CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA

31 de Janeiro de 2008, Ilha das Flores.
39 22´00”N, 31 10' 00”W

Chegámos hoje ao pôr do sol à ilha das Flores, depois de 20 dias de travessia, dos quais 12 foram de temporal rijo. Cansados e sem mais nenhuma peça de roupa seca, à míngua de água potável, estamos satisfeitos do nosso esforço; o CHIC sofreu os atentados do mau tempo e mostrou a vulnerabilidade dos seus 18 anos de idade, cedendo à fúria dos assaltos das vagas e das ventanias. Nada que comprometesse a nossa segurança, mas algumas situações exigiram um esforço brutal para solucionar as avarias: o baixo brandal de estibordo foi arrancado da sua fixação, tendo quebrado um dos parafusos que atravessa o convés e faz a ligação com o casco, o tubo de alimentação de gasóleo do motor entupiu, provavelmente com detritos de carburante de má qualidade, a adrissa da vela grande bloqueou no topo do mastro, exigindo uma viagem às alturas num oceano em fúria, e outros pequenos detalhes que qualquer peregrino dos oceanos tem que enfrentar.

Ao terceiro dia da travessia, com tempo de chuva e vento fraco, chegou o vento favorável de sudoeste que esperávamos e que nos deixou eufóricos durante quatro dias. Mas de repente o barómetro deu uma descida brutal e os relatórios meteorológicos confirmaram a tormenta: vento forte de Leste, com aviso de tempestade para a zona em que navegávamos, obrigando-nos a 36 horas de deriva, a seco de tela. Retomámos a nossa rota com tempo frio e chuvoso, influenciado pelas violentas tempestades de neve que se instalaram na zona de Terra Nova, Nova Escócia e costa Leste dos Estados Unidos: ventos favoráveis para nós mas temperaturas baixas, que não ultrapassaram os 8 graus, com chuvadas intermitentes de granizo. Foi numa rajada de vento que precedeu um desses aguaceiros que cedeu o brandal de estibordo, exigindo uma intervenção de imergência nas piores condições, já que agarrada à peça de aço inoxidável saiu um pedaço de convés deixando um buraco de vários centímetros quadrados. Cumpríamos o nono dia de travessia, a meio caminho do destino. Para complicar ainda mais a situação a adrissa da vela grande bloqueou, provocando mais uma operação complicada: subir ao mastro e cortar o cabo, para poder amainar a vela. Como Dietmar é o mais levezinho de todos, coube-lhe a honra da proeza.

Durante toda a travessia tivemos as noites iluminadas pela lua, do quarto crescente ao quarto minguante, o que muito nos favoreceu nas vigias nocturnas, mas uma travessia invernal por estas latitudes é sempre imprevisível e perigosa. Ao décimo sexto dia surgiu uma ventania de Leste, impossível de enfrentar com o mastro vulnerável, que nos forçou a mais um dia de deriva a seco de pano; foi então que surgiu o problema da alimentação do motor, que solucionámos com uma ligação provisória a partir de um bidão de carburante, de modo a podermos enfrentar qualquer eventualidade que exigisse intervenção mecânica. No décimo oitavo dia, a 300 milhas do nosso destino, navegando à bolina num mar alteroso, apareceu a bordo uma andorinha que se instalou no salão e nos acompanhou durante um dia e uma noite, partilhando o nosso espaço e até se acomodando nos nossos braços, nas nossas cabeças e nos armários do salão. Quando chegou o bom tempo a andorinha voou e desapareceu; nós rumámos para o porto mais próximo onde acabámos de chegar, na paradisíaca ilha açoriana das Flores.

Por estas águas passou Vieira numa atribulada viagem ao reino quando dirigia as missões do Maranhão e ainda não tinha encontrado o rumo certo para a sua empreitada missionária. Largou de São Luís inopinadamente, sem mesmo informar os colegas de missão, depois daquele patético sermão aos peixes em dia de Santo António. Em finais de Julho o barco em que viajava foi desarvorado por uma tempestade e ficou à deriva nas proximidades do arquipélago dos Açores. Apareceram piratas holandeses que saquearam a embarcação e abandonaram os passageiros na ilha Graciosa. Daí Vieira passou à ilha Terceira e à de São Miguel, onde os jesuítas possuíam colégios, pregou um célebre sermão no dia da festa de Santa Teresa onde contou a sua aventura e seguiu para Portugal a bordo de uma embarcação inglesa, em Novembro. Reparadas as emergências dos estragos provocados pelos 20 dias da mais longa e perigosa travessia desta viagem, depois de algum repouso e secada alguma roupa, o CHIC vai rumar para as ilhas Terceira e de São Miguel, cumprindo assim o roteiro do grande missionário.

