa humana, no tempo do jesuíta valores do futuro, hoje direitos universais.

A noite passada, no ginásio de uma escola secundária, decorado com balões e fantasias, cerca de meio milhar de açorianos festejaram a passagem do ano. Fomos convidados para a grande festa onde abundava comida, vinho e espumante, mas onde a única coisa verdadeiramente portuguesa era a música pimba. Tinha muitos casais de idosos, uma grande maioria de homens sozinhos de meia idade e poucas crianças, cerca de duas dúzias, traquinas e irreverentes como todas as crianças; destas, apenas meia dúzia se exprimiam em português. Como vem acontecendo em muitas partes do mundo para onde emigraram grandes levas de açorianos e de madeirenses, eles vão perdendo irremediavelmente a sua identidade quando não possuem um suporte cultural adequado. Foi isso que aconteceu na Guiana inglesa, na Jamaica, em Hawaii; na população destes estados corre uma percentagem considerável de sangue português, mas a sua origem étnica esvaziou-se do conteúdo cultural, servindo apenas de matriz genética para outra cidadania. Um desperdício.

 

2 de Janeiro de 2008, Hamilton.

Os hotéis das Bermudas estão cheios de gente que veio festejar o Natal e o Ano Novo neste paraíso de doçuras e por estes dias vão-se embora, permitindo algum repouso a quem preserva e mantém esta ilha em permanente estado de festa, como se cada dia tivesse uma parada de bonecas. Mas 2008 entrou com temporal que esta manhã quebrou ramos de árvores centenárias, despenteou a copa dos coqueiros e arrancou dos seus suportes as grinaldas e os votos de Boas Festas.

Um aspecto positivo desta escala é o de termos conhecido um pedaço da diáspora portuguesa, único no mundo pelas suas características e pelas condições em que vivem e trabalham os imigrantes açorianos. Em apenas 21 milhas quadradas de terra firme, estas ilhas possuem 15 fortificações antigas, 57 hotéis e 50 parques públicos, alguns minúsculos, mas autênticas obras de bijutaria da jardinagem. Na manutenção destes espaços que sustentam o turismo encontramos, quase em regime de exclusividade, a marca de qualidade da experiência açoriana. São deles as empresas, eles empregam hoje trabalhadores bermudianos e estrangeiros, sobretudo filipinos. Algumas dessas empresas têm ao seu serviço mais de duas dezenas de bermudianos, cidadãos que usufruem de todos os direitos civis e constitucionais, enquanto os donos das empresas, alguns com mais de 20 anos de residência, não têm direito de voto nem usufruem dos mesmos direitos que os seus empregados. O mesmo acontece na área da construção civil, a actividade do sector primário que cria mais emprego nas ilhas.

Uma avaliação feita por Eduardo de Melo revelou que a iniciativa empresarial portuguesa é hoje responsável por mais de 45% de todos os salários pagos nas Bermudas, sendo ainda ela quem acolhe cerca de 75% de todos os trabalhadores estrangeiros em regime de contrato. Depois da construção e da jardinagem os dois sectores onde mais se concentra a mão de obra açoriana são o da limpeza e o da hotelaria. Em 1967 e 1968, quando o padre Macedo era vice-cônsul de Portugal e lutava pelos direitos dos trabalhadores açorianos, ele fez parar durante 18 meses o fluxo de imigrantes das ilhas, o que provocou quase um colapso na economia das Bermudas, forçando o governo a conceder aos trabalhadores com mais de 7 anos de residência o direito de trazer as famílias.

Este arquipélago minúsculo e solitário do Atlântico possui o maior rendimento per capita, os salários mais elevados e o nível de vida mais sofisticado do planeta. Os detentores do poder político são hoje os descendentes dos escravos negros de há 175 anos, os actores do poder produtivo são os descendentes de portugueses provenientes de outro arquipélago, a 1.800 milhas mais a leste, do mesmo oceano. Nestas ilhas todos chegaram de algures, ninguém pode reclamar direitos de autóctone; apenas se defendem direitos adquiridos e convenções sociais. O equilíbrio sócio-económico de um padrão de vida tão elevado num espaço tão pequeno tem as suas exigências e uma grande complexidade, difícil de abranger em pouco tempo por quem passa.

