CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA
2 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Ariano Suassuna, uma das figuras de maior relevo da cultura literária portuguesa contemporânea, nunca saiu do Brasil e poucas vezes de Pernambuco. Até há muito pouco tempo tinha pavor de entrar num avião, o que limitava os seus deslocamentos, mas recentemente voou até Salvador da Bahia para receber a homenagem que lhe prestaram pelos seus 80 anos e já garantiu a sua presença no Carnaval de São Paulo de 2008, onde vai ser homenageado e figurar num dos carros alegóricos de uma Escola de Samba. O autor do Auto da Compadecida, do Romance da Pedra do Reino, poeta e ensaísta, professor universitário e actualmente Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, não precisa de apresentação. A sua obra atingiu uma dimensão universal e Ariano merecia ser proposto como candidato a um prémio Nobel de Literatura, para glória e valorização da língua portuguesa. Deixaram-se passar vultos como Catulo da Paixão Cearense, Miguel Torga, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, talvez outros mais, por descuido e ignorância das nossas instâncias políticas e culturais, tanto portuguesas como brasileiras, que não assumiram a responsabilidade que lhes compete na defesa e na difusão dos valores próprios à nossa língua e culturas comuns.
Há alguns anos tomei a iniciativa de convidar Ariano Suassuna a visitar Portugal, mas as sete horas de avião que separam Lisboa de Recife eram demasiado longas e apesar de uma grande amizade que nos une há anos, o pavor venceu. “Se Portugal fosse em Alagoas, ou na Paraíba”, dizia ele… O escritor recebeu-nos Terça-feira na sua casa centenária do bairro de Casa Forte, decorada ao gosto de um estilo “armorial” de sua criação, desta vez para falarmos do padre António Vieira e do nosso trabalho. Num exercício prodigioso de memória, ao longo da entrevista que gravámos com ele, Ariano debitou trechos inteiros de alguns sermões daquele que ele considera o maior escritor de sempre de toda a prosa portuguesa e o maior patriota luso-brasileiro da nossa epopeia comum. Com Vieira a língua portuguesa assumiu a sua maioridade e conquistou o seu lugar no pódio dos grandes idiomas do mundo. Convidei Ariano Suassuna a contribuir com um texto de sua autoria para o Livro sobre Vieira.
Foi na onda das comemorações dos 400 anos do nascimento do jesuíta e no calor emotivo do nosso encontro que reiterei o convite de uma visita a Portugal, ao qual ele respondeu: “Abreu, desta vez você não me dá nenhuma chance de eu não ir!”. Resposta gravada na câmara de vídeo! Se não for antes, será certamente nos primeiros dias de Fevereiro do próximo ano que nos encontraremos em São Paulo, a convite da direcção da Escola de Samba que o vai homenagear no seu enredo e recordar Vieira. Eu acredito que nesse momento Ariano estará decidido a viajar até Portugal.
Aqui morava um Rei, quando eu menino:
Vestia ouro e castanho no gibão.
Pedra da sorte sobre o meu destino,
Pulsava, junto ao meu, seu coração.
Para mim, seu cantar era divino,
Quando, ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca o desatino,
O sangue, o riso e as mortes do sertão.
Mas mataram meu Pai. Desde esse dia,
Eu me vi, como um cego, sem meu guia,
Que se foi para o sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa,
Ele, a brasa que impele ao fogo, acesa,
Espada de ouro em pasto ensanguentado.
Ariano Suassuna, Sonetos, 1980
3 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
O Real Gabinete Português de Leitura de Recife é um edifício imponente, construído de raiz para ser o guardião dos valores linguísticos e culturais de Portugal; situado na cidade velha, não tem a fachada sofisticada do Gabinete do Rio de Janeiro, mas é mais vasto e diversificado nos serviços que oferece e nos espaços generosos que dispõe, ricamente decorados. O salão nobre pode acolher mais de 600 pessoas e nas suas estantes encontram-se colecções de valor inestimável. Nele está exposto um pedaço da hélice de um dos aparelhos com que Gago Coutinho e Sacadura Cabral conseguiram a travessia do Atlântico sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, despenhando-se e naufragando várias vezes pelo caminho e uma outra hélice, inteira, da primeira travessia nocturna do Atlântico sul, esta bem sucedida, corriam os anos 20. Na sala de leitura aberta ao público fomos encontrar, ao lado dos principais jornais brasileiros e pernambucanos, o Diário de Aveiro e A Voz de Azeméis, edições de há poucos dias atrás.
Outro edifício que engrandece a presença portuguesa em Pernambuco é o Real Hospital Português, a melhor instituição de saúde de todo o nordeste brasileiro, como acontece em outras cidades tais Salvador, Rio, Santos, etc. São brasileiros, filhos em segunda e terceira geração de emigrantes portugueses, que administram e mantêm estas instituições como um símbolo vivo do apego à terra-mãe, que lhes define e alimenta uma identidade.
O Estado de Pernambuco tem aproximadamente a mesma superfície que Portugal, a mesma população e a mesma forma geométrica: um rectângulo, com a diferença da sua orientação, este-oeste. A cidade de Recife tem, como a capital de Portugal, à volta de 3 milhões de habitantes; são três os clubes de futebol, o Sport, o Santa Cruz e o Náutico, com os respectivos estádios. Tem uma coisa que Lisboa não tem, um Jockey Clube com corridas de cavalos. Lisboa tem fado e revista, Recife tem forró, maracatú e baião. Acima de tudo esta terra tem um clima abençoado todo o ano, um oceano manso e verde, paisagens deslumbrantes na zona do Agreste e brilha no Sertão o mais emocionante luar do mundo.
Nesta cidade nasceu o pedagogo Paulo Freire, no bairro da Casa Amarela; aqui se formou e aqui concebeu, com outros companheiros entre os quais Ariano Suassuna e Francisco Brennand, o seu método de educação de adultos inspirado na utilização do teatro como elemento dinamizador e libertador das consciências. Hoje o seu nome é referência mundial em metodologia de alfabetização de adultos e termina este ano o decénio definido pelo Institute of Education da Unesco sobre alfabetização e cidadania, que tem o seu nome. Portugal, único país europeu com uma taxa vergonhosa de analfabetismo de quase 10%, não beneficiou deste programa; um dia os responsáveis pelo nosso sistema educativo, políticos, universitários, autarcas, sindicatos e os próprios professores, deverão ser julgados por este e outros atentados à cidadania.
Ontem à noite recebemos a visita a bordo do professor Jomard Moniz de Brito, que foi companheiro de Paulo Freire em Brasília no plano nacional de alfabetização do governo de João Goulart e que assistiu à sua prisão pelos militares do golpe de 64. Também foi um colaborador muito próximo de Agostinho da Silva, nos últimos anos da sua trajectória brasileira. Trazia com ele uma mão cheia de gente apaixonada por Vieira, pelos judeus de Pernambuco, pela poesia popular, pela educação do futuro, para nos embriagarmos com os sonhos vadios do desfecho de todas as utopias, aliviando o CHIC de um peso excessivo de líquidos perversos. Outros companheiros das lides académicas dos anos passados vêm esta noite e no fim de semana.
Foi também ontem que pifou o carregador de bateria de um dos computadores; o ambiente húmido de um barco tem os seus percalços anunciados, provocando um desgaste prematuro do material – e de nós mesmos. Também pifou o “relais” do guincho da âncora, mas esse é mais fácil de encontrar, numa loja de peças para veículos pesados. Esperamos pelo material de vídeo complementar da EUROPAN de São Paulo, parceira desta empreitada e pela câmara de vídeo Sony MiniDV que avariou e teve que ser reparada na capital paulista, graças ao empenho pessoal do colega de seminário José Peralta, aveirense de Vagos, enraizado há mais de meio século na grande metrópole brasileira, professor aposentado da Universidade de São Paulo e reitor da Universidade Europanamericana (EUROPAN). Tudo isso faz parte do nosso quotidiano de incertezas, que exige uma gestão técnica e financeira para a qual nem sempre estamos preparados. O nosso trabalho é do pesado, sem tréguas para limpar as armas, sem arsenal de apoio. A peça do computador nem sequer existe no Brasil, mandá-la vir de Portugal significaria acrescentar incertezas ao nosso cardápio de problemas, por isso vamos recorrer à nossa imaginação e ao “jeitinho” dos brasileiros para resolver a questão. Coisas sérias do nosso quotidiano imprevisível, do nosso jeito irreverente de andar por aqui, vivos catando vida.
“No dia da messe hão-nos de medir a semeadura, hão-nos de contar os passos” (Vieira, Sermão da Sexagésima)
4 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Há 157 anos que o Gabinete Português de Leitura cumpre o seu objectivo: “unir os portugueses residentes em Pernambuco, fomentando a sua unidade moral e congregando-os no culto à Pátria Portuguesa e amor ao Brasil”. Dotada de uma biblioteca de 80.000 volumes, frequentada diariamente por mais de uma centena de pessoas, a instituição pretende “crescer, cada vez mais, para servir melhor, não só à comunidade, mas a Portugal e ao Brasil, com um único objectivo: ser um elo cultural, ponto de encontro e intercâmbio entre nações irmãs”. Fomos recebidos pelo seu Presidente, Vicente Miranda Reis de Melo, um aveirense de Alquerubim, há mais de meio século em Pernambuco. Acertámos os detalhes para o lançamento dos nossos Livros no Estado de Pernambuco, que poderá ser aqui mesmo, no próximo ano, o espaço mais adequado para as comemorações dos 400 anos do nascimento de Vieira, que dedicou à causa pernambucana muitos anos do seu génio político e estratégico. Esta proposta tem o acordo do Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, Ariano Suassuna. A difusão da Exposição sobre Vieira, da responsabilidade da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), terá o seu itinerário e calendário próprios.