4 de Fevereiro de 2008, Oceano Atlântico.
27 53´00”N, 26 43' 00”W

Os verdadeiros motivos que levaram Vieira a empreender aquela viagem ao reino em Junho de 1654, apenas ano e meio depois de ter chegado às missões do Maranhão, ele não os revelou a ninguém. A situação era tensa entre jesuítas e colonos, as regras sobre a escravatura dos índios não eram cumpridas, o missionário escrevia cartas ao rei sugerindo um estatuto mais claro e até mesmo algumas concessões às pretensões dos colonos. Mais grave ainda, ele não se entendia com os governadores do Grão Pará e do Maranhão e queria vê-los substituídos por um só que fosse honesto e cumpridor das ordens régias.

Mas havia mais: o príncipe herdeiro, D. Teodósio, tinha morrido, o herdeiro do trono era demente e a saúde do rei era frágil. Vieira sentia que D. João IV tinha necessidade da sua presença, dos seus conselhos, da sua experiência política. Terá havido entre Vieira e a rainha alguma correspondência entretanto perdida, terão havido também outras notícias e outros comentários da parte do mestiço paraibano André Vidal de Negreiros, um dos heróis da resistência aos holandeses em Pernambuco, com o qual Vieira acabou por se entender. O jesuíta estava no auge da sua agressividade contra os desvairos dos incapazes e dos pretensiosos do reino, até mesmo contra os religiosos acomodados com a hipocrisia e a rotina da mediocridade, num momento particularmente decisivo da sua vida, à frente de uma empreitada missionária que não tinha encontrado ainda o rumo certo. Aquele sermão aos peixes na igreja sobranceira ao rio Anil foi patético, mas ele tinha feito as malas, que não eram pequenas nem iam vazias; só ele sabia o que lá metera.

O barco em que embarcou viajava sem escolta e levava um carregamento de açúcar, de tabaco, provavelmente outras mais mercadorias e alguns passageiros, ele não diz quantos; os barcos do Maranhão viajavam frequentemente nessa época sozinhos, rumo ao reino, passando a leste das Caraíbas e a oeste dos Açores, com os ventos favoráveis do verão. Mas essa é também a época das tempestades tropicais e dos furacões e foi certamente um percalço meteorológico desse género que surpreendeu os navegantes já depois de terem passado pela ilha das Flores: o mau tempo desarvorou o navio que ficou à deriva, talvez mesmo tenha adernado em algum momento já que Vieira fala de ter andado agarrado ao costado, mas flutuava, guardava passageiros e mercadoria, acabando por ser alvo de um encontro feliz mas inoportuno com corsários holandeses que infestavam a região e que o esvaziaram da sua carga, sem molestar os viajantes, que foram despejados na ilha Graciosa. Vieira passara algum tempo na Holanda meia dúzia de anos antes e terá convencido os piratas que tinha conhecimentos ao mais alto nível na hierarquia do poder das Províncias Unidas, facto que ajudou a salvar a vida dos passageiros. No entanto, ficou sem a sua preciosa bagagem, que tratou depois de recuperar através de um judeu português na Holanda.

Foi também graças ao seu prestígio e à sua intervenção que todos os passageiros foram acolhidos nas instituições que os jesuítas possuíam nos Açores, passando da ilha Graciosa para a Terceira e desta para São Miguel. Vieira não conta os detalhes nem quanto tempo durou este périplo pelas ilhas, mas no dia da festa de Santa Teresa, a 15 de Outubro, ele pregava na igreja do Colégio de Ponta Delgada o sermão em honra da santa seráfica, reformadora do Carmelo. O naufrágio terá acontecido em finais de Julho ou nos primeiros dias de Agosto e Vieira embarcou para o reino a bordo de uma embarcação inglesa (navio de hereges, comentará ele) em Novembro, para se precipitar ao encontro do rei, que estava doente em Salvaterra. O jesuíta menciona uma curiosidade dessa viagem: entre passageiros e outras mercadorias o navio inglês transportava gaiolas com canários e melros dos Açores que chilreavam e cantavam durante a viagem, indiferentes ao mau tempo.

