CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA
1 de Setembro de 2007, Camocim.
02 54´00”S, 40 50' 00”W
Com muita pena temos que nos despedir de Camocim, desta gente amável, simples, sincera e trabalhadora; gente que vive do mar e das areias, de esperanças que não querem adiar e de uma imensa fé em Deus e na força dos seus próprios braços. Ontem terminámos a nossa estadia nesta cidade da melhor maneira: apresentando o nosso trabalho aos alunos do Liceu, que depois invadiram o CHIC com todo o vigor da sua juventude e o carinho que lhes pinta a alma. A prefeitura do município proporcionou-nos o transporte e o motorista que nos levou das areias até à serra, os pescadores locais nunca nos deixaram um único dia sem nos presentearem com o melhor peixe fresco dos seus barcos e foram muitos os habitantes que nos procuraram para saber mais sobre o nosso trabalho, deixando-nos como presentes doce de caju, frutas das suas hortas, cachaças raras para os momentos de desespero, e sobretudo o desejo de nos verem por estas bandas no próximo ano com o nosso livro, a exposição e o filme sobre Vieira.
Ficamos a dever a esta gente humilde e afável os melhores momentos de toda a nossa viagem, desde que partimos de Aveiro há quase meio ano. Ficamos a dever-lhes também as tantas coisas que fomos comprar para as nossas necessidades quotidianas e que nos ofereceram no momento de pagar. Ainda nos quedamos hoje nas águas do Coreaú por exigências da comunicação social; a rede Globo do Ceará marcou para hoje a gravação de um programa que não podemos de jeito nenhum recusar. Na próxima madrugada fazemo-nos ao mar, rumo à baía de São Marcos, para negociarmos as correntes e as marés que nos levarão até São Luís. As grandes marés de São Bartolomeu, as maiores do ano, tiveram lugar nesta Quinta e Sexta-feira, mas quando lá chegarmos deveremos beneficiar de condições de navegação mais favoráveis. Ontem, por exemplo, a amplitude da maré no porto de Itaqui, em São Luís do Maranhão, era de 6,30 metros; será de menos um metro quando lá chegarmos. Este trecho de navegação é o mais difícil e perigoso de toda a nossa viagem.
Eles são uma mistura étnica de gente que vem do fundo dos tempos, mesclada com forasteiros que por aqui arribaram à procura de espaço e de liberdade. Eles ostentam as suas origens na cor da pele, nos olhos tristes, nos cabelos negros, no jeito de caminhar, no gesto amoroso de nos estender a mão, no tempo que partilham connosco, no carinho com que as mães dão de mamar às suas crias. Falam a nossa língua, rezam ao mesmo Deus, choram e cantam a saudade quando o vento se acalma com o crepúsculo. Amam a sua terra, a brancura das dunas, a sombra dos coqueiros, as águas verdes do mar. O sangue que lhes corre nas veias também é de gente que um dia abalou das areias de Aveiro, das serranias do interior, em busca de um mundo novo, que é este mesmo onde nos encontramos agora, forasteiros que somos em busca da nossa identidade.
Levamos connosco memórias e imagens para partilhar, os olhos ofuscados pela areia fina que côa a luz do sol e a mente cheia de mistérios por desvendar. Quando o sol se levantar amanhã o mar será ainda mais verde, um mar cor de esperança, tão verde como a copa das palmeiras onde canta o sabiá. O poeta Gonçalves Dias morreu nesta costa traiçoeira, quando o navio em que viajava naufragou, em 1864, muito perto da sua terra natal.
“Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá,
Sem qu´inda aviste as palmeiras
Onde canta o sabiá…”
2 de Setembro de 2007, Oceano Atlântico.
O estado do Piauí, maior em extensão que o do Ceará, é o que menos costa atlântica possui dentre todos os estados brasileiros com orla marítima (cerca de 30 milhas) e a sua capital (Teresina) encontra-se no interior - como acontece também no Paraná, estado do sul com curta orla marítima e capital (Curitiba) no interior. O rio Parnaíba, o “Parámirim” ou Grande Rio como se chamava no tempo de Vieira, separa-o do Maranhão e desagua num delta, a Ilha Grande de Santa Isabel. À passagem pela foz deste rio os padres de Vieira que caminhavam para Ibiapaba calcularam mal a maré e apanharam um susto medonho quando a corrente os levou pelo mar adentro. Ao longo do trajecto a comitiva dos padres jesuítas passou pelos célebres Lençóis do Piauí e do Maranhão, desertos de dunas de areia continuamente deslocadas pelo vento, entremeadas de lagoas de água doce, totalmente desprovidas de vegetação. Nós passamos assim do Ceará ao Maranhão em poucas horas, da terra de José de Alencar (jurista e romancista, nascido em Mecejana, autor do Guarani, de Iracema…) à de Gonçalves Dias (jurista e poeta, nascido em Caxias, formado em Coimbra, autor de muitos livros de poesia e de um Dicionário da Língua Tupi) dois representantes do romantismo literário e do indianismo. Eles fazem parte do elenco de escritores brasileiros que, na sequência dos românticos franceses, empreenderam a dignificação do indígena (a emblemática figura do “bom selvagem” de Rousseau) nas suas obras literárias. Foi a primeira tentativa brasileira de criar uma identidade positiva para o homem nativo.
A nossa rota não dá para passar em segurança perto do local da tragédia do veleiro Ville de Boulogne cujos despojos ainda lá se encontram e em cujo naufrágio perdeu a vida Gonçalves Dias. O seu célebre poema da saudade – minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá – foi escrito em Coimbra em 1841 quando era estudante de direito, tinha 18 anos; parte deste poema faz parte da letra do hino nacional brasileiro – nossos bosques têm mais flores, nossas vidas mais amores…
O mar é ainda mais verde do que na costa do Rio Grande do Norte e do Ceará e a linha dos 30 metros de profundidade encontra-se a mais de 40 milhas da costa; navegando a 30 milhas da orla marítima a sonda ainda nos indica por momentos profundidades inferiores a 15 metros. O vento sopra forte e constante de sudeste, o mar é calmo de vaga corrida e a corrente acrescenta 2,5 nós à nossa velocidade, o que nos faz navegar a uma média horária de cerca de 11 nós, apenas com a genoa desenrolada. A esta velocidade não há peixe que consiga alcançar as iscas apetitosas dos anzóis que arrastamos uns 50 metros atrás de nós. Talvez por isso continuamos a comer peixe de pescador.
Só mesmo a navegar por estas paragens dá para entender o texto de Vieira quando fala da sumaca que o governador André Vidal mandou com gente e materiais para construir a fortaleza de Camocim: em 50 dias de navegação não conseguiu ultrapassar a foz do Rio das Preguiças e em apenas doze horas regressou a São Luís. Todos aqueles dias de navegação davam para aquela sumaca (um navio de cerca de 35 metros, com dois mastros, envergando velas latinas e quadradas) viajar sem pressas de São Luís até Lisboa. Outra tentativa frustrada de Vieira foi a de viajar até à Bahia numa embarcação latina, provavelmente um patacho ou uma escuna; apesar de melhor de vela, não teve sucesso. Por estas latitudes navega-se à vela com sucesso num só rumo (WNW), o que agora levamos, e a uma boa distância da costa, para evitar os bancos de areia e os pedregulhos de toda a espécie que estão semeados ao longo dela. À velocidade que vamos e muito ao largo, deveremos levar umas 14 horas entre a latitude do farol do Rio das Preguiças e o da Ponta da Areia, em São Luís, se conseguirmos caçar o início da maré montante na baía de São Marcos.
6 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
02 35´00”S, 44 22' 00”W
Há alguns detalhes que fazem com que Aveiro se pareça com a capital do Maranhão: ambas são cidades marítimas, estrategicamente situadas para serem portos importantes do comércio marítimo, cidades universitárias com centros de investigação muito activos, pólos culturais de relevo, um passado histórico impressionante e um futuro promissor. Mas tanto Aveiro como São Luís possuem os mesmos desencantos, uma espécie de lacuna crónica no teatro do planeta globalizado: uma ruptura insustentável com o mundo real e a falta de informação sobre o essencial da vida da comunidade. Numa capital de estado com um milhão de habitantes não existe uma única marina nem um único cais onde possa atracar um iate como o CHIC, uma vulgar embarcação de recreio e de investigação com 2 metros de calado, hoje em dia um meio de trabalho e de lazer que é também dos mais eficazes meios de comunicação e de intercâmbio cultural do planeta. O forasteiro que chegar aqui numa embarcação como a nossa fica completamente abandonado à sua sorte, enquanto o porto de Itaqui recebe navios até 360.000 toneladas, por onde a companhia Vale do Rio Doce escoa uma parte considerável da sua produção de minério. Mas não há nem um pedacinho de cais, nem um trapicho de pau para receber uma qualquer embarcação como a nossa.