Há 140 dias que vivemos a bordo deste veleiro que é a nossa casa, o nosso transporte, local de trabalho, ponto de encontro com os interlocutores que encontramos ao longo da nossa rota, tudo em cerca de 40 metros quadrados habitáveis, onde tem que haver lugar para os livros, computadores, máquinas de imagens, instrumentos de navegação, depósitos de água e carburante, cozinha, dispensa, frigorífico, quartos de banho, camas e mesa, louça, guarda-roupa e uma quantidade impressionante de miudezas indispensáveis ao nosso conforto e à nossa segurança. Basta que uma só coisa esteja fora do lugar para transformar este brinquedo sofisticado num pandemónio insuportável. Cada dia que passa me impressiono com a qualidade e a segurança deste pequeno navio com 17 anos de idade, rápido, resistente e confortável. Exige manutenção e cuidados, mas satisfaz plenamente as nossas necessidades. À chegada a Recife tive que proceder em pleno mar à mudança da correia do alternador e da bomba de água que apresentava um desgaste anormal; constatei que a polia do alternador não correspondia ao desenho do perfil da correia, provavelmente devido a uma substituição da peça feita anteriormente por algum mecânico menos competente. A maresia é particularmente dura para os sistemas eléctricos, que têm que estar permanentemente sob vigilância: o “relais” do guincho da âncora ainda não foi substituído, falta comprar a peça. A avaria do computador é mais grave do que pensávamos, a humidade afectou peças interiores, para já está inutilizável.
A viagem de Aveiro até Salvador foi muito pesada para o velame; as nossas velas, reparadas em Salvador graças ao patrocínio da DURIT, satisfazem as necessidades da navegação ao longo da costa brasileira. Temos um estai suplementar de apoio, auto-portante, recortado numa velha genoa e o “spi” colorido para os dias de bafos ligeiros. A vela grande é a nossa grande preocupação, toda remendada numa verdadeira operação de estética geral, inapta para uma travessia do Atlântico. Necessitamos absolutamente de uma vela nova para a viagem de retorno. Já imaginámos uma maneira de angariar alguns dos fundos necessários: recortar a vela velha em pedaços, vendê-los como recordação desta viagem, devidamente identificados e assinados pela tripulação.
O nosso trabalho vem sendo reconhecido por todos os interlocutores, desde a comunicação social até às mais altas instâncias políticas e académicas como um empreendimento de grande relevo e qualidade, obtendo o reconhecimento do seu valor e da sua oportunidade através dos organismos oficiais, implicando meios financeiros avultados e resultados garantidos, o que contrasta com os problemas de subsistência e de apoio com que nos debatemos cada dia. Os nossos instrumentos de trabalho estão reduzidos neste momento a duas câmaras fotográficas e um computador.
Seja qual for o desfecho desta empreitada, ela é uma história muito edificante a ser contada, uma “história do futuro”, que ninguém será obrigado a ler. Estamos de largada de Recife com destino a São Luís do Maranhão, repensando a passagem pela Serra de Ibiapaba, a “menina dos olhos” das missões de Vieira. Depois, em São Luís, veremos o que podemos fazer; “Et vogue la galère!”
7 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Ontem foi dia de festa em Olinda, festejava-se o padroeiro da cidade, São
Salvador. A procissão religiosa da tarde foi o acto mais vistoso,
saindo da igreja de São Pedro, na parte baixa da cidade e terminando
na Sé Catedral da diocese, a segunda mais antiga do Brasil. Lá
se encontra a campa rasa de D. Hélder Câmara, visitada todos
os dias por peregrinos de todo o Brasil e do estrangeiro.
Para além de ser “património da humanidade”, Olinda é uma cidade bonita, recheada de verdura e de monumentos arquitectónicos, os mais importantes restaurados a partir de 1654, depois da capitulação dos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais. Numa gravura holandesa anterior a 1638, representando Olinda e Recife, vêem-se desenhados os principais monumentos que ainda hoje constituem o património da cidade: a catedral do Salvador, a igreja e colégio dos Jesuítas onde Vieira ensinou, o convento dos franciscanos, o dos beneditinos, o dos carmelitas, a igreja de São Pedro e a câmara municipal. As casas de uma arquitectura tipicamente portuguesa exibem fachadas coloridas ao longo de ladeiras estreitas e íngremes, calçadas em granito. Ao longe, erguem-se os edifícios da metrópole nordestina, alinhados ao longo da costa atlântica e dispersos para o interior, onde largas avenidas bordadas de árvores de grande porte servem de acesso aos bairros periféricos que não cessam de crescer.
Pernambuco tem muito de que se orgulhar, desde o início
da colonização, por ter sido uma das duas capitanias viáveis,
por ter abrigado o primeiro autor a escrever um texto publicado, o cristão-novo
Bento Teixeira, autor da Prosopopeia, pelos seus heróis da resistência
aos holandeses, pela rebeldia dos seus intelectuais, enfim pela sua diferença
em relação ao resto do Brasil. Muitas preocupações
causou Pernambuco a D. João IV, que confiou na sagacidade do padre
António Vieira a solução de problemas graves em tempo
de crise. O rei chegou a considerar a hipótese de deslocar para aqui
a família real, afim de escapar a uma possível investida espanhola.
8 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Sei que a chuva não quebra osso,
que há defesas contra seu soco.
Mas sob a chuva tropical
me sinto ante o Juízo Final
Em que não creio mas me volta
como o descreviam na escola:
mesmo se ela cai sem trovão,
demótica, em sua expressão.
No Recife, se a chuva chove,
a chuva é a desculpa mais nobre
para não se ir, não se fazer,
para trancar-se no não-ser.
(…)
Há no Recife uma outra chuva
(embora rara) rala, miúda.
Não como a chuva da chuvada
que cai, agride e é pedra de água.
Passa em peneiras esta chuva,
não traz balas, não tranca ruas:
mas faz também ficar em casa,
quem pode, antevivendo o nada.
(João Cabral de Melo Neto, 1982)
Densa como um canavial onde nem os preás se atrevem, pesada e escura como um mangue nocturno, é a chuva do Recife, a onça caetana dos alagados, que faz do Capibaribe uma enxurrada, das ruas da cidade um caos de lama e transforma os vivos em cadáveres anunciados, sem se anunciar. A cidade flutua em águas, as do oceano, as do rio a as da chuva, que a cada segundo que passa lhe roubam mais um punhado de terra, da tão pouca que sobra, e lhe retiram alguma vida das muitas que não têm nome nem rosto, vidas severinas que vagabundeiam nas suas fendas de betão, por entre as estacas fincadas na areia macia. Tem mangas esborrachadas na interminável Avenida Norte, tem siris correndo pelo asfalto e cadelas catando osso a esventrar sacos de lixo, tem criança arrastando carrinho e pangaré esfolado de boca escancarada, puxando carroça; a chuva invade até às entranhas as criaturas desprevenidas, toma conta delas como um orixá peçonhento, mistura pó e bafo num só cálice amargo e febril, dilui, desfaz, arrasta e enxagua a vida. Chove no Recife.Tem uma garça branca que todos os dias à mesma hora pousa num poste da rede que cerca a marina, mesmo à beirinha do CHIC e fica ali, insensível ao vento e à chuva, olhando fixamente para mim cada vez que apareço na gaiuta. Parece convidar-me a viajar no seu corpo branco e ligeiro, para um destino que só ela enxerga, algures no fim do mundo onde a chuva não molha, onde o sol não queima.
9 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
No dia da Grande Misericórdia, o anjo negro de asas douradas executará a tarefa para que foi criado antes do princípio do mundo: emudecer todas as línguas, apagar todas as palavras, abafar todos os sons. Todas as tintas de todas as páginas de todos os livros, todas as formas de todas as letras de todos os idiomas, mais os símbolos que representam e significam, tudo será transformado num amálgama de matéria inerte e soprado pelo anjo para os confins do espaço, onde brilhará como um cometa nas noites dos mundos que vão nascer. O anjo branco de asas negras soprará na trompeta da Verdade e do silêncio do fim do tempo surgirá a satisfação plena de toda a matéria amalgamada em formas irreconhecíveis de criaturas de razão sem número e sem nome, unidas num só lugar pelo mesmo desejo que um dia as fez nascer.
A minha garça branca de patas negras e bico dourado, companheira das madrugadas febris e das alvoradas sem luz, voará no espaço vazio da Infinita Compaixão à frente de todos os bichos e de todas as vidas peregrinas dos ventos, das águas e das lamas, sem destino fixo nem desejos que perturbem o seu rumo. No meio deles vai um anjo verde de asas de fogo, iluminando o caos com labaredas de turmalina, as mesmas do primeiro calor do mundo, que cobrem com um manto de luz todas as paixões incendiadas. Os cavalos galopam na retaguarda do exército da garça branca, seus olhos de fogo, suas crinas prateadas, seus dorsos salpicados de diamantes e o último de todos, com um penacho de diamantes, é o meu cavalo alazão, suas narinas de fogo, seu peito de cristal, sua cauda de seda dourada.Na alvorada do oitavo dia da Criação, só mesmo a suprema inteligência do universo vislumbra o rumo dos desejos, dos cometas e do voo silencioso das criaturas, semeando graça e beleza no vazio, para honra e glória do Seu Santo Nome. E as lamas do Capibaribe juntar-se-ão às areias cinzentas do Nilo, mais os pedregulhos do São Lourenço e a brita azul do Danúbio, tudo num só rio caudaloso de nuvens violetas, arrastando para o espaço desintegrado todos os pecados, todos os desejos insatisfeitos, todas as paixões proibidas, todas as coleiras que prendiam os cães, todos os freios que feriam as bocas dos cavalos, todas as gaiolas que prendiam os pássaros, mais as moedas que pesavam nas mãos dos reis e as esmeraldas que enfeitavam os colos das mulheres.
