CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA
1 de Dezembro de 2007, Oceano
Atlântico.
Quando largámos de Antigua, há dois dias, depois de reparado
o mecanismo do leme e de momentos emocionantes que um encontro imprevisto
e fortuito nos proporcionou, já só pensávamos na
chegada aos Açores. O vento soprava brando de ENE obrigando-nos
a uma bolina folgada, mas até hoje pelas 3 horas da madrugada
tínhamos caminhado mais de 180 milhas e encontrávamo-nos
fora da área das Caraíbas, em mar profundo, com aquela
vaga longa e suave a embalar a nossa rota, direitinhos à estrela
polar. Antes do pôr-do-sol de ontem, que era Sexta-feira, dia de
peixe, pescámos mais um belo exemplar da família dos atuns,
meia dúzia de quilos de frescura oceânica para a mesa do
dia de hoje.
Eram cerca de 5 horas da tarde, o João estava ao leme e eu fazia-lhe companhia, dando-lhe ao mesmo tempo algumas lições práticas de navegação à bolina, rumando contra o vento a um ângulo de cerca de 60 graus. Ouvimos um ruído estranho e forte que pareceu sair debaixo dos seus pés, ali perto da roda do leme, como se um martelo ou outra alfaia pesada tivesse caído em cima de uma placa metálica. Coisa estranha, que nos deixou algo intrigados, mas era apenas mais uma estranheza nos acontecimentos dos últimos dias. Depois da surpresa da bondade de Kareen, no momento exacto em que eu preenchia na capitania os papéis da saída de Antigua e a tripulação finalizava os preparativos, deu-se um tremor de terra. Os oficiais apenas gritaram: get out! E foi mesmo pela porta fora que todos se precipitaram. O terramoto durou mais de um minuto e foi o suficiente para lançar algum pânico. Os candelabros abanavam, os relógios mecânicos das paredes pararam, os coqueiros tremiam, o cais onde estava encostado o CHIC não parecia seguro. Um ruído surdo chegou das profundezas da terra, deixando uns a rezar e outros a tremer.
Aquele ruído a bordo do CHIC não significava nada, não tinha nada a que pudesse ser atribuído. Peguei no holofote e enfiei-me pelo espaço estreito onde passei parte da tarde de Quarta-feira e da manhã de Quinta, reparando os comandos do leme e tudo estava perfeito, tudo continuou a funcionar como devia. Só que pelas 3 horas da manhã de hoje, mais uma vez no fim do quarto do Dietmar, ele gritou: estamos sem leme! O CHIC não obedecia mais e orçava sem tino. A manobra foi a mesma de há dias ao largo de Antigua, para instalarmos a cana do leme de socorro, mas desta vez eu não tinha a mínima ideia do diagnóstico que poderia fazer.
Continuámos até ao nascer do sol sem alterar o rumo, para podermos com mais segurança retirar toda a tralha dos cofres de bombordo e termos livre acesso ao mecanismo. Deitado no espaço exíguo não recomendado a quem sofre de claustrofobia, nada vi que justificasse tal avaria. Foi quando o João accionou a cana para virar de bordo que eu vi que o eixo do leme rodava, mas o quadrante não. A causa daquele ruído estranho de ontem estava a menos de 30 cms dos meus olhos: na chave do quadrante, onde se encontra o parafuso de retenção, uma peça de alumínio fundido, que tinha quebrado.
Passámos oito meses a viajar sem que as avarias nos provocassem atrasos; navegámos com velas rotas, com leme de socorro, passámos por temporais e tudo se foi resolvendo. E agora, depois de termos sofrido tantos atrasos inoportunos perfeitamente evitáveis, no espaço de uma semana, acontece duas vezes o inevitável, quebra o mecanismo do mesmo leme primeiro nos cabos e depois no quadrante, quando é mais que tempo de regressar a casa. Não há outra alternativa senão mudar o rumo de 180 graus e procurar mais uma marina algures pelas Caraíbas. A nossa opção pelo momento é Saint Martin, uma ilha metade francesa metade holandesa, a mais próxima de nós, a cerca de 80 milhas. Navegamos só com a genoa, para chegarmos lá amanhã pela manhã e tentarmos encontrar logo na Segunda-feira uma oficina onde alguém solde ou me deixe soldar alumínio. A peça já foi desmontada, está pronta para cair numa banca onde tenha gás árgon e a única coisa que necessitamos para além de uma boa soldadura é um parafuso novo de aço inoxidável.
O nosso regresso está a tornar-se dramático; não só por começarmos a imaginar o que será num Natal no oceano, mas sobretudo como vamos negociar as fúrias invernais do Atlântico acima dos 30 de latitude.