Graças à simpatia de uma empresa de rebocadores, disponibilizaram-nos uma poita num ancoradouro ao largo do cais do porto de Itaqui, que dista cerca de 20 kms do centro da cidade, mas não temos condições para podermos fazer o nosso trabalho, pois até as comunicações com a cidade são muito limitadas. As marés de cerca de 6 metros, o vento muito forte e as correntes violentas dificultam-nos as idas a terra e os contactos com os nossos interlocutores os quais, também eles, têm que ultrapassar as mesmas barreiras para chegarem até nós. Molhados e exaustos, são tão grandes as dificuldades em termos acesso aos balneários do porto, a 200 litros de água potável, a uma Internet, que somos forçados a demandar outros rumos. Isto chama-se, como Aveiro, uma cidade marítima que perdeu a sua alma e apenas alimenta o seu curral. Não fossem os atropelos ao bom senso, tudo seria perfeito: a paisagem que avistamos deste pedaço da baía de São Marcos é magnífica. Não vamos deixar de ancorar em frente da cidade de Alcântara e se possível ir a terra, nem de passar pelo igarapé Cojupe, um pedaço do mangue e da floresta original do Brasil, exactamente como existia no tempo de Vieira. Mas sem mais demoras e até porque estamos atrasados, vamos sair daqui, desde que possamos abastecer, rumo a Belém do Pará, onde talvez encontremos melhor acolhimento.
Há momentos o patrão de um dos rebocadores chamou-nos pela rádio e ofereceu-nos a possibilidade de acostarmos ao seu lado, por não terem serviço previsto para as próximas 24 horas, o que significa para nós um grande conforto, o de ficarmos junto ao cais, beneficiarmos da corrente eléctrica de terra e recebermos convidados a bordo. Só quem vive neste ambiente de portos e oceanos pode verdadeiramente apreciar o significado deste gesto generoso e simpático, o presente mais apreciado do feriado nacional de amanhã, 7 de Setembro. Talvez possamos ter condições para percorrer as ruas da cidade antiga de São Luís, património da humanidade, onde Vieira assentou os arraiais da sua grande missão e onde lutou por uma das grandes causas da sua vida, a da liberdade dos índios. Dois dos seus mais importantes sermões foram pregados aqui, logo no início da sua empreitada missionária.
Na maré vazante a água da baía de São Marcos colora-se com a tonalidade da terra, passando do verde para uma coloração leitosa, resultante da erosão provocada pelas enxurradas dos rios que desaguam no estuário. Mas a cor que realmente encanta e surpreende é o verde. E mais numa vez li em Gilberto Freyre que “há águas de mar em Portugal e no Norte do Brasil de um verde que é o do canavial tropical. O verde de mar ainda raso parece ter anunciado ao português, em algumas de suas praias de areia mais alva, o verde que, em certas águas e terras tropicais, seria a expressão principal do seu domínio económico sobre paisagens marcadas pela presença de outros e desvairados verdes. (…) O verde – cor muito dos árabes – parece ter desempenhado um papel entre estético e económico, entre social e psicológico, no sentido que principalmente tomou a expressão portuguesa: o sentido de uma expansão em águas e terras tropicais verdes”.
Não posso deixar de acrescentar: “franchement, il exagère!”, mas entendo que o convidado de Salazar tinha que fazer um esforço para agradar a quem lhe oferecia uma estadia de luxo em Portugal. Outros tempos, que não mudam nunca.
Mas que o verde do mar é mesmo verde, lá isso é. Como o verde dos canaviais, dos mangues e da floresta tropical.
7 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
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Hoje é feriado nacional no Brasil. Comemora-se o resultado de uma opção política pela independência do que era já um reino governado por um jovem príncipe rebelde e irrequieto, que à beira de um curso de água entre São Paulo e Rio de Janeiro, onde apeou da sua montada por razões das necessidades da longa viagem, terá recebido notícias que o levaram à decisão de declarar ali mesmo a independência do país. Era o dia 7 de Setembro de 1822, à margem do ribeiro Ipiranga. A 25 de Março de 1824 o império do Brasil tinha a sua primeira Constituição e D. Pedro era o primeiro imperador de um país com cerca de 3.600.000 habitantes (3.596.132 habitantes no censo de 1819, dos quais 1.107.389 eram escravos). Neste estado do Maranhão, que tinha então uma população de 200.000 habitantes, 133.332 eram escravos, ou seja: por cada cidadão livre havia mais de 2 escravos. A capital, São Luís, não ultrapassava os 22.000 habitantes. No tempo de Vieira, 180 anos antes, quando ele sugeria que se introduzissem os escravos africanos para preservar a liberdade dos indígenas, São Luís era uma “cidade” de poucas centenas de habitantes, uma centena dos quais colonos brancos e Belém do Pará era ainda menor.
O estado do Maranhão tem hoje quatro milhões de habitantes e a sua capital roda o milhão de almas. O porto de mar de Itaqui é um dos dois portos onde podem acostar os maiores navios do mundo; o outro é Roterdão. Existe um navio norueguês, o Berg Sthal, de 360.000 toneladas que faz exclusivamente a rota São Luís – Roterdão, levando do Brasil minério de ferro e voltando vazio. Presentemente estão à carga seis navios de capacidade superior a 250.000 toneladas, levando para o mundo inteiro minério, lingotes de ferro e de alumínio e trilhos de caminho de ferro, produção deste estado e dos estados vizinhos. Comboios com mais de 160 unidades de carga abastecem continuamente os depósitos de material, levados até aos porões dos navios por sofisticados mecanismos de carga.
A riqueza e a posição estratégica do Maranhão suscitou desde o início da colonização a cobiça de vários países; foram os franceses os primeiros a instalarem-se por aqui, multiplicando as incursões exploratórias pelos anos de 1590 e fundando a cidade de São Luís a 8 de Setembro de 1612, faz amanhã 395 anos. O rei de França era o jovem Luís XIII e governava como regente sua mãe Maria de Médicis. A questão religiosa da reforma e as frequentes perseguições aos protestantes franceses trouxeram muitos deles para o que chamavam as colónias da “França Antárctica”, em busca de espaços de liberdade.
Também faz amanhã 346 anos que os padres das missões de Vieira foram expulsos do Maranhão pelos colonos e pelas autoridades administrativas que cederam à pressão dos brancos, nove anos depois de cá terem chegado e após lutas épicas por princípios e regras que foram incumbidos de defender. Estava ancorado ao largo da foz dos rios Anil e Bacanga, que banham a cidade, o galeão Sacramento, (o mesmo que acabaria desmantelado poucos anos mais tarde num naufrágio à entrada da barra da Bahia de Todos os Santos), mas Vieira foi propositadamente embarcado a bordo de uma velha caravela desconfortável que o trouxe de volta ao reino, onde o esperavam os piores anos da sua vida. Os outros padres regressaram ao Maranhão pouco tempo depois, mas Vieira numa mais cá voltou.
9 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
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A Ilha do Maranhão fica situada na foz de vários rios que desaguam à sua volta e entre duas baías: a norte fica a baía de São Marcos, mais larga e profunda, onde desaguam os dois principais rios, o Pindaré e o Mearim; a sul fica a baía de São José, de águas pouco profundas, onde desagua o Itapecuru. A cidade de São Luís foi fundada num delta formado por dois pequenos rios que nascem na ilha e desaguam do lado da baía de São Marcos, por cuja foz, hoje assoreada, entravam os navios. A cidade moderna estende-se para leste, ao longo das praias e as novas instalações portuárias ficam a oeste, para o interior da baía de São Marcos. A cidade antiga tem o estatuto de património cultural da humanidade.
Os primeiros portugueses que cá chegaram não fizeram fortuna, não acharam ouro nem deixaram sequer obra feita onde gravassem os seus nomes para a posteridade. Foram mais de um milhar de atrevidos que chegaram numa frota de uma dezena de embarcações onde até não faltavam cavalos. Já que os espanhóis tinham encontrado ouro do outro lado da cordilheira eles esperavam encontrar muito mais deste lado; porém, três anos depois de terem chegado, a doença e os índios tinham matado mais de 700 dentre eles e os sobreviventes juntaram-se numa aldeia da ilha a que chamaram Nazaré e por lá sobreviveram, colaborando com os forasteiros de outros países que arribavam de vez em quando. Hoje, nem sequer se sabe onde ficava essa aldeia.
O padre António Vieira já constatara também que estas paragens tinham sido visitadas muito antes por gente chegada da Europa, que aqui deixou marcas bem visíveis da sua presença: uma tribo de índios que vivia ao longo do rio Itapecuru, os Ubirajaras, tinham barba na cara, coisa estranha entre os indígenas brasileiros, e por tal facto chamados também de Barbados. Há vestígios espalhados pelo nordeste e norte do Brasil da passagem de navegadores fenícios ou cartagineses e várias descrições de jornadas de navegação empreendidas pelos muçulmanos ibéricos dos séculos XI e XII em direcção ao continente americano. Até há quem afirme que o país de Ophir, onde Salomão enviou com sucesso uma expedição marítima, era aqui mesmo. Chegar até aos índios Barbados foi uma das primeiras missões que Vieira tentou sem sucesso empreender fora da ilha, logo à sua chegada. Na ilha havia o que ele chamava de “cristãos antigos”, divididos por cinco aldeias indígenas que já conheciam o cristianismo, graças ao trabalho do padre jesuíta Luís Figueira que por aqui tinha feito missão pelos anos 30.