No dia da Grande Misericórdia, o anjo azul de asas de luz, silenciado o eco do derradeiro som, fixará o fim ao tempo e medirá a lavoura e os passos de cada criatura. Nada nem ninguém escapa ao olhar penetrante do anjo, criado antes do princípio do mundo para ser a derradeira chama da Justiça na escuridão que anuncia a próxima alvorada.
10 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Pernambuco é o mais português dos estados brasileiros – dizem-no sem pudor os mais conceituados intelectuais destas bandas, desde o escultor Francisco Brennand ao poeta Marcus Accioly, aplaudidos e apoiados pelos poetas repentistas como Ivanildo Vilanova e Oliveira de Panelas que encantam e emocionam multidões. Quando se considera a taxa de crescimento deste estado, a terceira mais elevada do Brasil e a taxa de analfabetismo, a terceira mais baixa, é certamente uma honra para os portugueses encontrar nestes trópicos uma identificação tão positiva e elogiosa. Quando se fala da história da presença holandesa, das guerras da resistência e da restauração, os heróis que expulsaram os holandeses são os “portugueses”, sejam eles os brancos do governador Matias de Albuquerque, os negros de Henrique Dias ou os índios de Filipe Camarão. A destruição de Olinda a 25 de Novembro de 1631 marcou o início da resistência, que não teve sucesso, tendo as tropas portuguesas recolhido para a Bahia, levando com elas alguns milhares de colonos. Os holandeses dominaram todo o litoral brasileiro desde o rio São Francisco até à serra de Ibiapaba, na fronteira do actual Piauí. No período do governo de Maurício de Nassau (1637-1644) os pernambucanos acomodaram-se à presença holandesa, mas a guerra de restauração recomeçou logo em 1645, tendo como momentos culminantes as batalhas decisivas do Monte das Tabocas nesse mesmo ano, e as duas batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. A capitulação holandesa aconteceu apenas em Janeiro de 1654.
Nessa data e nesse ano o padre António Vieira estava em São Luís do Maranhão e as suas preocupações eram outras. Em nenhum dos seus escritos deste ano ele deixa entender sequer que a questão de Pernambuco o preocupa; numa carta ao rei, em Abril, ele fala vagamente e a propósito do valor de alguns habitantes, da conquista do Maranhão pelos holandeses e da sua recuperação. Mas os pernambucanos não se esqueceram do jesuíta, por muitos considerado como um traidor. Já tinha começado a guerra da restauração pernambucana quando o padre fez chegar às mãos do rei aquele “papel forte” que apontava a venda de Pernambuco aos holandeses como uma solução para os problemas do reino. A proposta não vinha dele; ela foi feita em 1647 por Gaspar Dias Ferreira, um português de Pernambuco, amigo de João Maurício de Nassau, apoiada pelo embaixador em Haia, Francisco Sousa Coutinho, que chegou a iniciar negociações com a Companhia das Índias Ocidentais. O padre António Vieira, nas circunstâncias, para salvaguardar a coroa portuguesa da premente pretensão espanhola, teria apoiado essa solução, até porque se tinha já planejado a retirada da família real para o Brasil. No reino a situação era muito grave, dado que nenhum país reconhecia o rei D. João IV, nem mesmo a França, inimiga da Espanha. No final da sua vida o jesuíta dirá que a ideia não foi sua, apenas a transmitiu por solicitação do embaixador, mas os pernambucanos nunca lhe perdoaram tal tropelia.
No centro de todas as suas viagens à França e à Holanda estava a questão de Pernambuco. O açúcar era a grande riqueza do tempo, riqueza cobiçada que escapava aos portugueses e que podia salvar o reino. A cobiça era tanta que originou a criação da maior companhia comercial do mundo e em moldes modernos: uma sociedade por acções com 19 administradores e uma presidência rotativa, dotada de mais de uma centena de navios. O peso do embaixador ou do legado de um rei sem futuro e sem navios junto de uma empresa deste gabarito era muito pouco, sobretudo que a companhia ainda estava de pedra e cal ao longo de toda a costa ocupada e os seus navios controlavam o tráfico marítimo. O padre Vieira já tinha proposto ao rei, antes das suas viagens a Amsterdão, a criação de uma companhia semelhante, com capitais judaicos, mas os poderes clandestinos do país e a indecisão do rei adiaram esta solução que só veio a acontecer em 1649, quando os holandeses foram expulsos de Angola e os portugueses puderam retomar o tráfico de escravos. Das suas investidas diplomáticas junto dos holandeses pouco resultou, para além da compra de uma fragata chamada Fortuna.
“Sem Angola não há negros, sem negros não há açúcar e sem açúcar não há independência de Portugal” – raciocínio cínico e cruel, mas esse era o tempo, esse era o modo e o legado do rei raciocinava assim. Também os negros de Pernambuco, como os demais do Brasil, não gostam de Vieira que não os terá defendido com a mesma força e as mesmas armas com que defendeu os indígenas. A verdade é que a defesa dos indígenas não representava para Vieira uma finalidade em si, ela representava a pacificação e a unidade do Brasil e essa era a sua tarefa de missionário, de estrategista e de patriota. Os sermões que pregava eram momentos teatrais de euforia, como que a parte lúdica da sua vida de cidadão do mundo.
11 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
Não fosse a decoração em relevo numa das paredes da entrada do Gabinete Português de Leitura, nenhuma efígie nem estátua do padre António Vieira decoraria os lugares públicos da cidade de Recife. Os pernambucanos não guardam dele boas recordações; a sua passagem por Olinda foi efémera, dois ou três anos na sua juventude e aquele “papel forte”, porventura mal entendido, deixou cicatrizes. Porém, nos alfarrabistas (sebos) da cidade, qualquer volume dos seus sermões, mesmo exemplares avulsos, da edição Lello ou de qualquer uma das edições brasileiras, está a preços exorbitantes. Um exemplar do livro de João Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, publicado em Lisboa em 1931, está à venda por 500 reais (200 euros). A Vida do Padre António Vieira de João Francisco Lisboa, publicada no Rio de Janeiro em 1948 está pelo mesmo preço. Sendo o mercado um indicador mais que perfeito do real valor dos produtos, parece que o venerável jesuíta tem cotação nas feiras.
Talvez os pernambucanos não saibam quanto o padre trabalhou por uma causa que não era só deles, mas de todo o reino e das suas “conquistas”. Ele sabia quanto o Brasil e o reino deviam a Pernambuco desde os seus 16 anos e na carta anua que ele foi incumbido de redigir, o primeiro dos seus textos, não deixou de prestar homenagem ao governador Matias de Albuquerque que veio de Pernambuco em socorro da Bahia em 1624, o qual voltaria onze anos mais tarde, desta vez à procura de refúgio, derrotado na sua capitania pelos holandeses. Vieira pregou sermões sublimes quando a Bahia estava a ser atacada e nunca teve oportunidade de o fazer por Pernambuco, onde os holandeses assentaram arraiais durante 24 anos. Por várias vezes ele refere, nas suas cartas, os heróis de Pernambuco e é justamente um deles, o estratega dos incêndios dos canaviais em 1639 e 1640, o homem de confiança que ele pede a D. João IV como governador do Maranhão e do Pará em 1655. Esse mesmo André Vidal de Negreiros fará a caminhada a pé por terra firme entre São Luís e Recife, quando foi tomar posse como governador de Pernambuco em 1658, e essa proeza foi o resultado do trabalho dos missionários de António Vieira na pacificação dos indígenas da serra de Ibiapaba, no Ceará. A unificação do Brasil estava assegurada e a estratégia saía do génio político do jesuíta.
Os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais tinham abandonado o litoral brasileiro em 1654 mas nada garantia que não voltassem outros; ninguém mais do que Vieira conhecia a capacidade militar e financeira daquele povo temerário e ousado, que partilhava com a Inglaterra o domínio dos oceanos. Ele tinha planejado adquirir fragatas na Holanda para criar uma armada, mas a escassez de verbas limitou a compra a uma só, chamada Fortuna. Quem dominava os mares dominava o mundo, isso não era segredo para ninguém, como também todos sabiam que Portugal não tinha capacidade para defender os territórios das suas “conquistas” e era um reino fragilizado e vulnerável. Morreu o rei seu amigo em 1656 e o herdeiro sadio tinha morrido três anos antes; o sucessor era menor de idade, demente, inapto para governar. Morreu o seu grande amigo, cúmplice e confidente, confessor da rainha, o padre André Fernandes, em 1660. Nos rios do Pará e do Maranhão, pelas picadas e pelas areias infestadas de cobras e mosquitos, o jesuíta lutava sozinho, contra todas as adversidades, pelo futuro de um reino sem rumo, um futuro de glória que só ele enxergava.