O episódio da passagem pelos Açores serviu para ilustrar dois sermões, o de Santa Teresa e o da Quinta Dominga da Quaresma, este pregado em Lisboa em Abril de 1655, dias antes de embarcar de regresso ao Maranhão (16 de Abril) com uma nova Provisão Régia sobre o estatuto dos Índios. Talvez não fosse exactamente isso que ele pretendia quando embarcou em São Luís um ano antes, quem sabe trazia bagagem para ficar no reino, mas obteve tudo quanto pediu e ainda outras compensações, a mais importante das quais foi a nomeação de André Vidal de Negreiros como governador do Maranhão e Grão Pará. A passagem por Lisboa traduziu-se ainda pela pregação de dois dos sermões mais poderosos e mais contundentes de toda a sua arte oratória, o da Sexagésima, pregado na Capela Real e o do Bom Ladrão, na igreja da Misericórdia. Voltou a pisar as terras do Maranhão a 16 de Maio e foi a partir desse momento que a sua missão em terras brasileiras tomou um novo rumo, ao ritmo avassalador de uma empreitada de bandeirante obstinado e patriota.

Das Flores até São Miguel, passando ao largo da Graciosa e fazendo escala na Terceira, o vento e o mar são-nos favoráveis; não fosse o frio teria sido uma navegação de recreio de cerca de 300 milhas como já não experimentamos há meses. Chegaremos hoje ao final da tarde à marina de Ponta Delgada onde não deixaremos passar o dia 6 de Fevereiro, dia do nascimento de Vieira, sem fazermos algo de diferente dos outros dias. Pelos vistos, o tempo vai estar muito ruim e o abrigo da marina será uma bênção do céu.

6 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

A cidade de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, é património da humanidade e guarda mais vestígios dos séculos XV e XVI do que todas as outras ilhas do arquipélago dos Açores, apesar dos abanões dos terramotos. Pela sua posição privilegiada foi nos tempos da navegação à vela o principal porto do arquipélago. O colégio dos jesuítas, onde Vieira se acolheu com os seus companheiros de naufrágio, passou a ser o Palácio dos Capitães Generais depois da grande virada do marquês de Pombal e é hoje um edifício do governo regional. Duas novas marinas bem equipadas, uma em Angra e outra na Praia da Vitória acolhem os navegantes dos tempos modernos nas melhores condições. Angra evoca, no Alto da Memória, a passagem de D. Pedro IV e da sua armada de combatentes contratados na ilha francesa de Belle Ille para combater o irmão D. Miguel que se tinha apoderado do trono português; foi no tempo das lutas liberais e desta ilha Terceira que o rei soldado foi desembarcar no Mindelo, a norte do Porto, em 1832. Por aqui já tinha passado também, na tentativa de desembaraçar Portugal da monarquia espanhola, D. António, Prior do Crato, um dos vencidos de Alcácer-Quibir que conseguiu resgatar-se; porém, outros poderes do reino não permitiram a este bastardo filho de mãe judia concretizar as suas pretensões ao trono de Portugal. Praia da Vitória recorda o filólogo e literato Vitorino Nemésio (1901-1978), ainda presente na memória dos que seguiam pela televisão a preto e branco as suas intervenções sobre a língua portuguesa.

Ponta Delgada também possui monumentos que existiam no tempo de Vieira, sobretudo igrejas. O colégio dos Jesuítas está hoje transformado na Biblioteca e a igreja onde pregou foi restaurada recentemente. Hoje e amanhã somos convidados especiais dos eventos que vão decorrer na Biblioteca e na Igreja: encenações teatrais, palestras, documentos visuais vão recordar um dos maiores portugueses de todos os tempos.

A cidade recebe condignamente os navegantes numa marina acolhedora e bem equipada, que reúne no mesmo pavilhão todos os serviços: alfândega, guarda fiscal, serviço de imigração e fronteiras, sem esquecer os balneários amplos e asseados, uma recepção de luxo para quem vem de um oceano em maré de Inverno. Lotada de veleiros, está a ser ampliada para poder receber o triplo das embarcações a partir do próximo mês de Julho, um sinal do progresso turístico da região e do número cada vez maior de velejadores que demandam o arquipélago. Situada a cerca de 790 milhas de Lisboa e de Las Palmas, a 1.200 de Falmouth, a marina encontra-se numa situação geográfica privilegiada para a navegação de recreio de médio alcance.