Não tinham passado dois meses depois da sua chegada, Vieira pregou nesta cidade um dos mais importantes sermões da sua vida, o do primeiro Domingo da Quaresma de 1653. Obrigado a engolir um sapo, face à revolta dos colonos brancos contra as ordens régias de libertação dos indígenas escravizados, ele não deixou de dar os recados que fixariam as normas da sua difícil empreitada missionária; como as coisas não corriam ao seu gosto ele decidiu viajar até ao reino afim de obter pessoalmente do rei seu amigo instruções mais claras e sobretudo o apoio de uma nova administração para aquela parte da colónia. E foi na mesma igreja, antes de embarcar, que ele pregou um dos outros grandes sermões da sua vida, no dia de Santo António de 1654, conhecido por Sermão de Santo António aos Peixes: “a primeira coisa que me desidifica em vós, peixes, é que vos comeis uns aos outros…” Dessa igreja, então a mais importante de São Luís, restam apenas alguns pedaços anexos a outra mais recente, dedicada a Santo António.
Por entre ruínas do século XVII e casarões do tempo do algodão, São Luís antiga é uma cidade-museu, uma relíquia arquitectónica e uma verdadeira enciclopédia para o visitante. Mas a animação que lhe dá fôlego é de hoje, feita com cores de orixás e toadas de “reggae”, pelas ruas estreitas enfeitadas com azulejos, decoradas com bordados e redes coloridas, mulheres bonitas e garotos mestiços lançando ao vento centenas de papagaios de todas as cores.
10 de Setembro de 2007, São Luís do Maranhão.
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Depois daquele encontro de 1500, foram precisos mais de século e meio de esforços para consolidar a presença portuguesa no Brasil. A gente disponível era pouca, os meios escassos, o território desafiava a imaginação e exigia dos mais ousados um permanente espírito de coragem e de pioneirismo que poucos deles conseguiam atingir. Mas à custa de muita luta e persistência os outros intrusos foram abandonando o espaço que os portugueses acabaram por moldar ao seu jeito e feitio. Os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais marcaram a sua presença em Recife e deixaram vestígios sólidos da administração de Maurício de Nassau; os franceses de Villegaignon no Rio de Janeiro e os de Daniel de Latouche em São Luís deixaram também marcas inconfundíveis da sua identidade e alguns despojos. O Brasil teve assim os seus heróis da reconquista, os Sá no Rio de Janeiro, os Albuquerque em Pernambuco e no Maranhão. “Somos homens que um punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o há nos sustenta” – dizia o Albuquerque do Maranhão; o padre Vieira preferia um caranguejo para acompanhar a farinha.
Ao longo dos séculos foi a ousadia das levas de imigrantes, oriundos dos mais diversos recantos e das mais variadas classes sociais que moldaram este país com a matéria-prima que dele era original, o indígena. Ao longo da nossa rota vamos encontrando os vestígios trazidos do outro lado do oceano que contribuíram para erigir o património material e imaterial do Brasil, entre eles os de gentes e de técnicas ancestrais típicas de Aveiro nas embarcações, nas técnicas do sal e da cerâmica, no artesanato, na música, na indumentária. Em São Luís a azulejaria é a marca mais evidente da influência portuguesa; ruas inteiras fazem-nos lembrar Aveiro, desde a arquitectura aos materiais de construção e à decoração das fachadas. Esta é também terra de barcos à vela e de marinheiros, reduzidos hoje a algumas dezenas das muitas centenas que velejavam há 50 anos. Graças à iniciativa de um arquitecto, o mesmo que preparou a candidatura da cidade a património cultural da humanidade, Luiz Phelipe Andrés, uma antiga fábrica desafectada foi transformada em estaleiro-escola onde iniciaram um curso de dois anos os primeiros 25 alunos de carpintaria naval tradicional, coisa que distingue São Luís de Aveiro.
A grandeza e a dificuldade do oceano que rodeia esta ilha impressionaram Vieira desde a sua chegada, por uma rota que parecia contrária ao bom senso, pois chega-se de Portugal à costa brasileira rumando a sul e depois sobe-se em sentido contrário, levado por ventos e correntes muito fortes, ao longo de uma orla defendida por bancos e recifes. A ilha do Maranhão está rodeada de ratoeiras de toda a espécie e guardada por marés que ultrapassam os seis metros de amplitude, criando correntes violentas entre os numerosos baixios. Maranhão significava, nas palavras de Vieira, mar grande, exactamente pela sua força estranha nestas paragens; as embarcações dos índios chamavam-se no tempo do jesuíta “maracatins”, porque levavam à proa um instrumento de percussão chamado “maracá”. E logo o padre encontrou num texto do profeta Isaías uma alusão à sua missão, à terra onde os barcos têm nome de sinos. Muitas das velas são tingidas de vermelho, a cor da plumagem do “guará”, um pássaro que se alimenta de uma espécie de caranguejos do mangue que lhe dá essa cor única – pássaro esse que me tinha mostrado uma vez o prof. João Peralta, da Europan, nos mangues de Jaboatão libertos da poluição. Esta terra é de areia e de lodo, de mangues e de lamas, de marés e de ventanias, não é de rio nem de mar, é terra de Maranhão.
Foi daqui que Vieira enviou os seus padres e foi ele mesmo rios acima e pela orla costeira, percorrendo cada ano centenas de léguas, ao encontro das comunidades indígenas espalhadas por um território tão grande como toda a Europa comunitária, quase obcecado por objectivos que ultrapassavam o bom senso, numa paisagem maravilhosa mas hostil onde só os mais fortes sobreviviam. “Saiba o mundo, saibam os hereges e os gentios que não se enganou Deus quando fez aos portugueses conquistadores e pregadores do seu santo nome”. Estava difícil construir um país cristão com os colonos que cá estavam e que tratavam o indígena de modo totalmente alheio às normas da fé e às ordens do rei. Mas o pregador, o missionário, o religioso, é um patriota e um cidadão do mundo, habituado a gerir causas impossíveis e a sonhar com o futuro que ele tanto gostaria de ver regido e governado por um rei português. Sonhos vadios de um profeta em maré de lançar as redes.
11 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
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Olhando o mapa do estado do Maranhão, que tem 328.663 kms quadrados (umas 4 vezes maior que Portugal continental), surpreende-nos o emaranhado de rios que tece o seu território e investigando um pouco mais ficamos a saber que na realidade este estado possui proporcionalmente maior rede fluvial do que o estado de Amazonas. Não admira portanto que tenha também a maior variedade de embarcações de todo o Brasil, cada uma delas apropriada a um caudal de rio, a uma função específica de pesca ou de transporte, resultado da ciência dos mestres carpinteiros e dos barqueiros que deram à construção naval maranhense características muito particulares. É projecto obstinado do arquitecto Luiz Phelipe Andrés recuperar o património naval do Maranhão e para tal ele conseguiu pôr em funcionamento um estaleiro-escola que acaba de abrir as portas aos primeiros alunos, com os quais passámos a manhã de ontem, numa aula de informática. É que nesta escola não se aprende apenas a fazer embarcações, as de tamanho natural e os modelos reduzidos; os alunos recebem de facto uma formação geral de dois anos, seguida de estágios em diversos sectores da actividade marítima, desde a navegação até ao transporte e às actividades ligadas ao aproveitamento dos recursos naturais da rede fluvial e da orla marítima.
Já Vieira gabava a qualidade dos índios remadores do Maranhão, a sua arte de fabricar canoas, de as calafetar e de tecer as velas. Falando com qualquer barqueiro de hoje ele nunca deixa de nos mostrar o seu orgulho de navegar nas águas mais perigosas do mundo, de desafiar os ventos furiosos que parecem saudar as mudanças de maré, de se esgueirar por entre bancos e lajes escutando a “zoada” do casco, falando da sua embarcação como de um ser vivo. Os barcos são feitos de madeiras nobres, pintados de cores vistosas, com armação de todo o tipo de velas, latinas, bastardas, de verga, de espicho, de retranca e carangueja. Na parte museológica da escola encontram-se todos os modelos em miniatura e dentro em breve a instituição estará preparada para enviar os modelos de seu próprio fabrico para os muitos museus marítimos do mundo que lhe vêm solicitando peças. O projecto de envergadura mais imediato é o de enviar uma embarcação de 14 metros a um próximo espectáculo náutico de Brest, fazendo-a navegar do Maranhão até à Bretanha, para depois figurar num dos museus marítimos vivos de França.