Pernambuco iniciava a sua restauração e o Brasil ganhava a sua unificação graças aos caminhos seguros por terra e por água criados pela implantação estratégica das missões jesuítas, de norte para sul e do litoral para o interior. Salvar o reino era uma missão e a missão era uma bandeira que nem as dos paulistas, como a de Raposo Tavares que ele admirava e elogiava, mas que detestava, por ser de gente rude sem moral nem religião. É que o futuro do reino estava escrito nas profecias antigas e até nas mais recentes, muito embora as coisas não fossem evidentes e necessitassem de interpretação. Esta seria a tarefa do resto da sua vida, não fossem as forças perversas e clandestinas tramar a sua perda e colocar pedras no meio do seu caminho.
Em Setembro de 1661 todos os padres jesuítas das
missões do Maranhão foram presos e enviados para o reino;
Vieira tinha 53 anos e sofria de paludismo. Um dos heróis de Pernambuco,
Francisco Barreto de Meneses, governava o Brasil, outro desses heróis,
André Vidal de Negreiros, governava Angola. As ideias do missionário,
denunciadas pelos seus adversários políticos e religiosos,
levavam-no ao banco dos réus do tribunal da Inquisição
e à prisão. A profecia é uma inspiração
sublime, mas de futuro incerto.
13 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
A diversidade do Brasil é impressionante, não só nas suas paisagens variadas como sobretudo nas suas gentes. Da densa floresta tropical ao deserto mais despido de vegetação o país tem todos os climas; não há regras fixas para definir as linhas de demarcação entre os negros mais escuros e os loiros mais absolutos de uma população jovem em permanente efervescência. Se Salvador da Bahia é a cidade mais africana do Brasil, Recife será a cidade mais brasileira do nordeste, onde os negros de cabelo loiro e olhos azuis podem ter o apelido de Vanderbilt e as índias de cabelo de azeviche e olhos verdes chamarem-se Isabel de Montalvão. O sotaque pernambucano, muito diferente do bahiano, choca pela sua cantoria; a culinária não tem os mesmos sabores nem os mesmos condimentos. O maracatú não tem nada de semelhante a sul de Recife assim como o samba não emociona ninguém a norte de Aracaju.Os pernambucanos consideram-se o povo mais acolhedor de todos os estados do Brasil, tanto ao longo da história desde a colonização como nos tempos actuais e defendem esta ideia com argumentos contundentes; na Bahia os indígenas mataram e comeram o primeiro donatário da capitania, o primeiro bispo e o primeiro francês que por lá passou. Na ilha de Marajó assaram e comeram de uma só vez 13 missionários. Nada disso aconteceu por aqui.
Também se consideram os mais portugueses de todos os brasileiros, são sentimentais e supersticiosos, alimentam paixões e utopias. No ano de 1836 a seca e a fome dizimavam o sertão do nordeste. O jovem imperador D. Pedro II tinha apenas 11 anos e por todo o Império levantavam-se revoltas populares: no sul a guerra dos Farrapos, em São Paulo e Minas a dos Liberais, na Bahia a dos Malês e a Sabinada, no Maranhão a Balaiada, no Pará a Cabanagem… Na serra do Catolé, município pernambucano de São José de Belmonte, apareceu um profeta chamado João António dos Santos, que anunciava a existência de uma cidade encantada, soterrada por debaixo de dois pedregulhos num sítio denominado Pedra Bonita. Durante dois anos percorreu os caminhos do sertão, cativando os flagelados e semeando esperanças.
Era a Cidade do Paraíso Terrestre, que já tinha sido anunciada antes por um outro profeta nordestino. Nessa cidade soterrada resplandecente de riquezas reinava El-Rei D. Sebastião, encoberto desde a fatídica jornada do verão africano de Alcácer-Quibir, que aguardava um desencantamento para surgir de novo com todo o esplendor do seu poder encoberto. Para quebrar o encanto seria necessário sacrificar crianças e moças virgens, derramando sangue inocente sobre os dois pedregulhos afim de libertar o rei e o seu povo. Quatro dias depois do sacrifício, 260 anos depois do seu encobrimento nas areias de África, as duas pedras da serra do Catolé afastar-se-iam para abrir passagem ao rei desejado à frente do seu exército libertador, seu cavalo baio, sua armadura reluzente de ouro, para libertar o povo da miséria, para distribuir comida e fazer chover. Um sapateiro profeta tinha anunciado 300 anos antes: “este rei de grão primor / com furor / passará o mar salgado, / em um cavalo enfreado / e não selado / com gente de grão valor. / Este diz que socorrerá / e tirará / aos que estão em tristura”. Em 1618, 40 anos depois do desastre de África, tinha aparecido um cometa, visível em todo o mundo durante 65 dias e o grande Vieira deu-se um dia à tarefa de fazer as contas e os cálculos astrológicos: o ano de 1838 teria uma grande revelação profética, 65 vezes 40. E o cometa voltou a aparecer nesse mesmo ano, contavam-se 260 depois da peleja fatal.
Entre 14 e 17 de Abril de 1838 foram mortas pelos próprios pais 45 crianças e o seu sangue derramado sobre os pedregulhos da Pedra Bonita, mas El-Rei D. Sebastião não cumpriu o prometido. O profeta foi preso e morto pela populaça quando era levado pela polícia a caminho de Recife; este é o triste destino dos profetas, sempre incompreendidos pelo seu próprio povo, que apenas sabe reconhecer os sucessos e não sabe conter os desesperos – por isso nunca ninguém foi profeta na sua terra! O próprio Vieira nunca chegou a redigir o teor da sua profecia, o grande projecto da sua vida ficou inacabado. A mão quebrada, os olhos sem luz…
As pedras do reino desejado continuam no mesmo lugar, impávidas e serenas na aridez do sertão do Pajeú, envoltas em mistério, silêncio e poeira, torradas pelo sol implacável dos dias e banhadas pela suavidade do luar das noites mais lindas do mundo. Com o rumo da lua cheia, cada uma delas projecta a sua sombra sobre a outra, num acasalamento ritual, perpetuando a génese de todos os reinos perdidos, de todos os impérios desejados e de todas as utopias reencontradas. Duas estátuas em pedra, enfeitadas com a exuberância do simbolismo armorial nordestino, representam o casal mais célebre do mundo, Nossa Senhora e São José. Ao lado, está espetada no chão uma cruz de madeira tosca, vazia. É o nordeste da nossa identidade!
17 de Agosto de 2007, Recife.
08 04´47”S, 34 53' 23”W
A 26 de Novembro de 1695 despedia-se da vida, nesta cidade de Recife, o grande jurista e poeta debochado Gregório de Matos, um dos grandes nomes da literatura portuguesa. Morreu seis dias depois de Zumbi, o herói emblemático do quilombo de Palmares; tinha 59 anos e regressara pouco tempo antes de um exílio forçado em Angola. Foi contemporâneo de Vieira, os dois conheceram-se e encontraram-se em Salvador, dado que Gregório esteve refugiado com o irmão e o sobrinho de Vieira no mesmo convento de Santa Teresa quando foram acusados de serem os responsáveis pela morte do alcaide da cidade, provavelmente até terão viajado na mesma frota de Lisboa para Salvador em 1681. Gregório menciona o jesuíta no seu estilo provocador, incluindo-o na ala dos “bestianistas” (sebastianistas) e Vieira terá desabafado com os seus colegas de Companhia que as rimas de Gregório tinham mais impacto junto do povo do que os seus sermões. Como acontece com o jesuíta, ninguém sabe onde param os ossos do poeta.
Também nós nos despedimos hoje de Recife, com rumo à pequena cidade de Camocim (uns 40.000 habitantes), perto da fronteira do Ceará com o Piauí, para, a partir daí, percorrermos os terrenos da grande missão de Vieira, porventura a mais importante de todas as suas missões, a da serra de Ibiapaba. O rei D. João IV tinha-lhe dado instruções muito genéricas sobre a maneira de actuar no Maranhão: “construir igrejas onde bem vos aprouver, nos lugares que escolherdes, e de fazer missões no sertão e nas regiões que vos parecerem mais convenientes, levando convosco os índios, fazendo-os sair do sertão ou deixando-os nas suas aldeias, tudo como entenderdes em vista da sua conversão”.
Os primeiros padres da missão de Ibiapaba chegaram à serra a 4 de Julho de 1656, após 35 dias de viagem, ao longo da costa, a partir de São Luís. A descrição que Vieira dá das aldeias da serra, depois de duas décadas de ocupação holandesa, é sugestiva: “eram verdadeiramente aquelas aldeias uma composição infernal, ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada de rebeldes, traidores, ladrões, homicidas, adúlteros, judeus, hereges, gentios, ateus, e tudo isso debaixo do nome de cristãos… Este era o miserável estado da cristandade da serra”. Graças ao trabalho dos padres, foi possível que o governador André Vidal de Negreiros fizesse por terra o percurso do Maranhão a Pernambuco em 1667, quando foi tomar posse do seu novo posto de governo na cidade de Olinda restaurada.