As outras grandes comunidades de descendentes de açorianos e madeirenses que ainda mantêm laços estreitos com as suas origens estão espalhadas por todo o continente americano: são as canadianas de Toronto e de Brampton, as americanas de Fall River, New Bedford e Newark, as brasileiras de Santa Catarina, totalizando hoje mais de meio milhão de cidadãos. Numerosos emigrantes das ilhas encontram-se misturados com os que abalaram do continente, em outras comunidades ainda mais numerosas e mais diversificadas. Parece que não há recanto do mundo civilizado onde não se aconchegue um português.

O padre António Vieira foi, também ele, um emigrante. Primeiro emigrou o pai para ocupar um cargo público em Salvador da Bahia, deixando sozinhos a mulher e o filho em Lisboa durante seis anos. António só conheceu o pai com seis anos de idade, chegou ao Brasil em 1615 com 7 anos e foi lá que cresceu e se formou, voltando a Portugal com 33 anos. Desde as primeiras intervenções públicas que ele mostrou o seu empenho na defesa dos interesses da sua terra de adopção: o que era da Bahia e do Brasil devia lá ficar, para não ser desperdiçado em Lisboa e Madrid. Depois que regressou à terra onde nasceu ganhou outro fôlego para defender que o Brasil, com os seus negros e o seu açúcar, tinha por missão salvar o reino. Ele tornou-se, como muitos emigrantes do nosso tempo, cidadão do mundo e defensor dos valores dos seus compatriotas, concebendo uma globalização à maneira de um império sem fronteiras onde caberiam todas as raças, em português. Ele merece o título de cidadão número um de uma das maiores epopeias genéticas e culturais da história da humanidade.

 

3 de Janeiro de 2008, Hamilton.

Segundo a opinião de um professor e pastor de uma paróquia anglicana, haverá duas principais razões que justificam as regras severas para o acesso à plena cidadania bermudiana. A primeira delas é de âmbito político e tem a ver com o poder do voto democrático: se, de repente, os residentes permanentes e os trabalhadores contratados obtivessem o direito de voto isso aumentaria de 36.000 para mais de 50.000 o número de votantes, o que provocaria um desequilíbrio das forças partidárias com consequências imprevisíveis para o futuro político do território. A segunda é de ordem sócio-económica: este espaço tão pequeno, onde a riqueza não se concentra nas mãos da maioria negra que detém o poder político, tornar-se-ia propriedade de uma minoria poderosa e recém-chegada às ilhas. Desde meados do século passado que o governo bermudiano impõe restrições severas à imigração das famílias também por razões demográficas: o aumento de uma população estrangeira a um ritmo superior ao da população negra provocaria sérios desequilíbrios sociais. Os limites territoriais das ilhas, que cabem em 21 milhas quadradas, não comportam uma população permanente mais numerosa que a actual. Os imigrantes açorianos, reconhecidos como os mais produtivos e mais eficazes no desempenho laboral, foram os mais visados nas restrições impostas, porque entrariam aqui com outro bom desempenho, o de uma prole à novena e à dúzia.

Ao longo da história, os emigrantes portugueses das ilhas, que não exibiram o seu patriotismo comandando grandes expedições nem deixaram muitos nomes sonantes nos pergaminhos das glórias efémeras do reino, foram pioneiros no processo de colonização dos espaços conquistados. Foram madeirenses que levaram apara o Brasil a cana de açúcar, foram açorianos os primeiros a desbravar sertões do norte e do nordeste brasileiro, sofrendo o impacto da novidade e expondo-se a perigos contra os quais tinham que inventar a cada dia uma estratégia de sobrevivência. Numa das suas cartas do Maranhão, o padre António Vieira menciona a extrema indigência em que viviam algumas famílias originárias das ilhas, num meio hostil, abandonadas à sua sorte. Do Amapá a Santa Catarina e à Lagoa dos Patos, os vestígios do pioneirismo dos emigrantes das ilhas espalham-se por toda a costa brasileira e testemunham a coragem e a ousadia de gente humilde, mas inconfundível na mancha humana do planeta.