Os estaleiros do Maranhão não têm história de construção de grandes veleiros oceânicos, como é o caso de Aveiro. As maiores embarcações são “iates” à vela destinados ao transporte de passageiros, que não ultrapassam os 30 metros, mas perfeitamente aptos, se necessário, para grandes travessias. Foram concebidos para navegar com segurança nestas águas difíceis e têm alma própria, são inimitáveis como os moliceiros de Aveiro. Como em Aveiro, de milhares passaram a centenas e agora são apenas dezenas os exemplares das grandes embarcações, substituídas progressivamente por “coisas” flutuantes como as que se vêem por toda a parte e que merecem a indiferença das máquinas fotográficas. Graças à paixão e ao carinho de alguns, ao seu esforço abnegado, há coisas lindas que não vão morrer e ainda espalharão pelo mundo inteiro a mesma emoção que Vieira sentiu quando viu os “maracatins” dos indígenas e se lembrou do profeta Isaías.
Luiz Phelipe prepara neste momento a segunda edição de um livro editado com a chancela da UNESCO e intitulado Embarcações do Maranhão – Recuperação das técnicas construtivas tradicionais populares. Nas primeiras páginas ele cita as palavras de um mestre carpinteiro naval do Maranhão: O barco é feito assim todo torto para ficar direito na água. É como esta nossa viagem, cheia de coisas tortas, imprevisíveis, para depois parir coisa linda, direitinha, cheia de surpresas.
12 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
02 35´00”S, 44 22' 00”W
Para um professor, vir a São Luís e não encontrar Jomar Moraes é como ir à Suiça e não comprar um relógio; mesmo os melhores mecanismos helvéticos são por vezes afectados pelas poeiras inoportunas que conseguem infiltrar-se nos mecanismos e perturbar-lhes a regularidade. Jomar, jurista e intelectual, ex-presidente da Academia Maranhense de Letras, editor de Fernando Pessoa no Maranhão, foi afectado recentemente por um ligeiro problema de saúde, mas teve a bondade de nos receber em sua casa, na sua biblioteca, a maior biblioteca privada do Maranhão. Nada da história do Maranhão lhe escapa e as missões de Vieira são um dos seus temas mais queridos; durante toda esta viagem, até agora, eu nunca tivera a oportunidade de partilhar com ninguém tão intensamente ideias e opiniões sobre a personalidade de Vieira e o significado das suas estratégias políticas e missionárias.
O jesuíta assentou o quartel general dos arraiais das suas missões em São Luís, no que restava ainda das instalações criadas pela primeira leva de padres que aqui chegaram em 1623 (na Carta Ânua de 1626 Vieira menciona 4 missionários jesuítas no Maranhão), mas que foram desaparecendo, mortos por doença ou comidos pelos índios. Treze padres desapareceram em 1643 na ilha de Marajó: eram chefiados pelo veterano P.e Luís Figueira, que tinha já uma experiência de 14 anos nas missões do Maranhão, de 1623 a 1637. Os padres chegavam do reino quando naufragaram e abordaram às praias da ilha onde foram massacrados e comidos pelos índios. Vieira relata numa carta o que ouviu de um soldado que terá presenciado o massacre e a festa antropofágica, e relembra ainda o sucedido na relação da Missão da Serra de Ibiapaba. Os últimos padres jesuítas, a quem Filipe III tinha confiado o governo dos índios em 1638, depois de um texto do padre Luís Figueira (Memorial sobre as Terras e Gente do Maranhão, Grão Pará e Rio das Amazonas) tinham desaparecido das missões do Maranhão em 1649.
Quando Vieira chegou, em Janeiro de 1653, restavam as instalações do alojamento dos padres e de um colégio, assim como uma capela, edifícios que Vieira empreendeu de restaurar. Restava também uma fazenda ou pelo menos o usufruto dela, onde ainda existia gado e alguns escravos. Foi a partir dessas instalações que se edificaram posteriormente outras mais imponentes, servindo actualmente como sede do arcebispado e Sé Catedral da diocese. A capela do recolhimento das Ursulinas, construída no tempo do padre Gabriel Malagrida, que por aqui exerceu a sua actividade missionária antes de ser vítima da fúria pombalina, é mais um dos vestígios da passagem atribulada dos jesuítas pelo Maranhão, que terminou com a expulsão decretada pelo Marquês de Pombal em 1759.
A igreja onde Vieira pregou o Sermão das Tentações, no Primeiro Domingo da Quaresma de 1653, a mais importante da cidade, já não existe. Também não existe mais a igreja de Nossa Senhora das Mercês, onde pregou o Sermão de S. Pedro Nolasco, que pertencia ao convento dos missionários das Mercês (hoje sede da Fundação José Sarney). Existe a igreja onde ele pregou o Sermão de Santo António aos Peixes, a 13 de Junho de 1654 e até um púlpito que não será muito diferente daquele a partir do qual ele chamou os peixes do estuário para ouvirem os seus recados, já que os homens o não queriam ouvir. Chama-se hoje Capela do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, originalmente edificada pelos capuchinhos franceses e hoje integrada como capela lateral numa igreja maior, dedicada a Santo António.
No adro da igreja encontra-se uma estátua de Vieira, ao que parece a única estátua de corpo inteiro do jesuíta em todo o Brasil, edificada pela comunidade portuguesa de São Luís. Das missões da ilha, como das da terra firme, não restam mais vestígios. Em Alcântara ainda se conservam as ruínas do colégio e a memória do único jesuíta originário da cidade, formado em Évora e que também dedicou a sua vida às missões do Maranhão, o padre Manuel Borba, contemporâneo de Vieira.
13 de Setembro de 2007, São Luís do
Maranhão.
02 35´00”S, 44 22' 00”W
Existe uma lenda sebastianista por estas terras. A todos os dias 4 de Agosto aparece um galeão todo iluminado nos Lençóis do Maranhão, um imenso areal desértico entremeado de lagoas de água doce; dele desce el-rei D. Sebastião que logo desaparece debaixo do solo onde reina numa cidade prodigiosa, rodeado de uma corte brilhante. Depois, na noite de São João, disfarçado de touro negro, o rei corre pelas praias, ao luar. Se algum dia alguém conseguir atingir a sua cabeça e dela fazer jorrar sangue, quebrar-se-à o encantamento e ficará vivo e presente el-rei D. Sebastião.
Parece que não há recanto nenhum do espaço da língua portuguesa onde não se tenha encontrado, encoberto ou disfarçado, o rei que se perdeu em Alcácer-Quibir. Na serra do Catolé, nos Lençóis do Maranhão, nos igarapés do rio Madeira, no ritual do tambor de crioula, na dança do boi-bumbá, tem sempre um rei ou um menino imperador no imaginário e nas esperanças inadiáveis dos falantes da língua. Aquele areal maldito onde se perderam as ilusões de uma glória desatinada contaminou outros areais que escondem outros tantos arautos de estranhas e poderosas profecias.
Mesmo se as utopias acompanharam e até marcaram a diáspora portuguesa de uma identidade muito própria, não foi menos poderosa a obra de transformação e de civilização do espaço invadido, afeiçoando-o aos critérios dos forasteiros. A presença portuguesa em terras brasileiras continua a afirmar a sua capacidade empreendedora, o seu espírito de solidariedade, a sua vitalidade cultural; são largamente conhecidas as numerosas instituições das grandes cidades, os Gabinetes de Leitura, as Misericórdias, os Hospitais Portugueses. São Luís do Maranhão não faz excepção e possui a mais que centenária “Sociedade Humanitária 1º de Dezembro”, que administra o Hospital Português e mantém uma permanente e eficaz assistência aos desfavorecidos. Fomos recebidos nas suas instalações onde funciona igualmente o consulado e onde a direcção nos proporcionou momentos intensos de intercâmbio cultural, dando-nos a conhecer as suas actividades e informando-se do nosso trabalho. Para além da solidariedade, a Sociedade vem-se empenhando na publicação e na divulgação de obras literárias, na restauração de espaços públicos como praças e igrejas, na colaboração com a Academia Maranhense de Letras e, para o próximo ano, projecta um conjunto de actividades específicas para comemorar os 400 anos do nascimento de Vieira e os 100 anos da Academia. Por isso mesmo, o nosso trabalho interessou sobremaneira os nossos anfitriões, que passarão a seguir a nossa rota através do Diário de Bordo e com os quais partilharemos, no próximo ano, as nossas produções.
Na sua grande maioria os “portugueses” de São Luís são originários da região de Aveiro e de Vila do Conde, alguns de Famalicão. Oliveira de Azeméis é terra de origem de muitos deles e referência da saudade mesmo das gerações daqueles que já cá nasceram. Os mais velhos chegaram aqui nos anos 50, alguns na década de 40, ainda muito jovens e acompanharam o crescimento da cidade que entretanto passou de 180.000 para um milhão de habitantes. Eles fazem parte desta cidade, é com ela que eles se identificam, com o bumba-meu-boi do mês de Junho, com as “bianas” de velas coloridas negociando as correntes e as marés do rio Anil, com os ritmos do “Tambor de Minas”, com as festas do Divino, com as ruas mais portuguesas de todo o continente americano.
Como sempre, é no momento da partida que somos mais solicitados para partilhar com esta e aquela instituição mais alguns momentos; mas a rota é ainda muito longa e esperam-nos mais de 400 milhas até Belém do Pará, por águas muito difíceis de navegar. Uma navegação cirúrgica, de rigorosa precisão: “navegar é preciso”.