Vieira viajaria pessoalmente até à missão da serra em 1660, fazendo a viagem em 21 dias, caminhando ao longo da costa e levando com a sua comitiva uma canoa para atravessar os 14 rios que desaguam no Atlântico entre São Luís e Camocim. A fortíssima corrente marítima e os ventos contrários não permitem a navegação do Maranhão para sul, isolando aquele grande território brasileiro do resto do país. Era muito mais fácil navegar de São Luís a Lisboa do que da capital maranhense à Bahia. Sem a estratégica missão de Ibiapaba a colónia estaria dividida em dois territórios isolados. Foi a visão política do missionário que permitiu a unidade do território brasileiro, garantindo igualmente um espaço de penetração para o interior do território ao longo do rio Tocantins. Muito mais do que uma missão de catequese, a obra do missionário foi também uma missão política e territorial, unindo a obediência a Cristo e ao Rei numa única e imensa missão, um esboço do Quinto Império.
O vento sopra forte de sudeste e deverá colocar-nos
nas costas das dunas brancas em menos de cinco dias. Pouco acima de Recife
encontra-se o Cabo Branco, o ponto mais a Leste do território brasileiro,
como acontece em África. Há muitos milhares de milhões
de anos os dois continentes formavam uma só plataforma continental
e foram-se afastando até deixarem crescer entre eles um oceano inteiro.
Mas um dia os homens e os deuses dos dois continentes juntaram-se de novo,
movidos por razões nem sempre sublimes.
20 de Agosto de 2007, Oceano Atlântico.
04 46´00”S, 36 26' 00”W
Ao largo das plataformas petrolíferas da Urca do Tubarão, na costa do Rio Grande do Norte, o mar tem duas cores separadas por uma demarcação tão nítida e tão bem delimitada que podemos navegar ao longo dela com o costado de bombordo no verde e o de estibordo (boreste) no azul. Ao longo da costa, a partir da Bahia, a cor do mar é verde e é essa a cor do mar para toda a gente que algum dia o viu. Por isso os poetas escreveram coisas assim: “São uns olhos verdes, verdes, são verdes da cor do mar; quando o tempo vai bonança uns olhos cor de esperança…” Gonçalves Dias era do Maranhão, onde o mar é ainda mais verde. A plataforma continental brasileira estende-se por vezes até mais de 40 milhas com uma profundidade inferior a 30 metros; os recifes de coral e as algas que povoam estes baixos fundos dão ao mar esta cor de esmeralda, única no mundo.
O encontro com as águas verdes era antigamente o sinal mais evidente da chegada à proximidade da costa brasileira. Passámos ontem à noite o Cabo de São Roque, o mesmo que Vieira assinala na sua chegada à costa brasileira em 1653: “tivemos a primeira vista da costa do Brasil, que foi a terra dos baixos de S. Roque, sobre a ponta dos quais nos achámos no Sábado (11 de Janeiro) à meia noite, com trinta braças de fundo. Há daí ao Maranhão mais de trezentas léguas, e todas as que andámos com pouco pano, em três dias tanta é a corrente das águas”. Trinta braças (180 pés) são cerca de 50 metros de fundo, e o mar já é verde a essa profundidade, a 30 milhas ao largo do dito cabo. Vieira equivocou-se na distância para o Maranhão: 300 léguas seriam 1.500 quilómetros, 750 milhas. As milhas são cerca de 550, o que era possível de fazer em três dias, mas que de facto ele fê-las em quatro, dado o vento de sudeste e a corrente da água que no mês de Janeiro pode atingir os 2 nós à hora. No mês de Agosto a corrente atinge pouco mais de 1 nó, mas beneficiamos do mesmo vento favorável que nos levará até Camocim em menos de 48 horas.
Antigamente a navegação do reino para o Maranhão fazia-se em comboio onde seguiam todos os navios destinados ao Brasil, por razões de segurança; por alturas dos penedos de São Pedro e São Paulo e passada a linha do Equador, os do Maranhão abandonavam a frota e rumavam para o Cabo de São Roque para subirem a costa do Ceará aproveitando a corrente e os ventos fortes e favoráveis. Se algum desses navios, tendo alcançado o Maranhão, quisesse rumar para sul do Brasil teria de dar uma grande volta pelo Oceano rumando primeiro a nordeste e depois a leste até às alturas dos penedos, para em seguida retomar a rota da Bahia, uma viagem tão longa e difícil como a de regresso a Portugal. Foi por isso que todas as tentativas que o padre António Vieira fez para viajar de barco do Maranhão até à Bahia e mesmo até Camocim foram abortadas. Por estas bandas o mar e os ventos só permitem navegar num só rumo: o que levamos agora.
23 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Se existe ainda um vestígio do paraíso algures no mundo é aqui mesmo, neste município de Camocim. Todos os paraísos têm as portas de entrada bem guardadas e este então oferece-se o luxo de ter defesas naturais: poucas são as estradas que lhe dão acesso e do lado do mar tem uma barra difícil de entrar que só mesmo os pescadores locais conhecem e conseguem passar sem perigo. Era mais um desafio para a minha experiência de muitos anos de navegação e de muitas barras, mas não prescindi do apoio do telemóvel do senhor Messias, que da cabina do seu camião, postado mesmo à entrada da barra, seguia os meus rumos traçados ao GPS por entre os bancos de areia e os recifes. A ventania era medonha, mas uns metros quadrados de genoa ajudavam a dar velocidade e a manter o veleiro no rumo certo na crista dos vagalhões. Ao nosso lado negociavam a entrada da barra uma dúzia de embarcações de pesca de pequeno porte, cujo único modo de propulsão é a vela; dado o reduzido calado, não se preocupavam com os recifes nem com os bancos de areia, apenas com negociar as cristas de espuma. Passada a emoção da entrada deparámos com um espectáculo alucinante: centenas de embarcações de pesca de todos os tamanhos ao longo das praias, centenas de pessoas saudando a nossa entrada, dunas de uma brancura imaculada, florestas do início do mundo.
O padre António Vieira ficou assombrado com a beleza destas terras: “depois que se chega ao alto delas (na serra de Ibiapaba) pagam muito bem o trabalho da subida, mostrando aos olhos um dos mais formosos painéis, que porventura pintou a Natureza em outra parte do Mundo, variando de montes, vales, rochedos e picos, bosques e campinas dilatadíssimas, e dos longes do mar no extremo dos horizontes. Sobretudo, olhando do alto para o fundo das serras, estão-se vendo as nuvens debaixo dos pés, que, como é coisa tão parecida ao céu, não só causam saudades, mas já parece que estão prometendo o mesmo que se vem buscar por estes desertos.” O seu plano era de pacificar esta gente num ponto estratégico e muito vulnerável da colónia, para garantir a unidade territorial do Brasil, o que conseguiu, permitindo a ligação terrestre entre o Maranhão e Pernambuco: “sucedeu por este tempo fazer viagem o governador André Vidal do Maranhão para Pernambuco por terra, com aviso que lhe fizeram os padres que estava seguro o caminho”.
Fomos recebidos esta manhã na prefeitura com todo o aparato devido a forasteiros especiais. O edifício que abriga os serviços municipais é uma antiga estação de caminho de ferro inteiramente restaurada, a poucos metros do cais das embarcações de pesca onde estamos atracados, beneficiando da corrente eléctrica fornecida pelo município. Juntamente com as secretarias da cultura, da educação e com os serviços de comunicação, planificamos hoje os nossos itinerários pelos espaços das antigas missões da serra, para o que beneficiamos do apoio material de viaturas e pessoal da prefeitura de Camocim. Como em todas as cidades brasileiras, mesmo nos mais remotos recantos, existe aqui uma comunidade de portugueses que não tardou a chegar até nós, convidando-nos para o que melhor sabem fazer: matar saudades à roda de uma mesa farta.
Hoje de manhã cedo negociou a entrada da barra um veleiro americano de Clearwater, Flórida; um pequeno erro de navegação fê-lo bater num banco de areia, danificar o leme e encalhar numa zona desprotegida e perigosa. Não havia nada a fazer naquele momento senão esperar que a maré baixa deixasse de o massacrar; a meia maré montante aproximou-se dele um grande barco de pesca com a sua enorme vela de antena, manobrou para lhe lançar uma amarra, ofereceu todo o seu pano ao vento e arrancou-o da lama, trazendo-o para o cais de pesca. Não somente os pescadores não exigiram nada pelo resgate como ainda ofereceram aos americanos ainda traumatizados pelo desastre uma garrafa da melhor cachaça do Ceará. Isto já não existe mais em nenhum recanto do mundo e é aqui mesmo que nós estamos neste momento, 350 anos depois da missão de Vieira.
24 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Não digam a ninguém que esta terra existe. Porque depois eles chegam e descarregam nesta paisagem frágil e serena, feita de ternura e de melancolia, toda a obscenidade e todos os vícios das sociedades arrogantes e insatisfeitas. As dunas deixarão de ser brancas, o silêncio dos mangues será despedaçado com sonoridades metálicas, a paisagem onde a água e a vegetação se confundem será ordenada por critérios da geometria e da resistência dos materiais à gravidade e aos ventos, para satisfazer ambições e exibir o poder clandestino dos vícios instituídos.