Nos países onde se instalaram, menos restritivos quanto ao acesso à cidadania, os descendentes dos imigrantes ocupam hoje os mesmos cargos e as mesmas funções que os demais cidadãos, plenamente integrados na sociedade, tendo construído uma nova identidade sobre os alicerces genéticos que, através dos nomes e das fisionomias, ainda revelam as suas origens. O que resta é por vezes dificilmente reconhecível, mas o desejo de recuperar os laços quase perdidos faz parte hoje em dia de uma das mais poderosas forças psíquicas dos cidadãos das sociedades evoluídas, empenhados cada vez mais em tomarem consciência dos elementos que constituem a sua personalidade, para melhor entenderem a sua própria história. O célebre quadro de um emigrante francês chamado Paul Gauguin e pintado em Taiti há mais de um século atrás, Que somos, donde vimos, para onde vamos, é o símbolo e o paradigma da epopeia da definição da Identidade na alvorada do século XXI.

Também não lhe apetece visitar o continente, pelo que lhe contam os amigos que por lá passam e pelo que vê na televisão. Espera ainda que um dia o governo das Bermudas lhe permita ser cidadão de corpo inteiro, porque este é o espaço onde construiu a sua vida. Gostaria de continuar a falar português com muita gente, mas um “português de lei” como ele diz, aquele que se fala no continente e no Brasil. Porém, nas Bermudas não existe uma única biblioteca com livros portugueses, nem qualquer apoio de Portugal à preservação da língua e da cultura, para além da televisão por cabo, dos filmes brasileiros ou dobrados em português que se alugam nos videoclubes.

Na paróquia metodista que frequenta, muitas famílias de açorianos não querem sequer que os filhos falem português, para não serem descriminados na escola como cidadãos de baixa classe e até adaptam os seus nomes a uma grafia que os aproxime da serenidade e do respeito dos demais. A cultura portuguesa, espalhada durante séculos à custa de tantos sacrifícios e de tanto heroísmo, não pode permitir-se tais desperdícios. É uma questão de dignidade.

 

4 de Janeiro de 2008, Hamilton.

Os católicos representam oficialmente cerca de 10% da população das Bermudas, espalhados por seis paróquias; a grande maioria deles é de origem portuguesa, aos quais se juntaram, ultimamente, os trabalhadores temporários de origem filipina, polaca e alguns brasileiros. A paróquia mais importante é a de Santa Teresa, a única católica da capital, cuja igreja é também a Sé Catedral da diocese que comemorou recentemente 40 anos de existência. Apenas um dos padres que servem as paróquias é bermudiano, os outros são polacos e canadianos; o bispo da diocese é americano. O padre Júlio (Zdzislaw) Blazejewski, um polaco nascido em Poznam, que foi na primeira fase da sua vida jogador profissional e internacional de futebol, é o vigário episcopal para a comunidade portuguesa, o único que fala português. Todos os padres, à excepção do bermudiano, pertencem à congregação religiosa de Cristo Redentor, de origem polaca, espalhada por vários países do continente americano. O padre Júlio veio do Brasil, onde prestou serviço durante cerca de 20 anos em dioceses dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro e assiste a comunidade portuguesa da capital desde há ano e meio.

A única missa celebrada em português em toda a diocese é a das 8,30 da manhã de Domingo na igreja de Santa Teresa, mas a assistência raramente ultrapassa 60 a 70 pessoas; os católicos praticantes portugueses dividem-se em menor número pelas outras paróquias de língua inglesa. Uma dezena de jovens frequenta, ao Sábado, a catequese em português, mas a prática religiosa destes imigrantes residentes que se declaram católicos vem decrescendo drasticamente nos últimos anos. Por outro lado, tem havido uma crescente adesão dos mais jovens às igrejas reformadas, provocada, segundo o padre Júlio, pelo desejo da nova geração de se integrar na comunidade bermudiana e evitar a descriminação.