16 de Setembro de 2007, Oceano Atlântico.
Adeus Maranhão, estamos a entrar em águas do Pará. Navegamos a apenas 40 milhas da linha do equador, pela longitude de Viseu, cidade marítima exportadora de algodão e de café, na margem esquerda do rio Gurupi, o rio que faz a divisória entre os dois estados. Deixamos a terra de João Francisco Lisboa, o mais esclarecido de todos os grandes biógrafos de Vieira, a quem a cidade dedicou uma estátua numa das suas praças; ele morreu em Lisboa em 1863, com saudades do seu Maranhão. Aliás, dentre os homens de letras de relevo deste Estado, só mesmo Gonçalves Dias e Sousândrade terminaram os seus dias na terra onde nasceram; o poeta do Sabiá faleceu num naufrágio em 1864, o autor das Harpas Selvagens morreu na miséria em 1902, vendendo pedras e azulejos das paredes da sua casa, para poder sustentar-se. Aluísio de Azevedo, o autor de O Cortiço e de O Mulato, duas grandes obras da literatura portuguesa de ficção do final do século XIX, nasceu em São Luís há 150 anos e faleceu em Buenos Aires em 1913, onde servia como diplomata. O seu irmão, Artur de Azevedo, um dos grandes nomes do teatro, veio a falecer no Rio de Janeiro em 1908. Teve ainda o jornalista Humberto de Campos, filho desta terra que foi morrer no Rio em 1935, mas que tem hoje nome de cidade no Maranhão e sobretudo o grande Catulo da Paixão Cearense, o inesquecível bardo do Luar do Sertão, de quem Fernando Pessoa dizia que era o único escritor de língua portuguesa do seu tempo que merecia o Prémio Nobel; morreu no Rio em 1946. Pequena cidade até aos tempos recentes, São Luís viu os seus intelectuais procurarem por outras latitudes outros espaços à medida das suas ambições.
Mas o Maranhão é também terra de alta tecnologia. Próximo da localidade de Alcântara, do outro lado da baía de São Marcos, situa-se a base de lançamento de foguetes, que faz parte da estrutura de pesquisa espacial brasileira. O acidente grave que vitimou alguns dos maiores especialistas não desmoralizou o país que continua a investir no seu programa espacial, contando com esta base muito bem situada para os lançamentos, pela sua proximidade do equador. É que a terra gira, no equador, a uma velocidade espantosa, imperceptível para os humanos que lá moram: 1.670 quilómetros por hora, impulso considerável, fornecido pela natureza, no lançamento de um foguete.
Esta costa, semeada de baixios e de coroas rochosas, é perigosíssima e só navegando para além da batimétrica dos 30 metros é que podemos encontrar segurança. Uma grande quantidade de embarcações de pesca nestas águas ricas em peixe de fundo que se estendem até à zona de Bragança representa outros perigos, como o da colisão e o de ficar de repente com a quilha embrulhada numa rede. As sinalizações luminosas são coisas que, ao que parece, o vento apaga facilmente por estas bandas. Navegando tão perto do equador usufruímos de uma temperatura primaveril, um vento moderado de feição e continuamos sem uma gota de chuva em cima do CHIC desde que deixámos Recife. Estamos na estação seca, por esta zona, o caudal das águas dos rios é fraco e o nível baixo.
Viseu, Bragança, Colares, Belém, Soure, nomes bem portugueses nas costas do Pará, como tantos e tantos outros pelo interior, ao longo dos rios e igarapés que tecem a mancha fluvial que dá acesso a um território de 1.227.500 quilómetros quadrados, um dos maiores estados do Brasil. Ao longo da costa aparecem alguns nomes de antigas missões de Vieira, que ainda subsistem nos nossos dias, tais como Maracanã, Gurupi, Cumã, terras que ele percorreu por várias vezes, nas suas idas e voltas do Maranhão ao Pará. Amanhã pela noite entraremos no canal de acesso à barra do rio Pará, entre a terra firme e a ilha de Marajó, uma ilha maior do que Portugal. A foz é tão larga que do meio dela não se avistam as margens; porém, é apenas navegável por estreitas passagens entre imensos e perigosos bancos de areia. Para além dos números do GPS, todos os olhos deverão estar bem abertos, porque a corrente transporta por vezes árvores inteiras e a lua ainda não está sequer no seu quarto crescente.
18 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
Entrámos à vela no canal navegável que dá acesso à barra do rio Pará pela meia noite de ontem para hoje e a primeira constatação que fizemos foi a de um tráfego marítimo intenso, barcos de pesca e cargueiros saindo e entrando, e sobretudo uma impressionante quantidade de pequenas embarcações de pesca com suas luzes de pirilampo, na periferia dos bancos. Levávamos ligada a iluminação das velas e logo nos fizemos interpelar pelo primeiro cargueiro a cerca de uma milha de nós: -“veleiro entrando no canal pela bóia de bombordo, aqui o navio City of Valetta, respeite a minha prioridade”. Atrás dele vinha outro pela mesma rota, com prioridade sobre qualquer outra embarcação por se encontrarem num canal balizado, mas o acesso tem espaço que sobre para uma embarcação ligeira como o CHIC poder manobrar. Estávamos com vento de feição a mais de 100 milhas da cidade de Belém, batendo nas oito nós.
Se o tráfego ao largo era intenso, à medida que entrávamos no estuário, pelo nascer do dia, o espectáculo tornou-se impressionante: centenas de embarcações de pesca, de todos os tamanhos e feitios, ocupavam as águas a perder de vista. São embarcações de pequeno porte, de muitos feitios e de variadas cores, algumas com apenas uns seis metros e movendo-se unicamente à vela, a maioria delas a motor e à vela, dedicando-se à pesca de fundo, ao arrasto de redes, vigiando redes fixas atravessadas, numa variedade de técnicas de pesca que nunca antes tinha visto em nenhum sítio do mundo. Pelo meio dia, já navegando com terra à vista, a quantidade de redes atravessadas era tanta que não era mais possível desviar-nos delas contornando as bandeiras que as delimitam, sendo forçados a passar por cima. Víamos as bóias afundarem-se à passagem da quilha e reaparecerem uns metros atrás, ficando sempre apreensivos com a possibilidade de levarmos alguma a zorro.
À hora em que entrámos na barra do rio Cuamá, ao início da tarde, as embarcações de pesca entravam em autêntica procissão exibindo as suas velas coloridas, com destino aos mercados da grande cidade. Belém fica situada na margem direita do rio Cuamá, a cerca de 20 milhas da sua foz. A capitania dos portos veio ao nosso encontro com uma lancha quando passávamos em frente da cidade velha, por alturas do mercado A Ver o Peso e guiou-nos até um cais disponível situado fora da zona cartografada, na baía de Guarajá, próximo da Universidade Federal, onde atracámos pelas 5 horas da tarde. Foram três dias e meio de navegação desde São Luís.
Esta escala é a da última etapa brasileira deste roteiro. A partir daqui vamos percorrer os espaços das missões do litoral paraense, da ilha de Marajó, do rio Tocantins e dos acessos ao rio Amazonas, por onde o jesuíta viajou, de canoa e a pé, fundando as suas “dezasseis igrejas” e ensinando o catecismo em sete línguas diferentes, um trabalho de bandeirante, uma empresa titânica, cheia de sobressaltos e de imprevistos, que só um génio da envergadura daquele padre ousaria enfrentar. A fase missionária da vida de Vieira tem sido até aos nossos dias a mais difícil de estudar e a menos esclarecida, mas foi para ele a mais importante, talvez não tanto por opção – porque ele veio para o Maranhão contrariado – mas pelo que veio a acontecer depois, pela capacidade daquele espírito irrequieto e profético em imaginar um mundo cuja história e destino ninguém até então tinha imaginado.
Aconteceu por aqui, por estes rios e igarapés, no calor dos trópicos, na euforia e na força dos seus 50 anos.
20 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
Passaram-se mais de 100 anos depois daquele encontro de Cabral com os autóctones do Brasil sem que os portugueses se interessassem por tomar posse efectiva desta terra. Foi Francisco Caldeira Castelo Branco quem fundou a cidade de Nossa Senhora de Belém, num outeiro sobranceiro ao rio Guamá, protegida por uma fortificação, como capital das terras a que chamou Feliz Lusitânia em 1616 (a Nova Lusitânia eram as terras de Pernambuco). Logo no início da ocupação colonial a padroeira da terra passou a ser, desde então até aos nossos dias, a bem portuguesa Nossa Senhora da Nazaré. O Forte do Castelo, a velhinha igreja de Santo Alexandre e a catedral actualmente em restauração são os edifícios mais emblemáticos da cidade velha, cujos habitantes passaram a usufruir dos mesmos privilégios que os da cidade do Porto em 1655. A história da igreja de Santo Alexandre tem uma ligação muito estreita aos padres que Vieira trouxe com ele: o papa Urbano VIII tinha oferecido aos jesuítas portugueses as relíquias de dois santos, Alexandre e Bonifácio, que os padres da missão de Vieira trouxeram para o Maranhão. Dois destes padres, João de Sotomaior e Gaspar Fragoso, foram enviados para o Pará e fundaram a igreja de Santo Alexandre, onde depositaram as relíquias do santo. A cidade cresceu ao ritmo dos períodos de fartura, cujos edifícios testemunham as diversas fases de prosperidade que contribuíram para o seu crescimento. Hoje Belém tem cerca de dois milhões de habitantes e os belenenses orgulham-se de terem nas suas ruas o que eles consideram o maior espectáculo religioso do mundo, no próximo mês de Outubro. Foi a primeira pergunta que nos fizeram logo à chegada: -“Vocês vêm para o Círio, não é?” Ninguém pode imaginar que se venha de tão longe para qualquer outra coisa que não seja a procissão do Círio de Nazaré, no segundo Domingo de Outubro.