Há 107 anos a cidade de Fortaleza, capital do Ceará, era exactamente como é hoje Camocim, com uma população que não chegava a 50.000 habitantes. Um século de ambições transformou o núcleo populacional que cresceu à volta de uma fortaleza construída pelos portugueses no início do século XVII numa metrópole ambiciosa e espectacular cujas imagens são mais significativas do que todas as palavras. A fortaleza que devia ter sido construída aqui no tempo de Vieira, meio século depois da outra, nunca chegou a erguer-se porque o navio que em Fevereiro de 1656 transportava os materiais para a sua construção e os homens que a deviam construir, “uma sumaca com um capitão e quarenta soldados e os materiais e instrumentos necessários à fábrica da fortaleza de Camuci”, nunca chegou ao destino. Vieira explica: “uma das mais dificultosas e trabalhosas navegações de todo o Mar Oceano é a que se faz do Maranhão até ao Ceará por costa, não só pelos muitos e cegos baixios, de que toda está cortada, mas muito mais pela pertinácia dos ventos e perpétua correnteza das águas”. Nenhuma dificuldade seria um obstáculo à temeridade de Vieira: se não se navega por mar, caminha-se por terra. E assim se fizeram as missões de Camocim e da serra, mesmo sem a protecção da fortaleza, graças à tenacidade e à pressão de um homem obstinado.
Os índios Tremembés da orla marítima renderam-se aos argumentos dos padres de Vieira; os Tobajaras da serra, entre os quais viviam muitos brancos de diversas origens, foram mais difíceis de convencer, mas tudo foi uma questão de tempo, paciência e estratégia, não sem correr alguns riscos. Desde esses anos até hoje esta zona fronteiriça entre os actuais estados do Ceará e do Maranhão tem preservado a sua qualidade de vida, simples, harmoniosa e natural. Mas que acontecerá a Camocim dentro de algumas dezenas de anos, com a pressão dos investidores no negócio da evasão turística, dos destinos exóticos e inviolados – uma nova missão do século das incertezas?
No tempo de Vieira as coisas passavam-se de outra maneira: “nos arredores da fortaleza do Ceará, distante de Ibiapaba sessenta léguas, vivem duas nações de Tapuias gentios, confederadas ambas com os Portugueses, mas inimigas entre si; uns se chamam Ganacés, outros Juguaruanas”. O missionário, habituado a resolver problemas políticos aparentemente sem solução, instruiu um dos seus padres, mandou-o para lá “e dali a três dias, em presença do padre e do capitão da fortaleza, vieram a fazer as pazes, que se celebraram solenemente entre estas e as mais nações ofendidas (…) Enfim, as duas povoações, que eram compostas de gentios e hereges, ficaram de todo cristãs”. O optimismo do jesuíta levou-o inúmeras vezes a exagerar até ao limite da extravagância os relatórios das intervenções dos missionários sob a sua jurisdição. Com ou sem os exageros da sua personalidade exuberante, as missões do Ceará foram o maior sucesso da sua actividade política e missionária entre 1653 e 1661. Ele mesmo pôs-se a caminho e fez o percurso a pé de São Luís a Ibiapaba em vinte e cinco dias, acompanhado por uma comitiva muito especial da qual fazia parte o filho de um cacique que ele tinha feito ir e voltar do Maranhão a Portugal; coisas arriscadas mas convincentes, que só mesmo os grandes políticos enxergam. O jovem indígena passou a chamar-se D. Jorge e Vieira tinha 52 anos.
25 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Hoje tive saudades da Ria de Aveiro. Talvez porque as dunas de Camocim se parecem tanto com as dunas da orla marítima aveirense, trocando os pinheiros pelos coqueiros, talvez pelos barcos à vela que enfeitam a paisagem como os moliceiros da minha juventude, talvez pelo vento que me lembra a nortada, ou ainda pelo cheiro a maresia, pela gente trabalhadora que vive numa harmonia perfeita entre água e terra. Os grandes barcos de pesca com velas de antena já não fazem parte da minha memória viva, mas fotografias dos anos 30 mostram-nos acostados ao Rossio descarregando sardinha, tais e quais como os de Camocim. A última vela bastarda que eu conheci na ria morava numa arrumada do meu avô e era o objecto mais cobiçado por mim; servia numa bateira pequena, uma “caíca” de caça ao jeito dos meus doze anos. Para pôr um termo às minhas loucuras de velejar com aquele pano sem jeito pelos canais, pegos e largos da ria, um dia a minha tia Cândida, a única sobrevivente da irmandade dos Frios do Facho, meteu as unhas àquele pano velho e rasgou-o diante dos meus olhos, provando-me assim que aquele pano fora de moda já não prestava para nada. E lá tive eu que continuar a velejar com sacos de serapilheira. As velas de antena e as bastardas continuam vivas nesta terra ímpar no mundo, enfeitando o quotidiano destas gentes simples e acolhedoras.
Talvez a saudade viesse através de um livro que o Luís comprou num alfarrabista, num “sebo” de Salvador, por um real: uma selecta de textos de Gilberto Freyre, organizada pelo próprio guru de Apipucos e publicada no Recife em 1971. No final dessa selecta encontram-se alguns textos poéticos que eu desconhecia por completo, nem nunca imaginei que o autor de Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mocambos, Nordeste, Ordem e Progresso, etc., se tivesse algum dia deixado desgarrar pela veia poética. Mas aconteceu e uma dessas poesias é dedicada à Ria de Aveiro.
Aqui o sargaço não é mato do mar,
com suas algas e seus restos de peixe miúdo.
A ria engorda a terra de Aveiro
com seus pirões de lodo macio,
mingaus de lama,
Caldos verdes de que a terra se deixa voluptuosamente embeber.
Este texto foi escrito em 1952, o criador do “luso-tropicalismo” estava em Portugal a convite do governo de Salazar, considerado nesse tempo como um modelo de gestão política para o mundo ocidental. Viajando por todo o território português o criador da antropologia cultural brasileira dedicou também poemas ao Algarve, às sardinhas de Portimão, a Sagres e ao mosteiro da Batalha. Significa isso que quando eu tinha 9 anos e andava à frente das vacas que puxavam os carros carregados de moliço, Gilberto Freyre andava também por lá, observando tudo aquilo com seu olho perspicaz, para publicar no ano seguinte Um Brasileiro em Terras Portuguesas – Introdução a uma possível lusotropicologia. A Ria impressionou-o o bastante para lhe dedicar um poema, que 55 anos depois me fez ter saudade da minha terra e da minha gente, só porque acertei naquela página de um livro velho, roído pelo cupim.
Talvez a saudade seja apenas o resultado de um corpo dorido por causa do incidente de ontem à noite. Fui dar uma caminhada pela estrada ao longo do rio, aproveitando o magnífico luar num céu sem nuvens. De repente surge por detrás de uma casa uma vaca com o seu bezerro atrás, coisa mansa que nem bicho de presépio, que deu vontade de fazer festinhas na cabeça. Gesto errado em momento inoportuno, sabe-se lá porquê a vaca encostou-me ao muro da casa bufando que nem gata assanhada. Felizmente que este gado de tipo zebu não tem cornos agressivos nem volume que impressione um forcado, mas as pisaduras ficaram como recordação do encontro com uma vaca cearense ao luar. Eram grandes e mansas, bem encornadas e bem nutridas, as vacas do meu pai que puxavam carradas de moliço, “pirões de lodo, mingaus de lama, caldos verdes” que embebedavam a terra. Saudades.
26 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
É quase lua cheia e as dunas de uma brancura imaculada espelham a sua pureza nesta paisagem única no mundo onde o silêncio impõe o ritmo e o fluxo do viver. Só há um país no mundo onde as bicicletas têm tanta importância como aqui, a Holanda. Ao longo do “calçadão” que acompanha o rio Coreaú quase até à barra, os cidadãos de Camocim passeiam a pé e de bicicleta tal como nas cidades holandesas.
Os primeiros portugueses a chegarem a estas terras foram dois missionários jesuítas, um veterano e outro jovem, os padres Francisco Pinto e Luís Figueira. O primeiro seria morto pelos indígenas logo em 1607, pouco tempo depois de ter chegado e o mais jovem rumou mais para norte com novos companheiros em 1623, dedicando catorze anos à evangelização dos índios e à assistência religiosa aos poucos colonos do Maranhão, sem grande sucesso. Conseguiram os padres criar alguma infra-estrutura de apoio às missões, como uma fazenda com gado e produção agrícola, mas foram morrendo sem serem substituídos. Decidiu entretanto o padre Luís ir a Portugal e convencer os seus superiores a reorganizar as missões do Maranhão, coisa difícil naqueles anos. Acabou por trazer com ele uma dúzia de novos companheiros para restabelecer as missões nesta zona entre a serra de Ibiapaba e o Maranhão. Ninguém sabe ao certo porque razão naufragaram na ilha de Marajó, acabando assados e comidos pelos indígenas em 1643. Este foi o trágico fim da primeira missão jesuítica por estas bandas.
Foram os franceses e os holandeses os primeiros a se apaixonarem por esta terra e nela assentarem arraiais com intuitos de exploração comercial. Em 1594 os franceses instalaram-se no Maranhão e a partir de 1630 os holandeses convenceram os indígenas de Ibiapaba a colaborarem com eles, o que aconteceu sem grandes atropelos até 1642. Os portugueses tinham construído uma fortaleza no Ceará antes da chegada dos holandeses, onde hoje fica a cidade de Fortaleza e os franceses tinham criado uma espécie de feitoria com um fortim de madeira e terra em Camocim. Tudo passou para as mãos dos holandeses a partir da ocupação de Pernambuco. Por razões hoje dificilmente inteligíveis sucedeu que pouco depois de 1642 os índios que até então se entendiam com os senhores do território decidiram liquidá-los. Conta Vieira: “ e o fizeram com tanto sucesso e resolução que, na fortaleza que tinham feito no Camuci, por engano, e na do Ceará à escala vista, passaram todos à frecha e à espada”.