Os imigrantes açorianos mais velhos gostariam de ter a presença de um padre português como há anos atrás e queixam-se da falta de assistência religiosa; porém, a diminuta prática religiosa dos católicos não justifica a permanência de um sacerdote exclusivo para uma comunidade que cada vez mais se dilui numa sociedade onde as igrejas reformadas dominam pela sua vitalidade. Percorrendo as ilhas, é fácil observar a forte componente religiosa deste povo pela quantidade e pela aparência cuidada dos templos, mais de 130 ao serviço de outras tantas comunidades, por vezes exíguas mas dinâmicas. Não tive conhecimento da existência de nenhuma sinagoga, mas existe nas proximidades da igreja católica uma mesquita onde se reúne a comunidade muçulmana e vêem-se na rua muitas mulheres exibindo o véu islâmico.

Na catedral, construída há cerca de 70 anos pelos açorianos e dedicada a uma das suas devoções tradicionais (Vieira pregou em São Miguel um sermão dedicado a Santa Teresa em 1654), a imagem do Senhor Santo Cristo tem lugar de relevo e a maior festa religiosa é a do Espírito Santo, à qual acorrem em massa os imigrantes, até aqueles que normalmente não frequentam a igreja. A missa do galo, pelo Natal, é o segundo ponto de encontro religioso mais importante da comunidade. Nos últimos cinco anos a paróquia apenas registou um casamento entre portugueses e nenhum baptismo. Na biblioteca, os livros religiosos em português resumem-se a dois missais, uma bíblia e meia dúzia de catecismos; o padre Júlio queixa-se que tem dificuldade em encontrar alguém que faça as leituras na missa dominical, porque os mais velhos desculpam-se invocando que se esqueceram dos óculos, alguns deles não sabem ler correctamente um texto e os mais jovens, pouco habituados à leitura em inglês e menos ainda em português, têm vergonha de se expor em público.

Num ambiente de primeiro mundo a imagem da igreja católica é ambígua: os templos estão impecavelmente mantidos, possuem estruturas de apoio vastas e de qualidade, mas o conteúdo e o funcionamento revela pobreza e decadência. À excepção do jovem padre bermudiano, formado no Canadá e ordenado recentemente, os outros sacerdotes são idosos. A boa vontade e o zelo pastoral não parecem ter um apoio doutrinal atractivo nem a mensagem será porventura adaptada às necessidades do meio e do século. Animados de um espírito missionário e de uma fé sem fronteiras, eles empenham a sua vida numa missão quase impossível, sem condições para competir com a vivacidade e o dinamismo das igrejas reformadas. Algumas comunidades religiosas que se dedicavam ao ensino venderam os seus colégios e as suas escolas a entidades laicas bermudianas, privando assim a igreja católica de um apoio educativo substancial.

O futuro da igreja católica nas Bermudas parece-se com o da comunidade portuguesa que tem constituído a sua principal fonte de aderentes: uma diluição progressiva numa comunidade mais dinâmica e melhor apetrechada para seduzir os mais jovens e até abalar a fidelidade dos mais velhos. O coro da catedral está com falta de vozes e o órgão muitas vezes fica silencioso por não ter ninguém disponível para lhe afagar as teclas. Os cânticos em português já não ecoam há anos no templo que pode conter mais de seiscentas pessoas, mas que raramente acolhe uma centena. Uma capela lateral foi recentemente apetrechada para receber duas dezenas de fiéis, criando assim um ambiente mais apropriado e aconchegado para a celebração de uma eucaristia dominical diminuta. Sinais dos tempos difíceis e de um futuro incerto para a igreja católica nas Bermudas. O Quinto Império não mora por aqui.

 

8 de Janeiro de 2008, Hamilton.