No início do século XX as ruas da cidade, alargada muito para além dos seus limites ancestrais, foram arborizadas com mangueiras o que valeu a Belém o título de Cidade das Mangueiras, apesar de serem hoje em maior número as acácias e os castanheiros. Nesse tempo Belém era a quarta maior cidade do Brasil, com 72.000 habitantes, depois de Rio de Janeiro (com meio milhão), Salvador e Recife; São Paulo contava então com apenas 60.000 habitantes. Foi deste porto que saiu do Brasil a primeira produção aurífera, em proveniência das minas do interior de Goiás, onde foi descoberto o precioso metal em 1722 pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera. A essas minas, cuja existência fazia parte das especulações de Vieira, dava acesso o rio Tocantins e o seu afluente o Araguaia, razão pela qual o jesuíta fundou algumas das dezasseis igrejas do seu currículo ao longo destes rios e percorreu-os ele mesmo, numa estratégia cujo futuro só ele mesmo enxergava. Em 1751 Belém passou a ser a capital do “Estado do Grão-Pará e Maranhão”, uma espécie de restauração do antigo Estado do Maranhão criado em 1621 e extinto em 1652.
No início do século XX a borracha proporcionou um curto período de excepcional abundância que transformou completamente a cidade; a euforia passou como passam os furacões, mas Belém continuou a crescer graças ao progresso mais modesto de uma agricultura variada, desde a pecuária à castanha. A comunidade portuguesa, ainda hoje muito identificada com as suas origens, foi o resultado de uma imigração intensa e sustentada desde meados do século XIX, quando terminou a revolta da Cabanagem (1835-40), que chegou a declarar a independência do Pará, até às primeiras décadas do século XX. Nomes como Ferreira de Castro (A Selva) e João Lúcio de Azevedo, o biógrafo de Vieira e editor das suas Cartas, fazem parte dessa leva de portugueses imigrados no Pará. Uma parte muito considerável desses imigrantes era originária da zona de Aveiro. Belém e Aveiro são hoje cidades geminadas.
Faz exactamente 100 anos que um homem nascido na minha terra passou por esta cidade, como membro de uma companhia de teatro que fazia regularmente digressões pelo Brasil. Apresentaram várias peças por todo o país, desde Porto Alegre a Manaus e em Belém, como nas outras cidades, a companhia estreou-se com a peça O Outro Sexo, no teatro Polytheama, alcançando grande sucesso com Amor de Perdição. “Todos os Polytheamas eram barracões; mas este do Pará era o mais imundo de todos, conseguindo ser pior que o do Rio Grande do Sul; havia ratos do tamanho de coelhos. E para maior vergonha estava mesmo em frente do riquíssimo edifício do Teatro da Paz, um dos mais belos do Brasil, nessa data” – escreveu o actor na sua autobiografia, O Homem que Morreu Quatro Vezes. Pois o Teatro da Paz, onde Thomaz Vieira teria certamente gostado de actuar, continua a ser um dos mais belos do Brasil. E sobretudo que aqui não tinha que enfrentar um crítico violento contra tudo quanto vinha de Portugal, o tão célebre quanto excêntrico João do Rio, de seu nome verdadeiro Paulo Barreto, figura inconfundível da modernista e sarcástica boémia carioca, que tem cara pintada na parede do restaurante O Ernesto, na Lapa, frente à sala Cecília Meireles, ao lado de Madame Satan, Di Calvalcanti e Manuel Bandeira. Saudades da Lapa…
23 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
Para quem mede o tamanho das suas leiras em metros quadrados e conta as cabeças do seu rebanho às dúzias, esta terra é desmedida. Já o padre Vieira calculava as distâncias em léguas e situava as suas missões em graus de latitude. É muito difícil imaginarmos o que sentia um colono recém chegado dos Açores ou das serranias das Beiras, habituado a delimitar a sua lavoura entre os escassos torrões de terra protegidos por muros de escórias vulcânicas ou de pedregulhos graníticos, praguejando com ódio e raiva contra a vaca do vizinho que abocanhava à passagem uma espiga de cevada da sua sementeira, correndo atrás do garoto que roubava duas castanhas caídas de um casulo do seu castanheiro, de repente olhando a imensidão do espaço que enchia os seus olhos e saturava a sua ambição, sem o constrangimento dos olhares invejosos da vizinhança espreitando pelas frestas o caldo do seu prato e dos ouvidos que escutavam do outro lado do caminho o respirar do seu sono. Tão difícil quanto imaginar a emoção do degredado, para sempre suspeito e segregado entre os seus, desembarcado neste mundo imenso, lavado das impurezas que o sujaram e sem braços nem olhos para açambarcar tudo quanto podia vir a ser dele. Para sobreviver nesta terra é preciso pensar grande, porque tudo aqui é grande: os rios, as árvores, os peixes, os perigos, as trovoadas e os pecados.
Manuel Pedro Quaresma nasceu aqui, de pais portugueses. É carpinteiro naval e algumas coisas mais, como a maior parte da gente por aqui: todos têm que ser saber fazer qualquer coisa mais, não é como em Portugal onde basta saber fazer uma coisa só. Um familiar do Manuel Pedro, por exemplo, em Portugal só joga futebol e não sabe fazer mais nada. Na ilha do Cumbu, do outro lado do rio Guamá, ele tem um pavilhão onde vive, constrói os barcos, faz festas de casamento – fomos convidados para a festa de casamento do filho mais novo ontem – promove actividades de turismo ecológico, fabrica miniaturas de embarcações, tudo isso quando não presta serviços no Campus da Universidade Federal, do lado de cá do rio. O almoço que nos ofereceu, na sua Ilha da Fantasia, foi caranguejo com farinha do pau, uma surpresa bem a propósito: é que há uma célebre frase do padre António Vieira, desabafando a um colega que afinal as missões do Maranhão não são assim tão ruins, pois um caranguejo e um punhado de farinha nunca nos há de faltar… Ainda hoje o caranguejo abunda nos areais a todas as marés baixas e a mandioca é coisa que quase cai do céu, quando não salta da terra: juntam-se as duas coisas num prato bem decorado ou numa simples folha de bananeira, com ou sem caipirinha (e cachaça não faltava aos jesuítas do Maranhão), e está feito o petisco. Afinal, não tinham os padres nenhuma razão para passar mal. Nos rios abundam incontáveis espécies de peixe e nas florestas outras tantas variedades de frutas exóticas.
Uma cobertura de palha feita de folhas de palmeira, sustentada por paus, como o pavilhão do Manuel Pedro, abriga da chuva por uma dúzia de anos, esfregando o corpo com as folhas de uma planta que cresce à toa debaixo das seringueiras ficamos livres dos mosquitos e uma rede estendida entre dois paus é a cama mais confortável seja em terra seja a bordo de um barco que sobe e desce os rios da bacia amazónica. Foi assim que os jesuítas levantaram as suas primeiras igrejas e colégios nas missões do Pará e do Maranhão, há 350 anos. Na ilha do Cumbu, mesmo em frente à cidade de Belém, não há estradas nem sequer caminhos, muito menos electricidade ou rede de esgotos. Nem sequer ponte que lá faça chegar uma viatura. O pavilhão onde delicia os citadinos com os seus petiscos ecológicos está no meio da floresta tropical como ela era antes da chegada dos colonos e talvez até antes da chegada dos próprios indígenas. Tem uma árvore enorme no meio do terreno, uma assacú, venenosa, cujo suco pode matar uma pessoa através do contacto com a pele; no cimo da árvore tem o seu abrigo um tamandaré solitário, que se alimenta das formigas que fazem os seus ninhos nos troncos das outras árvores, bolas grandes como abóboras negras. Enormes urubus silenciosos e bandos de jandaias sempre em algazarra enfeitam as árvores. A correnteza da água do rio rouba-lhe cada ano vários metros do seu terreno e deposita toda essa areia nos bancos da foz; antes das chuvas deste ano ele vai ter que desmanchar o seu pavilhão e reconstruí-lo cinquenta metros mais acima, refazendo também o cais privado onde acostam as embarcações.
Pelas quatro horas da tarde fizemo-nos à vela para o outro lado do rio, viagem de escassas milhas; o céu estava escuro, mas nada que nos fizesse prever uma violenta trovoada e uma chuva como só mesmo nos trópicos acontece. Não me lembro de ter visto o CHIC tão bem lavado como está agora, atracado no cais do Hotel Beira Rio, para mais confortavelmente podermos receber a bordo os nossos convidados.