2 de Dezembro de 2007, Saint Martin.
18 04´00”N, 63 05' 00”W
Devíamos ter largado de Belém rumo aos Açores a
25 de Outubro, para lá chegarmos antes de 15 de Novembro. Só
foi possível sairmos a 29 do cais onde estávamos atracados
e a 30 do ancoradouro onde aguardávamos uma peça mecânica
que acabou por não chegar. Fizemo-nos ao mar a caminho de casa,
com escala no porto mais distante que conseguimos alcançar, na
ilha da Martinique, a 10 de Novembro, onde aguardámos o dinheiro
necessário para podermos abastecer. Custou-nos dez dias de peripécias
desagradáveis e problemas de saúde, conseguindo largar
a 20 para a Guadeloupe, onde recebemos um suplemento de dinheiro que
nos permitiu abastecer em alimentação até aos Açores,
mas foram mais três dias de paragem, para, enfim, fazer-nos de
vez ao oceano, apesar do vento forte e do mar alteroso.
Na noite de 25 de Novembro, navegando à bolina, partiu um dos cabos do mecanismo do leme e tivemos que procurar abrigo na ilha de Barbuda para depois fazermos escala em Antigua, afim de procedermos à reparação do leme, o que conseguimos, largando a 29 de Novembro. No 1º de Dezembro, pela mesma hora em que tinha acontecido a primeira avaria, o leme voltou a quebrar, desta vez a peça mestra do mecanismo, o quadrante. Por isso voltámos a procurar refúgio na marina de Fort Louis, da ilha de Saint Martin, tendo entretanto desmontado pelo caminho todo o sistema para amanhã logo pela manhã procurarmos uma oficina que tenha aparelhagem para soldar alumínio ou então instalarmos de vez outro quadrante. Desde Belém, faz hoje 31 dias que estamos em viagem, enfrentando os contratempos com algum estoicismo e muita ansiedade.
Normalmente, o quadrante do leme é uma peça que, terminada a vida útil de um barco deste género, ainda pode servir para outro com total segurança; não é peça que parta assim sem razão aparente. Todo o sistema foi desmontado no estaleiro de Aveiro, quando foi instalada uma nova pá do leme, portanto essa peça foi desmontada e remontada de novo poucos meses antes da partida do CHIC. Quando aconteceu a primeira avaria entre a Madeira e Cabo Verde, ao desmontar o sistema nós verificámos que os rolamentos das roldanas situadas por debaixo do posto da roda do leme estavam enferrujados e as polias não rodavam, apenas os cabos escorregavam por elas: negligência de quem fez o trabalho. A isso atribuímos a ruptura do cabo que substituímos. Foram colocados rolamentos novos nas polias, substituímos o cabo partido mas deixámos o outro, que nos parecia em bom estado, que veio a rebentar há uma semana.
Os cabos possuem dois terminais embutidos que permitem a junção dos mesmos à corrente da engrenagem, accionada por uma roda dentada. Em Cabo Verde é impossível encontrar material desse teor, que encontrámos em Antigua, substituindo assim os dois cabos. Passando nas polias da base do posto da roda do leme os cabos passam por outras polias situadas a bombordo e a estibordo e cruzam-se nos lados opostos do quadrante, uma peça fixada por aperto ao eixo do leme, que o faz rodar, comandando assim o rumo da embarcação. Este quadrante não é uma peça específica e exclusiva a este género de embarcação, é uma peça genérica, aplicada em muitos milhares de embarcações de tamanho similar por esse mundo fora. A razão pela qual partiu resta-nos um mistério e uma surpresa; um eventual defeito de montagem quando procederam no estaleiro à colocação do novo leme teria causado outro tipo de problemas, mas não a ruptura da peça em questão.
O mar não perdoa defeitos nem incompetências: a bordo de um barco ou tudo é perfeito ou o perigo transforma-se em catástrofe. Pela nossa rota já longa de mais de nove meses os problemas que encontrámos foram solucionados sem quase nunca termos feito apelo a outras competências. O CHIC tem 17 anos, já correu muitos mares, mas é uma embarcação muito sólida e segura. Algumas pequenas coisas não essenciais avariaram e deixámo-las por resolver, tais como o frigorífico de bordo, a bomba de água de mar que abastece a pia da cozinha, o piloto automático, um computador, por falta de fundos para substituir as peças avariadas, coisa de pouca importância, mas as nossas prioridades são outras e o dinheiro é coisa que não se pesca nesta estação do ano.