Damião de Góis (1502-1574) foi o espírito mais brilhante e mais esclarecido do seu tempo, um dos portugueses mais eruditos de toda a história do país, na vanguarda ideológica do momento em que viveu, um homem que dialogou com as figuras mais emblemáticas da Europa que lhe foram contemporâneas. Ao serviço dos reis D. Manuel e D. João III ele percorreu a Europa da Flandres à Polónia e à Itália, conseguindo tempo para frequentar as universidades mais célebres de então e para pegar em armas quando foi necessário defender a sua cidade atacada. Fora das fronteiras do reino ele foi grande, considerado e respeitado pelos poderes políticos, apreciado pelos intelectuais, deixando por onde passou a imagem positiva de cidadão de um país virado para o futuro. Tudo começou a correr-lhe mal quando regressou ao reino: intrigas e denúncias destruíram a sua imagem, despojaram-no da sua fortuna, desfizeram a sua família, o tribunal da Inquisição moveu-lhe um processo e encarcerou-o aos 70 anos. Despojado de tudo e na indigência, morreu vergonhosamente aos 72 anos, à paulada, numa estalagem de carreteiros. Um seu contemporâneo, Garcia da Orta, médico famoso com obras publicadas em francês e italiano, foi também um dos portugueses mais famosos do seu tempo enquanto viajou por terras distantes, mas tornou-se vítima dos mesmos poderes clandestinos quando regressou ao país. Génios houve, nesse século português de todas as euforias, que escaparam ao sacrifício da perseguição, como Pedro Nunes e André de Resende, mas muitos deles, antes e depois, foram vítimas do mesmo espírito mesquinho que parece uma má sina grudada ao destino de alguns dos mais nobres valores da nossa história.

Vieira foi vítima dos mesmos poderes clandestinos e das mesmas perseguições, um século depois de Góis e de Orta. O país continuava a viver com duas fachadas, uma a de um poder político espalhafatoso mas fraco e sem rumo, outra a de um poder religioso clandestino mas poderoso. A inveja, a cobiça e a intolerância alimentavam o quotidiano de um país sem rumo e sem futuro, afundando-se ano após ano numa pobreza insustentável. A Restauração da monarquia em 1640 não trouxe novidade para a solução deste problema velho de um século: D. João IV, tão culto quanto vaidoso, era também fraco e indeciso, e não ousou mexer no ponto mais delicado e mais sensível para uma verdadeira retoma da plena independência do reino. O jesuíta reflectia assim sobre os factos, em 1674: Dizia el-rei e a rainha que estão no Céu (D. João IV e D. Luísa de Gusmão) que, depois de recuperado e restituído o Reino, só faltava uma fortaleza por conquistar, que era a do Rossio (o palácio da Inquisição) , onde se encastelaram tantos traidores como naquele tempo se experimentou, e hoje se experimenta, posto que com menos declarados pretextos. S.A. (D. Pedro II) tem agora a ocasião de derrubar e avassalar o orgulho e rebelião desta fortaleza, não com a sua mão senão com a do Pontífice (…) A causa já não é dos cristãos-novos senão da Fé e da Igreja, a que S. A. não pode negar sua protecção e auxílio; e fazendo-o acudirá à primeira obrigação da sua consciência e ofício, e ganhará fama imortal com o mundo … Mas o regente também não o fez, não teve coragem de abolir de uma vez por todas o tribunal da Inquisição, com o consentimento e o apoio do papa Clemente X, proezas que Vieira tinha conseguido em Roma e das quais tanto se orgulhava.

O povo bruto e ignorante gostava por demais do espectáculo das fogueiras, do cheiro a carne queimada. Os intelectuais conformados do país deliravam com as condenações dos espíritos turbulentos, que ousavam expor em público as verdades inoportunas. Mal Vieira abalou do reino para o Brasil em 1681 que os tribunais inquisitórios reabriram e as fogueiras se reacenderam, a primeira delas para o queimar a ele mesmo em efígie, nas ruas de Coimbra. O poder clandestino instituído em 1536, que tinha excomungado o rei D. João IV e o tinha submetido a uma cerimónia macabra depois de morto, que dominava os interesses do reino e paralisava a acção dos soberanos, só no tempo do marquês de Pombal foi controlado e só foi extinto em 1821. Durou 285 anos. Mas os portugueses continuam a delirar com os poderes paralelos, aqueles que perturbam a acção, os que embargam os projectos inadiáveis, os que prolongam sem razão as decisões urgentes sob pretexto de ponderação, os que se escondem por detrás do muro do silêncio em segundo plano os que espalham o medo e ameaçam com sentenças, os que desprezam e humilham quem produz, os fracos armados, os ignorantes prepotentes, os que rezam sem fé e os que só acreditam no poder de um deus exclusivo. A nossa democracia republicana precisa de ser abalada por um vendaval de quebrar os ramos e sacudir as raízes, para rebentar, qual árvore ferida, com os valores da autenticidade de um povo que já conheceu a grandeza. Quando acontecer, será de madrugada.