No entanto os holandeses não desistiram e usaram de diplomacia para convencer os indígenas. “Pode contudo tanto a manha e a indústria dos Holandeses que, com dissimulação e liberalidade, tornaram depois a reconciliar os ânimos desta gente, e não só a fizeram amiga, mas a renderam e sujeitaram de maneira que quase se deixaram presidiar deles em suas aldeias, não havendo nenhuma em que não tivessem, como de sentinela, alguns holandeses”. Em 1654, depois da rendição dos holandeses em Pernambuco, esta zona de Camocim e Ibiapaba foi o refúgio de muitos brancos e indígenas que temiam a retaliação dos portugueses; foi esta situação que encontraram os jesuítas da missão de Vieira que aqui chegaram em Julho de 1656, após 35 dias de viagem a pé a partir de São Luís, depois das tentativas falhadas para levantarem uma nova fortificação de apoio em Camocim, decidida perlo governador André Vidal de Negreiros.
Não é certamente por causa da presença holandesa no século XVII que esta pequena cidade é hoje um paraíso para quem gosta de pedalar, mas a quantidade impressionante de gente loura de olhos azuis não deixa de testemunhar uma origem genética muito diferente da indígena. Aliás ainda não vi em Camocim um único cidadão negro nem mulato. O único afro-descendente que colora as ruas desta cidade neste momento é um artista de rua que trouxemos connosco de Salvador e nos acompanha até São Luís, que nunca enjoou, tomou posse da culinária de bordo, mas nunca aprendeu a andar de bicicleta. Chama-se Henrique, tem 42 anos e as suas caipirinhas com caju deixam qualquer forasteiro de olhos fechados.
27 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Há um trecho de Vieira no relatório sobre a missão de Ibiapaba muito intrigante, onde ele fala das lendas e das “ignorâncias” dos indígenas. “ dizem que os três principais das aldeias da serra têm debaixo da terra outras três aldeias muito formosas, onde vão depois da morte os súbditos de cada um, e que o abaré ou padre que lá tem cuidado deles, é o padre Francisco Pinto, vivendo todos em grande descanso, festas e abundância de mantimentos”. Esse padre foi dos primeiros jesuítas a criar a missão junto dos Tobajaras e foi sacrificado pelos índios Tocarijus, inimigos dos primeiros. A Cidade do Paraíso Terrestre, anunciada perlo profeta João António dos Santos, no sítio da Pedra Bonita da serra do Catolé, donde sairia o exército de el-rei D. Sebastião, também era uma cidade maravilhosa soterrada, onde reinava um rei sacrificado. Simples coincidência, ou prodígio do imaginário humano? Vieira resolve a questão de maneira mais simples: “ilusão do demónio”. Ou será que no imaginário indígena tem espaço para a criatividade de mitos de teor “sebastianista”, que não são muito diferentes dos muitos outros que enfeitam a criatividade de outras tantas civilizações do mundo?
A missão de Ibiapaba foi o resultado da insistência e da rebeldia de Vieira, contrariando as directivas do provincial do Brasil que mandou por várias vezes que os padres deixassem a serra e passassem para o Maranhão. As explicações dadas aos seus superiores sobre o extravio de cartas e outros incidentes não são nada convincentes; é mais convincente a sua teimosia e a sua persistência em transformar aquela região numa zona segura de obediência ao Rei e às normas do reino, cuja explicação final foi a seguinte: “O que podemos afirmar com toda a certeza é que a missão destes padres à serra de Ibiapaba foi ordenada por particular providência de Deus e que é vontade do mesmo Deus que assistam e continuem nela, de que nos tem dado tantos testemunhos, e tão claros, que não se podem duvidar”. Que poderiam acrescentar os seus superiores a um argumento tão piedoso? Entretanto chegaram novas ordens muito claras do reino pela mão do novo governador do Maranhão, D. Pedro de Melo – Vieira tinha-as pedido à rainha regente – para que a missão da serra continuasse.
O último acto de toda esta epopeia foi a viagem que Vieira faz à serra, acompanhado pelo filho do cacique mais antigo, o jovem D. Jorge da Silva. Vieira esperou que ele regressasse de Portugal, onde fora recebido na corte e rodeado de todos os favores, para assim fazer uma entrada sensacional pela serra, à altura das suas ambições. Afinal era ele o chefe desta empreitada missionária. Saiu a comitiva do Maranhão em Março de 1660, intentando fazer a viagem por mar, mas teve que desistir e fazê-la a pé ao longo da costa, transportando uma canoa para passar a foz dos 14 rios que desaguam entre São Luís e Camocim. Levaram 21 dias, chegando à serra a tempo para os ofícios da semana santa. A estratégia de Vieira foi mais uma vez muito eficaz. Ele ia entregar D. Jorge aos seus, um jovem que regressava de Portugal deslumbrado com o que viu e sobretudo coberto de honras e títulos de poder, uma garantia suplementar para os padres. Houve festa rija nas missões da serra e sobretudo o missionário aproveitou para impor mais disciplina e rigor em toda a missão, para forçar a deslocação para o Maranhão de indígenas provenientes de Pernambuco, coisas que foram aceites, nem sempre de boa vontade.
Amanhã vamos nós subir a serra, ao encontro das antigas missões e das cidades maravilhosas soterradas.
28 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Estas terras, habitadas por numerosas comunidades indígenas, foram procuradas desde os primeiros tempos da colonização por múltiplas razões: a suavidade do clima, a riqueza da terra, a facilidade da navegação de e para o reino. Na orla costeira habitavam os índios Tremembés, pescadores e cultivadores de mandioca; na serra moravam diversas comunidades de Tobajaras, caçadores, agricultores e colhedores de frutos, com uma estrutura social e familiar mais evoluída do que a dos vizinhos Tocarijus, nação guerreira e irrequieta. Disseminados entre a planície e a serra viviam várias tribos de indígenas mais rudes e primitivos, os Tapúias, que viviam do arco e da flecha, com os quais qualquer encontro era um perigo de vida. O acesso à serra fazia-se a partir de Camocim, penetrando pelo rio até à actual vila de Granja e depois iniciando a subida da serra por Sobral até à cidade actual de Viçosa. Camocim ou “Camuci” significa em língua Tupi o vaso de cerâmica onde se guardam os mortos, uma espécie de grande ânfora de barro vermelho onde os índios locais inseriam os corpos dos seus. Este culto dos mortos demonstra também o grau de evolução destas tribos em relação a outras muito menos avançadas.
Os primeiros europeus a frequentar estas terras de modo sistemático terão sido os franceses, a partir dos anos 1520; a divisão do território brasileiro em capitanias, na década de 30, não teve sucesso, porque apenas duas sobreviveram, defenderam os seus interesses e foram rentáveis: a de Pernambuco e a de São Vicente. Todas as outras foram fracassos irreversíveis e foi o que aconteceu à do Piauí e à do Ceará, território dos Tremembés e dos Tobajaras, por onde nem os portugueses nem os demais estabeleceram estruturas sólidas de colonização. Depois dos franceses chegaram os holandeses, em 1630, controlando o litoral desde o Ceará ao Sergipe durante 24 anos, até 1654.
Os holandeses tomaram conta da fortaleza que os portugueses tinham edificado numa ponta avançada do Ceará (hoje a cidade de Fortaleza) e da outra que os franceses tinham levantado em Camocim, o forte de S. Francisco. Em todos os mapas holandeses, franceses e italianos posteriores a 1595 aparece mencionado o rio Camuci ou Rio da Cruz (hoje Coreaú) e em alguns deles o “forte de St François”, testemunhando assim a posição e a importância estratégica deste rio que permitia a entrada de grandes navios e a navegação até pelo menos duas léguas pelo interior das terras, o que nós fizemos com o CHIC por uma distância de 12 milhas. Havia ainda um forte em Jericoacoara, levantado por portugueses, mas teve duração muito efémera.
As primeiras aproximações dos jesuítas a estas paragens datam de 1605, mas não tiveram continuidade. Quando o padre Vieira investiu com a sua bandeira missionária, enviando os primeiros padres em 1656 para esta região habitada pelos indígenas e por muita e diversa gente foragida de Pernambuco, a situação era muito complexa e vulnerável, depois de um longo período de convivência com os holandeses que podiam regressar a qualquer momento; São Luís estava sob a autoridade portuguesa desde 1615, tinha sido capital do “Estado do Maranhão” a partir de 1621 (hoje Amapá, Pará, Amazonas, Maranhão, Tocantins, Piauí, e partes de outros estados limítrofes), com administração própria distinta do resto do Brasil, estado este que seria extinto em 1652 e dividido em duas capitanias, a do Pará e a do Maranhão. Porém, este território imenso estava separado do resto da colónia pelos espaços ocupados a norte e a sul por tribos e gentes inimigas.
O governador André Vidal de Negreiros, que governava as duas capitanias a partir de 1655, conforme a sugestão de Vieira ao rei, tinha ordens para reconstruir a fortaleza de Camocim, mas o navio que trazia padres, trabalhadores e soldados nunca chegou ao destino, por causa das dificuldades de navegação ao longo da costa brasileira. Vieira explica:“É toda esta costa cheia de muitos baixos, que com o vento e corrente das águas se mudam frequentemente; e foram muitos os navios de diferentes nações que aqui fizeram naufrágio, os quais eram despojos da cobiça, da crueldade e da gula dos Tobajaras, porque tudo o que escapava do mar vinha cair em suas mãos, roubando aos miseráveis naufragantes as fazendas, tirando-lhes a vida e comendo-lhes os corpos”. A fortaleza destinava-se a proteger o comércio do pau-brasil e do âmbar assim como as missões dos jesuítas como parte de uma estratégia de unificação do território brasileiro, defendida e estruturada por Vieira. Além disso, o padre sabia desde há muitos anos que tanto os holandeses como os franceses estavam convencidos de que a serra escondia fabulosos tesouros em ouro e pedras preciosas.