Naquela viagem iniciada a 22 de Novembro de 1652, após 30 dias de problemas com piratas, temporais e calmarias, também a caravela de Alfama em que viajava Vieira fazia uma escala imprevista em Cabo Verde, onde o jesuíta passou o Natal e se deslumbrou com o que viu. Quando desembarcou no Maranhão, a 16 de Janeiro, fazia 55 dias que dormia a bordo de um navio. O mar tem destas coisas que estragam os planos de quem invade o seu espaço. O dia de amanhã será outro dia, apenas mais um deste ano complicado da nossa vida.
3 de Dezembro de 2007, Saint Martin.
18 04´00”N, 63 05' 00”W
Pelas 06 horas
Atravessar o Atlântico nesta época do ano é uma façanha
algo temerária, que exige muito traquejo, muita atenção
aos boletins meteorológicos e muita precisão nos planos
de navegação, com todo o aparelho vélico bem afinado
e pronto a adaptar-se em poucos segundos a uma tormenta ou a uma viragem,
nas mãos de uma tripulação atenta e bem treinada.
Nesta altura do ano os ventos dominantes até à latitude
de 30º são de NE, obrigando-nos a uma rota muito ao Norte,
que nos leva para as Bermudas, situadas a quase 33 º de latitude
e 65º de longitude. São 900 milhas que nos separam das Bermudas,
com muitos dias de bolina, o que significa 9 a 10 dias de viagem difícil.
De lá, a rota dos Açores é para Leste, com ventos
que nesta época do ano são variáveis, mas que sopram
predominantemente do sector oeste. São 1.800 milhas, aproximadamente,
ventos moderados a fortes mas favoráveis, mais duas semanas de
viagem. Entre as duas etapas, impõe-se uma escala de dois a três
dias para algum descanso e abastecimento. A rota directa das Caraíbas
para os Açores está neste momento fora de questão
pelo perigo que representa. Tivéssemos largado de Belém
pela rota directa a 25 de Novembro, teríamos beneficiado até
aos 30 de latitude dos últimos alísios do ano dos sectores
E e SE e chegado aos Açores com uns 22 dias de viagem. Mas não
nos foi possível por em prática esse plano, tivemos que
recorrer a planos alternativos, mais caros, mais difíceis e mais
perigosos. Claro que as avarias que nos aconteceram no temporal da semana
passada, a 30 dias após a largada de Belém, poderiam ter
surgido algures pelo caminho, quiçá nos Açores.
Isso faz parte do imponderável. Mas estaríamos certamente
nesta altura a chegar a Portugal, com o nosso trabalho sobre Vieira terminado
nos Açores.
O nosso destino ideal de final de travessia, nos Açores, será a marina de Angra do Heroísmo, a 38º de latitude e a 27º de longitude, na ilha Terceira, por onde passou Vieira na sua atormentada viagem do Maranhão para Portugal em 1654. Com a paragem nos Açores, aquela viagem custou-lhe 5 meses, devido ao mau tempo que desarvorou o navio em que viajava e aos piratas holandeses que o saquearam, abandonando os passageiros na ilha Graciosa. Por mais bonitos e perfeitos que sejam os nossos planos, há sempre qualquer coisa, há sempre alguém para nos escangalhar a monotonia.
Pelas 10 horas
Completado na oficina o diagnóstico do quadrante quebrado, confirmou-se
a hipótese que eu tinha formulado ontem à noite, depois
de observar atentamente a peça: o parafuso que serve de chave
do sistema não enroscava no seu buraco. No entanto, como a peça
quebrou exactamente por esse buraco, ficou-me a dúvida quanto
ao assunto, mas parecia-me que o passo da rosca daquele buraco e a rosca
do parafuso não correspondiam. Um exame mais minucioso confirmou
o diagnóstico. Alguém substituiu o parafuso, provavelmente
no momento da montagem do leme no estaleiro, por outro que não
tinha o mesmo passo de rosca; bastava para isso forçar o aperto
e o parafuso em questão ia fazendo o seu novo caminho no alumínio
mais mole até atingir o buraco no eixo do leme onde fazia de chave.
As forças que são aplicadas no eixo do leme são de muitas centenas de quilos, em mar agitado de toneladas; o parafuso inadequado foi cavando a sua folga até atingir cerca de milímetro e meio na junção com o eixo. Navegávamos à bolina quando a peça quebrou, por causa dessa folga, provocada por um parafuso errado. Também a qualidade do aço inoxidável desse parafuso não era a adequada (porque há diversas qualidades de aço inox); não seria essa a causa do acidente, mas sim o passo da rosca. A moralidade da história é a mesma: a incompetência custa muito caro, pode custar a vida de alguém.