24 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
Nas viagens entre o Pará e o Maranhão, Vieira e os seus padres subiram e desceram este rio Guamá muitas vezes em canoa. À excepção das aglomerações e das fazendas que se instalaram e cresceram ao longo das suas margens, a grande maioria da paisagem é feita da mesma floresta tropical de origem. A maré avança até 80 quilómetros a montante de Belém, sem acrescentar salinidade à água, infiltrando-se por centenas de furos e de igarapés entre outras tantas ilhas, cada uma delas mais paradisíaca do que as demais; o rio é generoso em variedades de peixe e a natureza é pródiga em árvores frutíferas e em caça. No tempo das missões e das primeiras tentativas de colonização as margens deste rio foram o primeiro espaço a ser ocupado pelo homem branco e essa foi também a razão para que os portugueses edificassem a primeira defesa de pedra e cal em terras amazónicas, a fortaleza do Presépio.
Depois de navegarem cerca de 180 quilómetros pelo rio Guamá, os viajantes caminhavam até outro rio, o Gurupi, que faz hoje a divisória com o Maranhão e por ele desciam de canoa até ao litoral, onde fica actualmente a cidade de Viseu. Este era outro rio povoado de tribos indígenas, das primeiras a serem cristianizadas, em cujas margens se estabeleceram os primeiros colonos. A partir daí a viagem fazia-se a pé pelos extensos areais desérticos denominados “lençóis” até às terras de Cumã, onde chegavam a uma povoação na margem esquerda do estuário dos rios Mearim, Pindaré e Itapecuru, denominada Tapuitapera, hoje Ancântara. Na grande ilha do estuário fica São Luís do Maranhão. Ao todo, a viagem rodava pelos 500 quilómetros, utilizava os cursos de dois rios, atravessava mais três caudais importantes antes de cruzar a actual baía de São Marcos. Era uma viagem de duas semanas, dependendo das águas. As grandes canoas do rio Guamá eram cavadas num só tronco de itaúba ou de sapucá e tinham cerca de 15 metros de comprimento; levavam 12 remadores cada uma e podiam transportar à volta de 5 toneladas de carga. As embarcações do rio Gurupi eram de menor porte, mais ligeiras, feitas de madeira de castanheira e podiam ser transportadas aos ombros de um rio para outro ou entre duas zonas separadas por rápidos e cachoeiras. A travessia dos rios mais pequenos era feita em canoas ou jangadas, quase sempre perto da foz; a baía de São Marcos exigia boas canoas e melhores remadores, conhecedores das águas, dos ventos e das marés. Os indígenas utilizavam velas feitas de cânhamo ou de fibras de palma tecidas e as etapas com tempo e maré favoráveis podiam ultrapassar, nas doze horas de dia, uma média de 15 léguas de distância, 75 quilómetros.
Uma viagem exigia tempo de preparação, canoas e remadores disponíveis e sobretudo a escolha certa do momento; na estação das chuvas, de Novembro a Junho, era muito difícil empreender uma grande viagem, não só por causa da temperatura mas também porque a alimentação da comitiva, que ultrapassava facilmente meia centena de pessoas, necessitava de caça e de pesca para completar a alimentação transportável. Quando o caminho passava por território de tribos amigas a empreitada era mais fácil, mas em território desconhecido tornava-se necessário acrescentar à comitiva gente com bacamartes, arcos e flechas de guerra, o que significava duplicar as canoas e a comitiva. Bem podia Vieira desafiar os concorrentes do alto do púlpito: “pregadores há que pregam no seu quintal… e há os outros, que vão por esse mundo fora… pregando e comendo caranguejos com farinha de pau”. Podia até dar lições de demagogia aos políticos mais oportunistas do século XXI. E dá mesmo!
Toda a navegação pelos espaços das missões do Pará e do Maranhão, num território tão vasto quanto a Europa comunitária, fazia-se pelos rios. Por mar apenas navegavam os navios que chegavam e partiam para a Europa, os quais se aventuravam a navegar também pelos principais rios, tão largos e profundos que permitiam a passagem de frotas inteiras, como hoje permitem a passagem de grandes navios de alto mar ao longo do Amazonas e dos seus afluentes. Belém é um porto modesto que não permite a acostagem de grandes navios, com calado superior a 10 metros, mas Manaus, a muitos dias de viagem pelo interior, permite a acostagem, nos seus cais flutuantes, de navios de até 150.000 toneladas e calados de 12 metros.
Quando viajamos pela Europa do norte ficamos sempre impressionados com a quantidade de embarcações de toda a espécie que singram pelas costas e pelos canais da Holanda, pelo Mar Báltico e pelos fiordes da Noruega, ao ponto de nos interrogarmos sobre a verdade daquela expressão que nos apregoa o atributo de “heróis do mar”. Pois será necessário vir até aqui para apreciar o que é verdadeiramente um país de barcos e de marinheiros, o que são os caminhos de água e a infinita variedade das embarcações, de todos os tamanhos, formas e cores, desde a canoa de criança até à balsa de 1.500 toneladas, que enfeitam as águas e a paisagem todos os dias e a todas as horas.
26 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
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A mãe de Júlio de Jesus Monteiro, um descendente como tantos outros de índia e de português, tem uma devoção muito especial por Santa Luzia; a todos os dias 13 de Dezembro arde sempre uma vela em sua casa junto a uma imagem da santa da luz. Um dia Júlio decidiu ir procurar na Internet qualquer coisa mais sobre a santa da devoção de sua mãe e deu com uma mensagem a propósito de uma imagem de Santa Luzia roubada de uma capela algures em Portugal, numa terra de que nunca tinha ouvido falar. Vai daí, decide comunicar com os autores da mensagem para saber mais, porque um dos seus amigos é o santeiro mais conhecido de Belém, Paulo Neves, capaz de esculpir qualquer imagem de santo a partir de uma simples fotografia.
E deu mesmo certo: o artista esculpiu e pintou a imagem que foi benzida na igreja de Nossa Senhora da Nazaré da cidade de Belém e seguiu para Portugal na bagagem de um visitante da aldeia da santa roubada que, por mero acaso, se encontrava no Pará para o funeral de um parente. O Miguel voou para Portugal com a imagem da santa no mesmo dia que nós chegámos a Belém. No passado Domingo houve missa e festa na capela de Santa Luzia de Veiros, concelho de Estarreja, em cerimónia especial de reposição da imagem no nicho da sua capela milagreira; estavam presentes o padre Victor Bandeira de Beduído e o padre José Henriques de Avanca. A história não mereceria a pena de ser contada se a minha mãe não tivesse feito uma promessa à Santa Luzia dessa mesma capela da imagem furtada quando eu era criança, por um problema nos olhos que nunca mais me afectou na vida, se não fosse um local de passagem obrigatória nos passeios equestres da turma da minha coudelaria, se o padre José Henriques não fosse um dos meus colegas dos tempos do seminário de Aveiro, se o Júlio, ao ver a reportagem da Globo não aparecesse logo no cais para visitar o barco dos portugueses.
Mas tem mais: o santeiro fez uma segunda imagem da santa, idêntica à que foi para Portugal, não pintada, apenas esculpida em madeira de cedro e o Júlio trouxe-a consigo para mostrar e contar a sua história. Ficou surpreso quando lhe disse que o padre António Vieira, cuja vida é o motivo da nossa presença nestas águas, celebrou a sua primeira missa em dia de Santa Luzia – mais uma coincidência. Prometeu voltar amanhã e trazer com ele o santeiro. O mundo da globalização não serve apenas para fazer grandes negócios, partilhar tecnologias e difundir notícias da moda e do desporto. Serve também para partilhar estas coisas de pouco valor que apenas servem para criar pontes emotivas entre pessoas e lugares distantes. “Este mundo, Senhores, composto de tanta variedade de estados, ofícios e exercícios públicos e particulares, políticos e económicos, sagrados e profanos, nenhuma outra coisa é senão uma praça, ou feira universal, instituída e franqueada por Deus a todos os homens, para negociarmos nela o reino do céu”. (Sermão da rainha Santa Isabel). A “feira universal” de Vieira precedeu de três séculos a “aldeia global”; hoje mesmo, a bordo do CHIC, acabámos de viver mais uma experiência, tão ingénua quanto emblemática, de uma forma caseira de cidadania universal.
28 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
O padre Vieira subiu e desceu este rio pelo menos umas oito vezes, nas suas viagens entre São Luís e Belém, a última das quais sob custódia militar, quando o forçaram a embarcar para o reino, depois de preso e encarcerado. A prisão dos padres tinha mais como objectivo protegê-los da fúria dos colonos até ao momento do embarque do que puni-los por qualquer prevaricação. Nem todos os missionários embarcaram para o reino: ficaram os da serra de Ibiapaba, os das missões do rio Tapajós e os do rio Xingu, territórios distantes onde alguns dos padres eram estrangeiros. A paisagem, na quase totalidade da sua extensão, seria praticamente a mesma, à excepção das cidades e explorações agrícolas que entretanto cresceram nas margens, nos locais das antigas missões, das quais restam poucos vestígios. “É célebre este Guamá por ser estrada geral dos que vão e vêm do Maranhão para o Pará e desta cidade para aquele estado pelo caminho de terra; junto a sua cachoeira a pouco mais de quatro dias (os rápidos de São Miguel do Guamá, uma missão de Vieira) tem uma casa forte com presídio de soldados “– escrevia o padre João Daniel, um século depois da missão de Vieira.