Foi uma surpresa a chegada do CHIC: nunca na história da marina chegou um veleiro de uma travessia invernal a partir do Oeste. São poucos os que se aventuram a navegar nesta época do ano a partir da Europa e das Canárias, e parece que nunca aconteceu, até à nossa chegada, uma proveniência nesta época das Bermudas ou das Caraíbas num veleiro destas dimensões. Também antigamente os navios evitavam esta rota entre os meses de Novembro e Maio, mas Vieira teve que viajar de Inverno, saindo de Salvador a 27 de Fevereiro e chegando a Peniche dois meses depois, sem qualquer escala pelo caminho. Foi em 1641, o jesuíta tinha 35 anos, já com fama de grande pregador e a viagem tinha uma finalidade bem específica: ele acompanhava o filho do vice-rei do Brasil, o marquês de Montalvão, nomeado por Filipe III. A situação política tinha mudado e uma nova dinastia tentava impor-se em Portugal, desafiando o poder espanhol: o vice-rei do Brasil quis deste modo manifestar a sua adesão à causa da Restauração, sem mais demoras. Esta viagem modificou por completo a vida do padre António Vieira, que se encontrou pela primeira vez com o rei D. João IV a 30 de Abril. No primeiro dia do ano de 1642 ele pregava na capela real e logo outra vez a 19 de Março, no aniversário do rei; foram sete os sermões pregados em Lisboa nesse primeiro ano de passagem pelo reino e por ele publicados muitos anos mais tarde. No ano seguinte o rei solicitava-o como pregador régio e a partir daí a sua ascensão política foi imparável. Aquela viagem foi uma espécie de iniciação a uma outra fase da sua vida.

A chegada a Peniche foi muito atribulada: uma história complicada com muito que contar. Os mares dos Açores não foram muito propícios ao missionário, porque da primeira vez que por cá passou foi de Inverno e foi molestado à chegada, à segunda vez foi de Verão mas naufragou, parando nas ilhas por três meses e à terceira ele tinha sido expulso das suas missões pelos colonos e pelos religiosos de outras ordens e fora embarcado sob custódia e incomunicável a 9 de Setembro de 1661 com destino ao reino, onde o esperavam anos muito difíceis. Terá passado por estas águas no Outono, em finais de Outubro e até o deixaram pregar um sermão durante a viagem.

Ponta Delgada recorda Antero de Quental (1842-18919, um dos maiores poetas e pensadores da cultura portuguesa, atormentado pela neurastenia que o vitimou, e recorda Teófilo Braga (1843-1924), jurista e político apaixonado pela literatura popular. Os Açores resistiram ao domínio espanhol quanto puderam depois do desastre de Alcácer-Quibir e sobretudo não podemos esquecer que eles povoaram horizontes distantes com a coragem dos esquecidos que procuraram melhorar a sua vida em espaços mais vastos, onde acabaram por contribuir para a riqueza dos países mais poderosos do mundo. Muitos tiveram que construir uma nova identidade para se integrarem numa dimensão de cidadania que o arquipélago não alcançava. Partilhámos com alguns deles, há duas mil milhas atrás, a ressaca desta realidade.

7 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

As viagens de 1654-55 foram para Vieira um momento muito especial da sua vida; desde aquela largada complicada e indecisa de Novembro de 1652 que o missionário não tinha ainda encontrado um novo rumo para a sua acção. Ele ainda achava que o seu lugar era no reino, ao serviço da corte, para ajudar de perto a reconstruir um país despedaçado, cujos problemas ele conhecia melhor do que ninguém. Eram muitos e sinuosos os poderes clandestinos que lhe estragavam os sonhos, provenientes até mesmo dos ciúmes dos seus companheiros de religião. Ele preparou a sua deslocação e a dos seus companheiros de missão para o Maranhão com todo o cuidado, com profissionalismo de político e de diplomata, mas tudo tentou para não ir, até que, conformado, aceitou muito a sério a sua nova fase de vida, a de missionário.