A peça em questão vai ser soldada e reforçada, tapando todo o buraco do parafuso para depois ser aberto de novo e lavrada nova rosca adequada ao parafuso que vai levar; no eixo do leme o encaixe será cavado com mais dois milímetros e tudo deverá ficar pronto para montagem amanhã pela tarde, mais uma sessão de mecânica para mim, naquele espaço mais estreito que o de um caixão dos baratos.
O custo da reparação nem é assim tão caro; os custos do atraso são quase tão elevados, pois significam todos estes dias em alimentação, mais a estadia da marina, a mais cara de todas em que fomos forçados a fazer escala, sem no entanto ser a mais luxuosa, pois nenhuma se compara à de Jolly Harbour. Com o leme desmontado é impossível ficarmos ancorados, pois ficamos impossibilitados de qualquer movimentação de segurança.
Esta manhã abateu-se sobre estas ilhas um temporal, com trovoada e rajadas violentas de vento, o que é normal nesta época; se tivéssemos seguido a nossa rota estaríamos agora a chegar aos 24º de latitude, começando-nos a bafejar o primeiro ESE e com um nadinha de sorte tiraríamos cada dia do nosso investimento piscatório mais um atum, uma dourada, um tubarãozinho azul…
A história da viagem marítima deste projecto sempre foi de interesse secundário e assim deveria ser até ao fim. Não projectámos esta viagem para provar a ninguém que sabemos navegar nem para realizar uma proeza de navegação. Navegámos sempre com precisão e traquejo, fazendo até agora uma viagem banal a bordo de um veleiro. O essencial sempre foi, nos textos do Diário de Bordo, o encontro com os espaços de Vieira, numa perspectiva de descoberta da identidade e da cidadania que constituem hoje os parâmetros de leitura do rumo da história global que vivemos. Dadas as circunstâncias, este regresso está a tornar-se complicado, exigindo de todos nós um sacrifício e um esforço que já não têm nada de banal. E daí, estes textos terão que dar lugar neste momento a essa parte aventurosa de uma viagem que vai exigir de nós quatro perfeição, coragem e sangue frio.
O nosso problema neste momento é pagar as despesas continuar a nossa viagem, uma autêntica aventura em todos os seus parâmetros. Necessitamos urgentemente de um patrocínio que nos permita levar a cabo esta empreitada. O resultado do nosso trabalho feito até agora provou até que ponto, com exíguos meios e enfrentando enormes adversidades, fomos capazes de realizar uma obra pela qual se interessam governos, universidades e associações culturais de três continentes. Mas a obra está por acabar, falta ainda uma parte, a mais pequena mas não menos importante. E falta sobretudo enfrentar a parte mais difícil da viagem de regresso pelo oceano Atlântico no mês de Dezembro.
Em 1641 Vieira também fez uma viagem difícil, saindo de Salvador a 27 de Fevereiro, acompanhando o filho do vice-rei da colónia, o marquês de Montalvão, para chegar a Peniche e não a Lisboa, acossado pelo mau tempo, a 25 de Abril. Foram 57 dias de uma viagem que acabou em tumulto. Tinha o jesuíta 33 anos e essa viagem mudaria por completo o rumo da sua vida.
4 de Dezembro de 2007, Saint Martin.
18 04´00”N, 63 05' 00”W
Na marina de Fort Louis encontram-se neste momento alguns dos veleiros
mais sofisticados do mundo: o maior catamaran oceânico, uma luxuosa
unidade construída em Marselha em fibra de carbono, com bandeira
do Luxemburgo, um grande navio de passageiros à vela, com 4 mastros
de sofisticada feitura, um grande iate americano da mais clássica
arquitectura naval, acabado de sair dos estaleiros, uma escuna centenária
com bandeira inglesa e muitos mais com bandeiras de outros tantos países,
criando uma comunidade provisória onde não se contam as
fortunas. São unidades de milionários e de pés descalços,
gente que se cruza nos pontões durante o tempo de uma escala,
sem outras conversas que não sejam ventanias e água salgada,
todos unidos pela vulnerabilidade de quem anda ao de cima de água.