O caudal do rio Guamá deve ser superior ao de todos os caudais dos rios portugueses juntos; só não verifiquei a “pororoca” do texto de João Daniel. É um afluente do Pará, onde desagua num estuário cuja foz tem quarenta quilómetros de largura, entre a ilha do Mosqueiro e Barcarema. Mas esta foz ainda se encontra a uns 80 quilómetros do mar. A foz do rio Pará, entre o cabo Maguari e a ponta da Tijoca, tem setenta quilómetros de largura. A amplitude das marés vivas em Belém, a trinta quilómetros da foz do Guamá, atinge 3,5 metros de altura e a correnteza média na vazante ultrapassa os 5 nós de velocidade (10 quilómetros horários). O Campus da Universidade Federal do Pará fica situado na margem direita do rio, a montante da capital. As terras são sistematicamente comidas pelas águas que destroem todas as tentativas feitas pela Faculdade de Engenharia para travar a derrocada. Todos os cais ruíram e as embarcações que transportam os alunos e funcionários em proveniência da outra margem desdobram-se em manobras de atracação para despejarem os seus passageiros no areal. A Universidade contratou uma balsa para que o CHIC ficasse acostado e pudesse receber visitas; mas a violência da corrente neste período de marés vivas provocou a ruptura dos cabos de atracação da balsa, felizmente na maré montante e tudo foi à rola pelo rio acima. Uma sorte que eu estava a bordo e pude manobrar com o motor do veleiro para impedir que a balsa encalhasse nas margens. A balsa foi substituída por uma embarcação que oferece pouca resistência à corrente e entre uma estaca e a popa da embarcação encontrámos um sistema para atracar o CHIC e receber visitas dispostas a alguma acrobacia. Beneficiamos assim da indispensável segurança e vigilância do Campus, da corrente eléctrica, balneários, água corrente e todos os serviços da Universidade Federal.
O rio acarreta na vazante uma quantidade impressionante de dejectos, provenientes dos bairros periféricos da cidade, de favelas e de ocupações clandestinas; o próprio Campus da Universidade tem neste momento uma parcela invadida por moradores que lá assentaram os seus abrigos precários. Deslizam ainda pelo rio pedaços de terra com vegetação, árvores inteiras, animais mortos, embarcações à deriva, o que representa um perigo para a navegação intensa que raramente respeita as regras mais elementares da segurança. No fim de semana navegam as embarcações com turistas, difundindo ruídos musicais que se ouvem nas duas margens, jetskis, lanchas voadoras e navegadores de circunstância em cata de emoções.
Uma das emoções consiste em observar botos, os golfinhos amazónicos de cor rosada, pequenos cetáceos e tartarugas; nas margens a quantidade de pássaros é impressionante. Surpresa será observar uma sucurí, cobra não venenosa que pode atingir os seis metros, uma espécie de anaconda dos rios do Pará. Pois aconteceu-me observar uma delas, que veio muito devagar com a sua cabeça por cima da água do tamanho e da cor de uma melancia; com seus lindos olhos de gato, parecia coisa mansa a pedir carinhos, na praia da ré do CHIC. Ficou cheirando a bacia com roupa de molho, não lhe pareceu comida apetitosa e seguiu nadando rumo à margem, ondulando seu corpo cinzento e luzidio; terá sido a mesma que foi avistada umas horas depois nos contentores do lixo de um dos restaurantes do Campus, na margem de um igarapé. Na ilha das Onças e do outro lado da ilha do Cumbu parece que tem jacaré. Dizem os ribeirinhos que tem ainda capetas nos bosques e iaras nas águas, uns assustam a gente, outras atraem os pescadores com a sua doçura, para depois os precipitarem nas profundezas. Mas que tem sucurí lá isso tem, porque… “meninos, eu vi”!
30 de Setembro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W
No fim de semana, o Campus universitário está deserto, uma solidão quase fúnebre com as enormes seringueiras, castanheiras e acácias oxigenando as suas copas ao vento quente e húmido da manhã tórrida. Pela tarde vem uma ameaça de chuva, uma trovoada que passa sem refrescar a atmosfera, que nos debita 35 graus de temperatura e torna o interior do CHIC insuportável. Dormir, só mesmo em cima do convés, virando presas fáceis dos mosquitos tão miúdos quanto persistentes e sobretudo infinitos em número. Vazio de gente, o Campus torna-se recreio de passarada, de tamanhos, cores e feitios nunca antes vistos pelo Cuécué, a não ser os urubus, parecidos com perus caseiros, que não se deixam impressionar por um cachorro de três patas. Mas não há bicho de penas que não leve uma corridinha para lhe facilitar a descolagem. Há tanto cachorro na cidade de Belém e redondezas, mas universitário só mesmo o Cuécué!
A Universidade tem 35.000 alunos e estende-se por 3 quilómetros ao longo do rio. O denso arvoredo proporciona uma temperatura agradável, o melhor e mais eficiente ar condicionado que existe no planeta. Quase todos os edifícios da universidade estão parcialmente à sombra de copas de árvores gigantes. Nós mesmos deixamos o veleiro para recebermos os nossos convidados e trabalharmos à sombra das mangueiras. O grande martírio do final do dia é causado pelos mosquitos, resistentes aos mais caros produtos inventados para os manter à distância. Só existe um meio de os evitar, ficar no meio de uma corrente de ar ou então ancorar o barco a mais de 300 metros da margem antes do final da tarde, porque a autonomia de voo destas criaturas não atinge os 300 metros. Quando o vento sopra a temperatura é agradável, apesar de estarmos apenas a 90 milhas da linha do equador e com o sol na vertical. Já escrevia o padre João Daniel há uns 230 anos: a primeira circunstância que buscam (os povoadores da Amazónia) para a erecção de alguma povoação ou sítio é que seja bem exposta e lavada dos ventos, para ser fresca e sadia.
Temos proporcionado aos jornalistas e demais convidados pequenos cruzeiros à vela pelas águas do Guamá e preparamos a nossa incursão pelo interior da Amazónia, pelos espaços mais distantes das missões de Vieira. Não podemos empreender esta viagem com o CHIC, dado o perigo a que estaríamos sujeitos. A violência e a criminalidade na cidade de Belém são das maiores do país e o flagelo estendeu-se à navegação ao longo dos rios, onde os “ratos de água” assaltam indiscriminadamente as embarcações. A polícia militar patrulha as águas com embarcações rápidas fortemente armadas, mas são tantos os milhares de quilómetros navegáveis que o perigo permanece. A pequena estadia nas instalações do Iate Clube e no cais do Hotel Beira Rio, considerados locais razoavelmente seguros, privou-nos de três defensas e de dois cabos de atracação, apesar de todos os cuidados e da vigilância intensa. Um veleiro como o nosso seria um alvo fácil e apetitoso e só um acompanhamento de segurança armada de pelo menos duas pessoas poderia garantir a sua viabilidade.
Teríamos além disso ainda de levar a bordo um piloto (prático de navegação), o que implicaria uma tripulação de pelo menos mais três pessoas a bordo. É mais razoável e mais seguro navegarmos numa embarcação local em tudo igual aos milhares de embarcações que circulam por estes rios; estamos a negociar com a Secretaria de Estado da Cultura, a Universidade Federal do Pará e com a ajuda do Consulado, um apoio para podermos fazer o nosso trabalho a bordo de uma embarcação local.
Em oito anos de actividade missionária os jesuítas realizaram no Maranhão e Grão Pará um trabalho titânico. Eles foram dos maiores bandeirantes do Brasil, pacificando comunidades, abrindo caminhos pelo litoral e pelo sertão, ocupando posições estratégicas ao longo das grandes vias de comunicação, os principais rios que dão acesso ao interior. No primeiro ano de actividade, o trabalho de Vieira foi descoordenado, sem orientação precisa, desatinado; obviamente que aquela largada de Lisboa em Novembro de 52 não estava nos seus planos. Mas depois da viagem ao reino em 54-55 o jesuíta encontrou o seu rumo e a sua empreitada foi um autêntico furacão por onde passou. Graças às missões ficou unificado o território brasileiro; menos de um século mais tarde circulava o ouro de Goiás e Mato Grosso pelos rios até Belém, que se tornou a capital do Grão Pará e Maranhão (o nome foi mudando com o tempo). O padre João Daniel, natural de Travassos, perto de Viseu (o Viseu de Portugal) e missionário nesta zona durante catorze anos, testemunhou um século depois, no seu tratado Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, o resultado fantástico da bandeira dos missionários de Vieira.