 

9 de Janeiro de 2008, Smith´s Sound.

O mestre de uma embarcação, seja uma simples baleeira, um iate de competição ou uma grande barca de pano redondo, tem que poder resolver na hora qualquer problema que possa surgir a bordo, seja ele mecânico, eléctrico, hidráulico, de carpintaria ou do velame, um leme quebrado ou uma via de água. A segurança dos navegantes está no traquejo de quem comanda a embarcação, executando a manobra correcta no momento certo, evitando o pânico e as tentativas ao acaso. Um barco é feito para ficar ao decima de água seja qual for a tormenta, e não há razão para se afundar desde que devidamente governado. O maior perigo de afundamento no mar é o do abalroamento e a causa mais comum dos naufrágios é o encalhe em baixios ou em rochas submersas, perigos resultantes de um descuido de vigilância ou de uma rota perdida.

Um velho ditado diz que quem vai ao mar avia-se em terra e ninguém pode contar de facto com o que vai pescar para sobreviver nem ninguém pode largar as amarras sem que tudo a bordo funcione correctamente. Passada a barra tudo se torna mais difícil: caminhar num convés, dormir, alimentar-se, passar horas ao leme e dominar a ansiedade. A tempestade OLGA despejou sobre nós a fúria dos seus 65 nós de vento; a essa velocidade qualquer centímetro quadrado de espuma que embata no nosso rosto tem o mesmo efeito de uma pedra arremessada a curta distância, corta-nos a pele ou provoca um hematoma. Os agasalhos de qualidade são de rigor e ninguém consegue aguentar-se de pé num convés, pelo que o porte de um arnês devidamente agarrado a um cabo sólido é a única hipótese de uma pessoa poder manter-se a bordo. Quando o veleiro capotou, os prejuízos foram mais graves: antenas e bóias desaparecidas dos seus suportes, luzes de posicionamento arrancadas, material de cokpit levado pela borda fora, um postigo quebrado por uma panela que saiu do seu encaixe, enfim toda a espécie de material do interior que se deslocou entre o tecto e o soalho em menos de um minuto de tempo, transformando os poucos objectos em vidro e porcelanas em cacos perigosos. A água salgada invadiu espaços que normalmente exigem ficar ao seco como o quadro eléctrico, a bobina do gerador, as cartas marítimas, transformando a embarcação num pandemónio. Mastro, velas e cordame não sofreram com o acidente, cada coisa estava no seu lugar e no seu lugar ficou.

Refazer tudo o que ficou inutilizado em menos de um minuto requer dois a três dias de trabalho, substituindo o material deteriorado. Nem foi tanto o prejuízo material, que não ultrapassou os 350 euros, mais complicado é o trabalho a executar, como foi também o de proceder à limpeza geral do veleiro até aos mais ínfimos recantos e de algum material delicado como a bobina do gerador que foi necessário desmontar e o quadro eléctrico. Dentro de três dias tudo estará a postos para a última etapa desta viagem.

A tripulação desta viagem atribulada de regresso é de uma qualidade ímpar, suportando e superando com coragem exemplar todos os obstáculos que as fúrias do oceano e a impiedade dos humanos distraídos nos atravessam no caminho. Mas havemos de chegar a mais um porto, ao abrigo de mais um cais, para nos entendermos com a nossa história de vida e nos reencontrarmos, cada qual com o seu destino. Até pode ser que haja surpresas.

 

 

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