Há meio século atrás, todas estas pequenas ilhas das Antilhas eram colónias pobres, sem futuro que lhes sorrisse para além da subsistência, exibindo sabores de rhums e ritmos creoulos para animar os desesperados. Hoje são espaços sofisticados onde a vida corre ao ritmo de uma qualidade única no planeta, vivendo do turismo, tendo-se transformado em pontos de encontro de cidadãos do mundo inteiro, aquela “feira universal” de Vieira. Nem todos têm acesso a estes espaços privilegiados, apenas aqueles que, vivendo em países desenvolvidos, se permitem o luxo de umas férias fora das suas fronteiras, realizando sonhos de sol, de exotismo e de evasão. Eles formam uma espécie de elite privilegiada da humanidade, a mesma que, pela sua capacidade de entendimento e pela força da sua intervenção, pode mudar o rumo da história da humanidade, exactamente da mesma maneira que mudou a história banal destas ilhas, encontradas por um catalão equivocado há mais de meio milénio.
Há quem viva a bordo de pequenos veleiros de 10 metros, ancorados a 500 metros da praia, há os que se alojam nos hotéis mais caros do mundo, há quem venha de propósito para gozar do espectáculo e da adrenalina dos casinos; na parte holandesa da ilha encontra-se a maior concentração de casinos do mundo. Esta ilha é o mais pequeno território do mundo dividido em duas partes: uma francesa e outra holandesa. Mais uma surpresa: a moeda corrente não é o euro oficial, mas o dólar. Tudo é excessivamente caro: uma cerveja num café de esquina custa 5 dólares, um café custa 2,50, uma hora de Internet paga-se a 7 dólares. Como nada se produz na ilha, tudo é importado, desde o leite às bananas. O maior problema é o da água doce: o consumo nos pontões da marina é facturado a 30 dólares o metro cúbico. Para tomar um duche nos balneários é necessário adquirir uma chave que dá direito a 5 minutos de água fria por 2 dólares. Estes são apenas alguns exemplos dos preços do paraíso.
Quem dispõe de reservas poderá sair daqui com computadores, máquinas fotográficas, aparelhos electrónicos, telefones portáteis, a preços sem competição, porque todos os produtos estão isentos de impostos. Um computador como aquele com o qual trabalho neste momento, o Qosmio da Toshiba, sai daqui por 1.500 dólares. Para a máquina fotográfica Canon EOS 400 bastam 480 dólares. O último grito das máquinas de filmar DVCAM da Sony, com grande angular, não chega a 2.000 dólares. Só os pobres não têm acesso a estas frescuras tropicais.
Mais um compasso de espera na nossa viagem, tempo perdido ou talvez não. Ao pessimismo e à aflição de um leme quebrado numa madrugada ventosa, à desilusão de ter que recuar centenas de milhas já andadas para voltar a percorrê-las, à preocupação de uma travessia invernal por uma rota mais longa, à angústia de calcular novo aprovisionamento e encontrar financiamento imediato para as despesas imprevistas, esta paragem na quietude de uma marina luxuosa oferece a oportunidade de rever centenas de páginas de texto sobre Vieira, de ordenar o espólio fotográfico de milhares de documentos, de avançar na composição das duas peças mais importantes desta viagem, o Livro e a Exposição. O companheiro Dietmar, desenhador e aguarelista, acumulou ao longo desta viagem centenas de documentos da sua imaginação, inspirados no nosso quotidiano, que merecem também uma publicação pela sua originalidade e por serem um testemunho lúdico deste ano tão especial das nossas vidas. Não viajamos sozinhos a bordo do CHIC; levamos connosco um vastíssimo espólio de documentos, únicos e mediáticos, para transformar em conteúdo académico, de cultura e de lazer. Ontem foi dia de aguaceiros e de trovoada; aconchegados no conforto do CHIC, cada qual entregou-se às suas paixões criativas, não deu sequer para cheirar o ambiente de uma ilha que oferece sonhos e evasões. Hoje pela tarde o quadrante do leme ficará pronto.
5 de Dezembro de 2007, Saint Martin.
18 04´00”N, 63 05' 00”W
O vento zoou todo o dia e a maresia provocou estragos
nas embarcações atracadas aos pontões mais afastados;
são os alísios de Dezembro, que carregam chuva e alimentam
o tapete verde de árvores e capim que cobre toda a ilha, semeada
de crateras de extintos vulcões. Da Europa, com escala nas Canárias,
chegam cada dia mais veleiros, alguns festejando com euforia a primeira
travessia do Atlântico, beneficiados por uma semana de ventania
favorável de NE, aquela mesma que nos quebrou o leme. Outros vêm
do Canadá e dos Estados Unidos, massacrados por uma ondulação
muito mais alterosa que o normal, provocada pelo impacto do vento de
NE contra a corrente do Golfo. O objectivo de todos é o mesmo:
festejar Natal e Ano Novo no calor dos trópicos, num ambiente
exótico e sereno, com navegantes do mundo inteiro.