A chegada a São Luís desencadeou protestos e polémicas da parte dos colonos, cuja cobiça e desrespeito pelos regulamentos referentes aos indígenas foram de imediato denunciadas pelo jesuíta. A revolta saiu às ruas e ele tentou acalmar os ânimos do alto do púlpito, prometendo ser mais tolerante mas ameaçando com o fogo do inferno. Depois começaram os boicotes à sua acção missionária, privando-o de canoas e de remadores, a hostilidade dos governadores cresceu, os religiosos das outras ordens apoiaram os colonos e ele não teve outra alternativa senão a de resolver a questão no reino, junto do rei. Os adversários já tinham enviado uma delegação para defender as suas posições e Vieira nem disse que ia: depois daquele sermão aos peixes embarcou no navio onde já tinha arrumado a bagagem.

Foi um momento de grandes decisões, de afirmação da sua personalidade forte e contundente, consciente da precariedade do poder real, da mediocridade da classe dirigente do país, da atitude irresponsável dos religiosos, da ganância dos poderosos. O poder da sua intervenção tem o mais emblemático exemplo nos três grandes sermões deste período: o de Santo António, o da Sexagésima e o do Bom Ladrão. Ele iniciou, 24 anos depois, a publicação dos seus Sermões pelo mais conhecido e comentado de todos, o da Sexagésima, um sermão de raiva incontida contra os poderes clandestinos que destruíam o presente e o futuro de um reino predestinado à grandeza mas embrenhado nas malhas do conformismo, dos ciúmes, da falta de visão e da incapacidade de agir. No dia da messe hão de nos medir a semeadura, e hão nos de contar os passos (…) Ah dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá achar-vos-eis com mais paço; os de lá com mais passos. Os de lá são os seus missionários do Maranhão, como os do oriente, os que saem a semear, e ele repeti-lo-à ao longo de toda a sua vida: para crescer é necessário sair para longe, estender o reino e a palavra de Deus pelo mundo inteiro, para que se cumpra o destino profetizado de Portugal, que para tal Deus quis que existisse como reino.

Depois desta viagem a vida de Vieira transformou-se numa catarata de emoções fortes, motivada por ideais grandiosos e pela construção de um novo e estratégico espaço político e religioso no imenso território da sua missão do Maranhão. Da serra de Ibiapaba ao rio Pará, às margens do Tocantins e até às do Amazonas ele criou em meia dúzia de anos um espaço pacificado e unificado por onde circulavam pessoas e mercadorias de norte a sul do Brasil e do interior para o litoral. Teve que usar de artimanhas, teve que mentir descaradamente aos seus superiores para atingir os seus objectivos, teve sobretudo que percorrer a pé e navegar em canoa ao longo de milhares de quilómetros, ao encontro dos indígenas mais primitivos da terra, aos quais ensinou a rezar em português e a obedecer a um rei que reinava do outro lado de um oceano inteiro. Quando o rei morreu ele não perdeu a esperança e imaginou um Império ainda maior.

No sermão de Santa Teresa, pregado na igreja do Colégio de Ponta Delgada, ele fala em como foi vomitado das ondas, na sua viagem de um lugar distante para outro. Como Pedro, como Paulo, os discípulos que para semear a palavra viajaram para terras distantes. Paulo naufragou em Malta, o profeta Jonas foi lançado ao mar quando pretendia escapar à sua missão, embarcado num navio com destino a uma cidade do fim do mundo, Társis (hoje chama-se Cádiz) para ser devolvido à terra vomitado por uma baleia. Como Paulo e os pregadores do evangelho, Jonas acabou por cumprir a sua missão, pregar a mensagem que o seu Deus lhe ordenou de levar até Nínive. Sem sombra de dúvida, Vieira ousa enquadrar-se neste elenco de grandes pregadores e não acha despropositado mencioná-lo. Também não acha inadequado recordar as dificuldades que as outras ordens religiosas semearam pelo caminho da santa reformadora do Carmelo, referindo-se à sua própria vida, também ela afectada por descréditos, injúrias e perseguições, que apenas começavam a desabar sobre ele. Vieira era um leitor assíduo dos textos de Madre Teresa de Ávila e partilhou com ela, em dada altura, a esperança de um retorno de D. Sebastião, que rapidamente se esvaiu do seu pensamento; o Encoberto viria a ser, para ele, o rei seu amigo, D. João IV.

O naufrágio no mar dos Açores foi uma espécie de segundo baptismo para o missionário e desencadeou uma nova fase da sua vida. A luta por ideais grandiosos incluía estratégias políticas e territoriais, o triunfo da fé católica, o futuro da história do reino de Portugal e sobretudo o futuro da história de todos os povos do mundo, cujo destino deveria ficar ligado ao poder português e a princípios éticos e de tolerância que levariam à criação do Quinto Império, ousada visão política e religiosa de uma globalização. O náufrago da Graciosa não era um viajante qualquer: era um génio, um patriota, que acreditava na grandeza das gentes da sua nação. Outros teve a história de Portugal, mas dentre todos eles ele foi o maior.