Num museu da cidade de Sobral encontra-se uma cadeira tão especial quanto aquela outra que se encontra nos anexos da catedral de Salvador. A tradição conta que foi nessa cadeira que os índios Tobajaras transportaram o padre do rio até à serra em Março de 1660, manifestando desta maneira o apreço que tinham pela sua pessoa e pelo retorno do filho do cacique, D. Jorge da Silva. É muito pouco provável que tal tivesse acontecido, mas mesmo que não passe de uma lenda, essa é mais um testemunho do reconhecimento da importância do personagem e da sua missão de Ibiapaba.
29 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Partilho com o historiador Oliveira Marques a ideia de que “dos finais do século XVII a 1822, o Brasil constituiu a essência do Império Português. Com algum exagero, até se poderia dizer que constituía a essência do próprio Portugal. Foi o Brasil que, em grande parte, levou à separação da Espanha em 1640. Foi o Brasil que deu a Portugal os meios de se conservar independente depois, e que justificou o apoio concedido pelas outras potências à secessão portuguesa. Foi o Brasil que trouxe uma nova época de prosperidade durante no século XVIII e que fez Portugal respeitado uma vez mais entre as nações civilizadas da Europa. Que Portugal se ocupasse, pois, do Brasil – incluindo as demais províncias ultramarinas – e desprezasse os assuntos europeus, era a opinião de muitos. Governasse, como um diplomata famoso aconselhava o seu rei, com a frente virada para o Brasil e as costas viradas para a Europa”. Este diplomata que assim aconselhava D. Pedro II em Junho de 1691 era o padre António Vieira.
Oliveira Marques escreveu estas linhas em 1972, quando era professor na Universidade de Columbia, New York, e a sua História de Portugal teve pelo menos 10 edições e vendeu mais de 80.000 exemplares. As suas posições são tão válidas hoje como o eram há 35 anos, mesmo se Portugal pertence hoje a uma organização política e económica da qual depende o mínimo bem-estar da sua população e alguma perspectiva de futuro. Mas hoje como no tempo de Vieira o perfil ético e produtivo dos portugueses está em declínio. O dos brasileiros não está nada melhor, mas Portugal é um país de velhos aborrecidos e o Brasil uma terra de jovens irrequietos. Daqui por 20 anos Portugal continuará contará 10 milhões de habitantes com uma média de idade superior à de hoje e o Brasil terá 400 milhões de cidadãos com uma média etária inferior a 25 anos, falando a mesma língua, partilhando com uma população global de mais de 500 milhões aquilo que melhor define e delimita uma cultura: a língua que a gente fala. É tempo de tomarmos consciência desta inevitável realidade. O futuro da língua portuguesa no mundo é uma perspectiva mais segura e mais atractiva do que o futuro da Europa.
Talvez seja esse o Quinto Império de Vieira, o do reino da língua portuguesa, talvez o Quinto Império seja a globalização por ele descrita há 350 anos, mas que não nasceu sob a bandeira da coroa portuguesa nem sob a obediência à igreja de Roma. Nós encontramos aqui mesmo, nestes espaços da grande missão de Ibiapaba, o resultado da sementeira de quem saiu a semear. O jesuíta foi sem sombra de dúvida o mais ilustre de todos os portugueses do seu tempo não somente aqui, mas em todo o espaço do continente e das colónias cuja história tomou um rumo diferente graças ao seu génio político, à sua capacidade de intervenção, à sua estratégia missionária e ao poder da sua palavra, sem ambiguidades, sem compromissos, sem medo. A mais emocionante descoberta é a da língua que se fala das dunas até ao alto da serra, suave, harmoniosa e com aquela sonoridade que só os brasileiros lhe sabem dar. Passaram por aqui cartagineses e deixaram marcas nas pedras da serra, passaram franceses e holandeses e deixaram vestígios nos olhos azuis, nos cabelos louros e na pele clara de muita gente. Passaram os portugueses e deixaram-se ficar, trouxeram os seus barcos de velas de antena, a arte da pesca da xávega, a técnica das salinas, o gado e as árvores de fruto. Amaram muitas mulheres, criaram muitos filhos e ensinaram-lhes a cantar, a rezar e a fazer poesia em português. Aqui encontraram um mundo de sol, vento e liberdade onde escolheram viver a vida até morrer de saudade.
E os descendentes deles fizeram desta terra um dos maiores e mais promissores países do mundo.
30 de Agosto de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Querem saber o que resta como vestígios da grande Missão de São Francisco Xavier da Serra de Ibiapaba pela qual tanto lutou o padre António Vieira? Que se veja e se fotografe absolutamente nada, para além da lendária cadeira no museu da diocese de Sobral, na qual muitos se terão sentado, mas eu duvido que ele tenha sido transportado nela em 1660. A ter-se deixado transportar teria sido em rede e não em cadeira. Dos primeiros jesuítas aqui chegados em 1607 não restam vestígios nenhuns. Um deles, o padre Francisco Pinto (nascido nos Açores, em Angra), foi morto a caminho do Maranhão em 1608 aos 56 anos e o seu jovem companheiro, o padre Luís Figueira (nascido em Campo de Ourique), depois de enterrar o seu colega na actual Messejana, regressou a Pernambuco; tinha 34 anos e nunca mais voltou às aldeias da serra. A missão, de uma importância estratégica fundamental para a unidade do território brasileiro, teve uma história atribulada até 1700, por causa das levas de colonos brancos que a invadiram e da má qualidade da administração colonial portuguesa, aquela mesma que Vieira fustigava nas suas cartas. Foi a 15 de Agosto de 1700 que se inaugurou uma igreja de pedra e cal, dedicada as Nossa Senhora da Assunção e se fixaram os alicerces de uma povoação mestiça estável e organizada, graças a mais um jesuíta de têmpera rija, um paulista, o padre Ascenso Gago. É essa mesma igreja, entretanto ampliada e restaurada, que domina ainda hoje o centro histórico da cidade.
Antes dos primeiros jesuítas, tinham cá chegado os franceses pelos anos de 1590 e em 1604 houve uma razia portuguesa com uns milhares de pessoas, (há quem avance 5.000 mas o número é muito duvidoso), comandada por Pero Coelho de Sousa, que impôs novo terror na zona, sem consequências positivas nem práticas de relevo, apenas uma ocupação selvagem. A principal povoação da serra que a partir de 1700 passou a chamar-se simplesmente Aldeia de Ibiapaba, chamava-se antes Taba do Mel Redondo e era o principal reduto dos índios Tobajaras, originários do Rio Grande do Norte. A missão que entretanto crescera e se auto-sustentava foi extinta em 1759, por ordem do Marquês de Pombal e todos os seus bens foram confiscados em benefício da coroa. Os indígenas que a habitavam deixaram de ter privilégios e disseminaram-se pelo território circundante, enquanto a população branca e mestiça crescia consideravelmente, afogando nela a etnia indígena.
A Aldeia ficou a chamar-se Vila Viçosa Real nesse ano de 1759, passando à categoria de Cidade em 1882. Hoje chama-se simplesmente Viçosa do Ceará e é uma cidade de 30.000 habitantes, uma verdadeira pérola preciosa do continente americano, fresca, airosa, rica, bonita e asseada. Viçosa é a terra natal do herói brasileiro da guerra do Paraguai o General Tibúrcio e do grande jurista e representante da Escola de Direito de Recife, Clóvis Beviláqua, o autor do Código Civil Brasileiro. Uma das aldeias do município ostenta o nome de Padre Vieira, em memória do missionário. No ponto mais alto da cidade eleva-se em cima da “igreja do céu” uma réplica do Cristo do Corcovado, donde se avistam os cumes da serra que se estende pelo Ceará adentro. Mas a grande devoção de todo este povo da serra é a Nossa Senhora de Fátima que tem, espalhados pelas cidades e aldeias da serra, inúmeros santuários.
O que podemos fotografar deste espaço de Vieira é a imponência da serra, a sua ímpar beleza natural, a riqueza da sua produção agrícola, a qualidade dos espaços urbanos e da vida da cidade que se compara às mais simpáticas e turísticas cidades da velha Europa, com seus casarões de época preservados, as suas praças arborizadas com mangueiras e castanheiros centenários e sobretudo a sua gente afável, as ruas animadas, as casas coloridas. Não existe nem pobreza nem sombra de violência; os nomes são os mais portugueses que se podem encontrar, com uma quantidade impressionante de Pinhos, Magalhães, Carneiros, Almeidas, Abreus… e as figuras humanas uma mescla muito original de índio e de branco.
Vieira chegou a esta serra a 23 de Março de 1660 e ficou espantado com a beleza natural de uma paisagem que comparou com a antevisão do céu. Demorou-se pelas aldeias cerca de dois meses e meio, regressando pelo mesmo caminho a São Luís. Terá percorrido algumas delas, talvez tenha visto nas grutas de Ubajara as gravuras rupestres de antigas civilizações indígenas que por ali viveram muitos milhares de anos antes dos Tobajaras. Os habitantes de hoje têm outras histórias para contar.