Fantasias de gente esquisita para alguns que nos lêem, desvairos
insensatos para outros, o que é certo é que eles são
milhares a fazê-lo e há os que nunca na vida o farão,
mas ele há tanta coisa que fazer na vida! Este é um mundo
de gente que não existia há umas dezenas de anos atrás,
uma faceta real do mundo novo que cresce com novos valores e novos ideais.
Lançar-se ao oceano num barco à vela para uma etapa de
2.500 milhas nada tem de alucinante, sobretudo se compararmos as condições
em que hoje se fazem estas jornadas às dos marinheiros de quatrocentos
e de quinhentos. A eles devemos veneração e reconhecimento
pela descoberta do espaço oculto do planeta; também lhes
devemos o exemplo da coragem, a irreverência com que exibiram a
ambição, o gosto e o prazer sublime da liberdade.
Hoje atracou ao nosso lado um veleiro pequeno, de uns
11 metros, saído de Barcelona há 35 dias com quatro jovens
tripulantes, que fez a travessia sem escala. O primeiro gesto de um deles,
logo seguido dos outros, foi ajoelhar-se e rezar, dando graças
a Deus, chorando de felicidade e gritando para quem entendia que era
o dia mais feliz da sua vida; dois deles são um casal de jovens
formados que decidiram viajar a bordo de um veleiro para melhor reflectir
sobre o futuro das suas vidas; os outros dois são um engenheiro
têxtil, dono da embarcação e um seu irmão
surdo. Não têm destino nem rumo certo; chegar até
aqui era uma ambição, coisa nunca feita antes, nem ambicionada
por nenhum dos seus companheiros de todos os dias.
Os novos tempos são difíceis de entender pelas pessoas
dominadas por normas de moral e preconceitos religiosos resultantes da
falta de uma educação adequada para formar o perfil ético
e produtivo do cidadão de hoje e para definir a sua religiosidade.
Esta é matéria de reflexão e conteúdo incómodo
para os portugueses, que não conseguem distanciar-se dos seus
desperdícios colectivos. Já era assim no tempo de Vieira,
que diagnosticou o mesmo problema.
A moral dos tempos modernos tem os seus parâmetros traçados por um modo de existência partilhado com todos os seres humanos do planeta, independentemente das suas crenças e dos seus deuses. Porque comemos as maçãs cultivadas por um agricultor chinês, bebemos um vinho produzido no Chile, vestimos roupa confeccionada na Polónia, conduzimos uma viatura produzida no Japão, comemos com colheres feitas no Brasil, usamos um computador feito em Taiwan, utilizamos um telefone portátil fabricado na Finlândia, a nossa vida é partilhada com os cidadãos do mundo inteiro. Porque acreditamos na existência de um Criador a quem devemos veneração e prestar contas pela nossa existência efémera, partilhamos com todos os crentes num Deus único a esperança de uma justiça e de uma salvação colectiva, que é nosso dever e única razão da nossa existência. No mundo de hoje somos todos peregrinos em cata de um destino comum, o do futuro da nossa história. Ir ao encontro das criaturas para aprender a olhá-las com amor e compaixão é o rumo de todos os peregrinos do nosso tempo. Esta é a nossa identidade enquanto seres humanos, a nossa cidadania enquanto membros de uma colectividade. Quem não consegue enxergar, está fora do rumo e à margem do tempo.
Em Salvador da Bahia, nos primeiros dias de Maio, chegou um veleiro proveniente do sul rumo a Portugal, nas mãos do João Lúcio, um dos comandantes da caravela Boa Esperança, companheiro da regata dos 500 anos. Foi encontro alegre e afectuoso, com palavras de alguma amargura: “pena que sejamos sempre os mesmos e tão poucos a encontrar-nos assim”. Um barco à vela é um ponto de encontro, uma plataforma de reconhecimento da nossa vulnerabilidade e do nosso poder de inventar a história, mesmo quando as circunstâncias nos obrigam simplesmente a ficar parados, à espera dos milagres que sempre acontecem quando a corda do desespero atinge o seu ponto de ruptura. As Moiras são as donas das tesouras que cortam o fio de prata e o cordão de ouro da vida de cada criatura. Só elas e mais ninguém. É o que está escrito no Livro da Sabedoria. Mas quem é que se preocupa hoje com a Sabedoria?