No espaço da marina, apesar da protecção dos molhes do porto, o CHIC balança e bate violentamente contra o pontão, rebentando as defensas e fazendo vibrar os cabos duplicados das amarras. Nos brandais o vento assobia e no convés o granizo bate com estardalhaço. Tempestade no mar, gaivotas em terra; pior tempo ainda no canal, diria Nemésio. A tempestade vai durar mais uns dias, compasso de espera na nossa rota, quem sabe também uma iniciação para o que poderá vir a acontecer.

 

8 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Repousou afinal meu coração;
Do palácio encantado da ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Foram os últimos versos do maior poeta do arquipélago e um dos maiores génios poéticos e filosóficos da nossa história; como Lucrécio, como Séneca… como Camilo um ano antes, Antero suicidou-se em 1891, tinha 49 anos. Viveu num tempo rico em euforias, num país sem rumo, onde só mesmo os intelectuais inconformados acreditavam ainda no futuro. Foi contemporâneo de Herculano, de Garrett, de Camilo, de Soares dos Passos, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, António Nobre… um elenco de luxo num século de criatividade e de desespero, com quem partilhou as desilusões do racionalismo e o refúgio no romantismo. O texto mais representativo do génio literário e das preocupações de Antero de Quental foi publicado em 1871: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares – um texto com o qual Antero poderia ter dialogado com Vieira, a dois séculos de distância. Foram muitas as desilusões, muito altos os ideais que a geração de oitocentos se propôs atingir e maiores foram as quedas na lama da realidade. Antero foi um daqueles que mais intensamente viveu o drama da ruptura entre as paixões sublimes e o quotidiano desatinado.

Como as flores mortais com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão
Despi do ideal e da paixão
A forma transitória e imperfeita

A distância entre os intelectuais coimbrões e a consciência social e política de uma população rústica e analfabeta era insustentável. Dos outros países chegavam novas que entusiasmavam: Charles Darwin publicava uma teoria sobre a origem e a evolução das espécies, Karl Marx propunha uma nova ordem social para os países desenvolvidos, Alain Kardec sacudia as ideias sobre o espírito humano com uma nova ideia da imortalidade, Victor Hugo abolia de vez os preconceitos sociais contra os excluídos, uma nova luz iluminava as noites do mundo (a electricidade) e novas forças (as do vapor e dos carburantes) empurravam os homens para novas e desmedidas aventuras. Portugal estagnava à margem do progresso, da criatividade, da ciência e da tecnologia, resultado de uma longa e sofrida decadência. Faltava coragem, decisão, visão de futuro, faltava gente com quem dialogar acima da mediocridade do quotidiano fastidioso, da infantilidade. Num mundo tão restrito de interlocutores não sobrava espaço para concretizar ideais nem muito menos para satisfazer paixões. O último refúgio do poeta desiludido foi o de uma fé residual na ideia de um Deus misericordioso e bom e numa eternidade possível de continuidade e perfeição.

Como criança em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa sorrindo vagamente

Terras, mares, areias do deserto,
Dorme teu sono coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente.

O poeta escolheu a esquina de um jardim público para se suicidar, num banco banal de três pés e duas tábuas, ancorado no chão do passeio, de costas para a parede em pedra de lava, caiada de branco, do convento carmelita. Ele escolheu o dia, a hora e o lugar da sua morte como um desafio a todos os preconceitos e como uma mensagem secreta a ser decifrada por espíritos esclarecidos. Por cima do banco da fatalidade tem uma placa fixada na parede, com uma âncora e a palavra ESPERANÇA. O antigo jardim é hoje a Praça 5 de Outubro. Mesmo ao lado, foi erguida uma estátua de Santa Teresa de Ávila, uma das grandes devoções dos açorianos, que viajou na bagagem deles pelo mundo fora: a igreja católica de Hamilton, nas Bermudas, construída por açorianos, é dedicada a Santa Teresa. O Convento da Esperança foi um dos que aderiu à reforma da santa seráfica, nos anos da grande aventura espiritual do misticismo cristão ibérico, cujos protagonistas foram Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Um tiro de pistola espantou os melros e libertou o poeta das suas insustentáveis angústias, dos seus ilusórios desencantos, para o deixar cair sonolento num colo de mãe, quente, sereno e aconchegante, como só mesmo a mão de Deus.

9 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

A descoberta das ilhas dos Açores pelos portugueses foi progressiva: a sua existência era conhecida desde a primeira metade do século XIV, mas os portugueses levaram mais de trinta anos a pisar o chão das nove ilhas, entre 1431 e 1464. O primeiro núcleo colonial na ilha de São Miguel foi Povoação e a primeira capital administrativa do arquipélago dos Açores foi Vila Franca do Campo, aglomeração fundada em 1444. No ano passado celebraram-se os 400 anos da morte de um filho da terra, nascido em 1562, o jesuíta Bento de Góis, missionário no Oriente que percorreu a Índia e a China, onde veio a falecer, seguindo os passos de Xavier. Deixou um texto manuscrito, uma Relação das suas andanças, no estilo de Fernão Mendes Pinto. Ele faz parte daquele elenco de missionários que saíram para longe a semear, que escolheram espaços mais vastos para cumprirem o destino traçado por Deus para o reino de Portugal e aos quais se refere Vieira no sermão da Sexagésima e naquele outro de 1670 na igreja de Santo António dos Portugueses em Roma: “sem sair ninguém pode ser grande”. No dia do Juízo será demorada a conta de tantos passos!

Foi graças à simpatia do engenheiro João Bernardo Rodrigues, que a tripulação do CHIC beneficiou de uma visita guiada à ilha, desde as lagoas das Sete Cidades até às Furnas, fazendo-nos descobrir ainda uma das particularidades da ilha que eu desconhecia completamente: o chá! Leite e queijos não eram novidade para ninguém, mas o chá nunca tinha sido divulgado pelo Pauleta. Foi introduzido na ilha proveniente do Rio de Janeiro, graças ao comandante da guarda real de D. João VI, um tal Jacinto Leite, originário de São Miguel, que iniciou a sua plantação em 1820. Em 1850 as plantações de chá ocupavam 300 hectares, tendo diminuído progressivamente para cerca de um terço nos nossos dias.

O encontro com João Bernardo foi consequência do modo global de vida dos dias de hoje. Companheiro de vida militar na marinha do engenheiro Manuel Avenilde Valente, que é membro do senado da Universidade de Aveiro, ele é o padrinho de baptismo do Dr. João Valente, filho de Manuel Avenilde e director da DURIT de Salvador da Bahia, fábrica de metais duros (tecnologia do tungsténio). A empresa é um dos patrocinadores desta viagem e há dias, quando anunciámos no nosso site a chegada aos Açores, a família Valente, reunida em Salvador para o baptismo do primeiro filho de João, comunicou com João Bernardo, que vive em Ponta Delgada, e ele veio procurar-nos na marina onde acabávamos de chegar, oferecendo-nos a sua simpatia, o seu apoio e esta maravilhosa volta à ilha das vacas mansas e das crateras domesticadas.

Ontem o brilho suave do sol de Inverno proporcionou também belas imagens fotográficas da cidade e uma visita luminosa à igreja do Convento da Esperança, onde se encontra a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, referência religiosa da identidade de todos os açorianos, os das ilhas como os da diáspora. Encontra-se no espaço da clausura do convento, visível à distância através de uma grade e de uma placa de vidro que dificulta qualquer fotografia. A toda a hora do dia dezenas de pessoas recolhem-se em oração, algumas de mãos crispadas na grade, rezando em voz alta e expondo quase sem pudor as suas preces, diante da imagem sofredora de meio corpo, vestida com um manto vermelho, o pescoço e os braços atados com cordas, uma coroa de espinhos na cabeça enfeitada com pedras preciosas. Todos os anos, no quinto domingo depois da Páscoa, uma procissão leva a imagem pelas ruas da cidade, numa manifestação de fé e de devoção muito própria aos açorianos de todo o arquipélago. Na igreja aberta ao público brilha o ouro da talha e os azulejos das paredes contam a história da reformadora do Carmelo.