Pelas 16 horas
Acabei de montar o quadrante do leme, de alinhar as polias da base do
pedestal da roda e de lubrificar todo o sistema para enfrentar o Inverno
do Atlântico norte; não será por aí que poderemos
sofrer a partir de agora qualquer percalço. Feita a avaliação
do problema que nos afectou, ainda descobri mais uma falha na qualidade
do trabalho feito por quem montou o leme no estaleiro antes da nossa
partida: as polias, para além de não rodarem, também
não estavam alinhadas. Na reparação que fizemos
em Cabo Verde não verificámos o alinhamento das polias,
mas não foi essa a causa dos últimos problemas. Alinhadas
as polias, o mecanismo do leme tornou-se mais suave e preciso, um mimo
de manejo. Muitas vezes, nas minhas intervenções educativas,
eu invoco o perfil ético e do perfil produtivo do cidadão
do novo milénio e é muito difícil para quem me ouve
estabelecer a ligação entre estas noções
e a montagem de um cabo de aço que comanda o quadrante de um leme,
a qualidade da sovela de um sapateiro, a eficácia de um mecânico
e o desempenho de um professor diante de uma turma de alunos. Talvez
falte ainda algum tempo para que tal aconteça.
Numa universidade como numa oficina mecânica, num ministério como numa cozinha, a qualidade da execução, a visão estratégica dos projectos e sobretudo a capacidade de enfrentar os obstáculos determina o sucesso de toda e qualquer façanha. O que paralisa os portugueses é a miopia da visão e a miudeza que os contenta. Um dia ousei perguntar aos responsáveis máximos de um departamento quantas teses de mestrado e de doutoramento contribuíram para solucionar os problemas reais do país que os alimenta; sem resposta nem mais ou menos perguntei então quantos quilos de teses o mesmo departamento tinha produzido nos últimos cinco anos. Também não sabiam e ficaram extremamente vexados com a minha pergunta. Eu fiquei triste, mas é verdade que as tristezas não pagam dívidas e que as teses armazenadas engordam os currículos.
Na marina de Fort de France falta pagar as despesas para podermos continuar o nosso caminho. Uma jornada como a nossa não está certamente ao alcance de toda a gente. É preciso traquejo, vontade de bicho e sangue de bandeirante para a realizar. Programámos um regresso de Belém até Aveiro em cerca de 35 dias, para alcançarmos o nosso ponto de partida nos primeiros dias de Dezembro; foi a contar com esse tempo de mar que os nossos colegas brasileiros nos acompanharam. Estamos exactamente com 35 dias de viagem depois da largada de Belém e encontramo-nos ainda nas Caraíbas, porque não nos permitiram uma rota directa para os Açores e, depois disso, surgiram aqueles percalços inevitáveis. Do mesmo modo que um trabalho bem feito num estaleiro não teria custado mais caro a quem o pagou e ter-nos-ia proporcionado uma viagem sem incidentes, uma atitude empresarial, eficiente e produtiva dos nossos parceiros no momento da largada de Belém teria evitado despesas inúteis, tempo perdido e energias desperdiçadas, aqueles desperdícios de que falava Sampaio Bruno e que tanto excitam a insustentável mesquinhez da república.
Vieira apelava do alto dos púlpitos à ousadia dos portugueses e à sua capacidade amordaçada de conduzir o destino dos povos; ele era um patriota e um visionário, amigo da verdade ao ponto de respeitar até a sua sombra, sem nunca abdicar dos seus princípios éticos e religiosos. Por vezes as suas viagens demoraram mais do que previsto, mas viveu quanto baste para deixar em herança o exemplo da acção e a coerência da lucidez. Privilégio dos profetas!
6 de Dezembro de 2007, Saint Martin.
18 04´00”N, 63 05' 00”W
Das minhas últimas intervenções sobre a temática
de Educação, tive como retorno a alegria de ver espalhados
e debatidos pelos meios onde o tema preocupa, dois parágrafos,
um genérico e outro de teor ideológico. Não pude
estar presente no Congresso do Rio de Janeiro, por coincidir com o programa
da Fundação Pedro Calmon, mas alguém leu por mim
o meu papel. O grupo de Miami entusiasmou-se e encarregou-se de divulgar
as ideias, propondo-me o desenvolvimento destes dois parágrafos,
para além da minha leitura da Carta sobre a Tolerância de
John Locke e da inclusão das minhas observações
nos textos sobre Vieira (Diário de Bordo de 19 e 21 de Outubro).
Os dois parágrafos, tirados do texto intitulado Ética ou
Caos – O Futuro da Educação são os seguintes:
1.
Depois de se terem reduzido, ao longo dos dois últimos séculos,
de catedrais do conhecimento a capelinhas dos saberes, vemos de novo
as universidades, no final do século XX, a promoverem os intercâmbios
entre elas através de programas oficiais (Erasmus, Sócrates,
etc.) e não só, apesar da resistência e da indisponibilidade
da grande maioria dos docentes do ensino superior em assumirem a responsabilidade
de canalizar os cérebros mais brilhantes de um país para
a resolução de problemas práticos e imediatos da
sociedade que os nutre.
2.
O futuro da educação em Portugal e nos países de
língua portuguesa passa por uma transformação profunda,
sem que para tal seja necessário desviar-nos do modo de ser próprio
aos caracteres exclusivos das nossas culturas. O povo que espalhou pelo
mundo esta língua e os rudimentos de uma civilização
mutante, foi capaz das mais fantásticas utopias, nem sempre com
coragem para as pôr em prática mas capaz de sacrifícios
extremos quando confrontado com a iminência do desastre ou a euforia
do sucesso. Nós, portugueses, somos capazes dos mais extravagantes
gestos de generosidade, ao mesmo tempo que a inveja e alguma malvadez
nos podem levar às mais desastrosas agressões contra os
profetas da nossa própria gesta. Sabemos como ninguém refugiar-nos
na saudade, exibir os nossos adornos fúteis, comovemo-nos com
mediocridades e contentamo-nos com miudezas convencionais; mas chegado
o momento da luta também somos um povo que de repente acredita
na vitória que só ele mesmo vislumbra contra todos os palpites.
No meio de outros países que levam sobre nós um avanço
considerável em qualidade de vida, chegou a hora de fazer apelo
à auto-estima e à coragem de mudar as coisas para criarmos
um perfil produtivo e um perfil moral capaz de acompanhar a enxurrada.
Só uma educação adequada às necessidades
do momento conseguirá sacudir uma geração acomodada
à mediocridade, que até se excita com espectáculos
e sentimentos mórbidos, e empurrá-la para enfrentar a borrasca,
acreditando que o futuro não está nas esmolas dos outros
mas sim na nossa capacidade de invenção e no resultado
do trabalho das nossas próprias mãos.
Tive ecos de total repúdio da ideia genérica daquele primeiro parágrafo, pela parte de intelectuais que acusaram, ao que parece em público, a minha escandalosa intervenção. Apresentei em público esta observação pela primeira vez em 1997, casualmente em Hamburgo, no âmbito de um texto sobre Paulo Freire, quando se projectou um decénio, que acaba este ano, especialmente dedicado à educação de adultos, sob a égide do pedagogo brasileiro. Portugal exibia nessa altura, como exibe ainda hoje, o nível mais vergonhoso de analfabetismo adulto da Europa (9,2%), mantendo uma reserva de 24.000 professores no desemprego, e sem nenhuma universidade que disponha de um programa de formação de professores, específica para o ensino aos adultos. Um alto dirigente de uma universidade pública portuguesa disse um dia numa linguagem bem alta e clara que esse problema seria resolvido pela própria natureza: o analfabetismo adulto terminaria em Portugal com a morte dos analfabetos. Suponho que o mesmo se poderia aplicar no plano da saúde: mortos os fracos e os doentes ficaríamos com um país de gente sadia e pouca despesa com a saúde. Ou ainda com os maus condutores: mortos os incapazes, sobrariam os ases do volante. Num país a sério, uma afirmação destes implicaria uma demissão imediata do personagem.
Os portugueses não gostam de bulir nas suas jóias de família, nem que se toque nas feridas colectivas. Mas um dia, mais tarde ou mais cedo, e já deviam tê-lo feito, têm que assumir os seus vícios e os seus pecados. Continua a ser feriado nacional e referência ideológica a comemoração da trapalhada de um 25 de Abril de há mais de três décadas, que continua a fazer do país o mais atrasado da comunidade, onde muita gente se sente bem. Eu lembro-me de quando nas nossas igrejas se rezava, no final do terço, ao Domingo, mais um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria “pela conversão da Rússia e pela libertação dos povos oprimidos”; muitos desses povos oprimidos por mais de quatro décadas de um regime sem futuro, ultrapassaram-nos hoje e são eles quem têm agora que rezar – e muito - por nós. Impõe-se a criação de um perfil ético e de um perfil produtivo para um Portugal do futuro, libertado dos entraves mentais e dos preconceitos colectivos que afectam o presente. Mais uma vez, é questão fundamental de identidade e de cidadania. É preciso coragem, seriedade e um naco de poesia, sem deixar mais para amanhã o que devia ter acontecido ontem. Nos tempos que correm até o silêncio tem custos.