Sou um leitor assíduo e apaixonado de São João da Cruz e da correspondência entre as duas figuras mestras da religiosidade hispânica do século XVI, que recriaram o misticismo islâmico e cristão iniciado no século XIII com Ibn Al Arabi e Santo António de Lisboa: foram duas almas apaixonadas que viveram intensamente o drama de serem pioneiros num domínio por demais comprometido com tradições poderosas que impediam qualquer mudança nos hábitos das comunidades religiosas. Pela sua ousadia São João da Cruz conheceu um ano de prisão conventual em Toledo, durante o qual compôs uma das maravilhas da literatura hispânica, o Cântico Espiritual – um poema místico recheado de sublime sensualidade. Nas suas peregrinações pelos conventos carmelitas masculinos que aderiram à reforma da descalcez, São João da Cruz chegou a passar por Portugal pelos anos de 1585, reinava Filipe I.

 

10 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Pelos Açores passaram e até ficaram algumas figuras históricas para além das que já mencionei neste Diário. Por Santa Maria passou Cristóvão Colombo em 1493, no regresso da primeira viagem equivocada das suas quatro tentativas para reconhecer e colonizar as ilhas que lhe anunciavam a Índia. No regresso da primeira viagem à verdadeira Índia, em 1499, morreu o irmão do almirante da esquadra, Paulo da Gama, que comandava a nau São Rafael; está sepultado na ilha Terceira. Foi nesta mesma ilha que esteve em prisão domiciliária o rei D. Afonso VI, quando o seu irmão D. Pedro lhe usurpou a mulher e o trono, em 1668, façanha para a qual contribuiu de alguma forma o apoio do padre António Vieira, que acabava de se desembaraçar do macabro processo da Inquisição. A estadia do rei demente na fortaleza de São João Batista durou 4 anos, sendo depois transferido para Sintra onde veio a falecer em 1693. Nesta mesma fortaleza esteve prisioneiro o régulo vátua Gungunhana com alguns dos seus próximos, senhor do território moçambicano de Gaza, aprisionado por Mouzinho de Albuquerque em Chaimite em 1895. Morreu na fortaleza em 1906, dois anos depois do seu captor, que se suicidou.

No século XIX e nas primeiras décadas do século XX a caça à baleia era uma das actividades mais rentáveis do arquipélago. Fotografias da época mostram o porto do Faial repleto de navios baleeiros e muitos açorianos praticavam a caça a partir de terra, fazendo-se ao mar em canoas baleeiras a remos e à vela, num exercício de coragem e de sacrifício ímpar na história das fainas marítimas. Não havia ilha que não tivesse armações baleeiras e equipas de homens valentes que largavam todos os seus afazeres quando estouravam os foguetes que anunciavam uma caçada. A faina artesanal durou até 1974, esporadicamente até mais uns anos ainda. Desse tempo restam apenas as recordações e sobretudo um museu original a visitar, organizado pelo carinho e persistência de José Azevedo, conhecido mundialmente por Peter, proprietário de um dos cafés mais famosos do mundo, o Peter Café da Horta, ponto de encontro de todos os navegantes do Atlântico desde há meio século; as baleias são poucas mas ainda suficientes para manter uma actividade turística que é a observação da sua passagem. As ilhas centrais do arquipélago são visitadas o ano todo por cerca de 24 espécies diferentes de cetáceos, desde a grande baleia azul que pode atingir 120 toneladas até ao golfinho riscado, de uma centena de quilos, sendo os meses de Abril a Junho os mais ricos em exemplares. Em quase todas as ilhas, mas mais particularmente nas do Faial e do Pico, existem embarcações equipadas para levar os turistas ao encontro das maiores criaturas do mundo.

Em 1957 uma tremenda erupção vulcânica na extremidade ocidental da ilha do Faial lançou o pânico no arquipélago, provocando uma vaga de emigração sem precedentes na história do povo açoriano, com destino sobretudo ao Canadá e aos Estados Unidos. A população residente dos Açores roda hoje os 240.000 habitantes, sendo que só a ilha de São Miguel conta cerca de 131.000, mais de metade de toda a população do arquipélago e a ilha Terceira tem 55.000 habitantes, aproximadamente a mesma população que as restantes sete ilhas todas juntas. A diáspora espalhada por todos os continentes do mundo é hoje incontável e a sua contribuição para a cidadania global incalculável. O sermão de Vieira de 1670 na igreja de Santo António dos Portugueses em Roma é também uma homenagem muito apropriada ao povo açoriano que se fez grande longe do seu pequeno e instável espaço. “Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer, o mundo. Perguntai aos vossos avós quantos saíram e quão poucos tornaram! Mas estes são os ossos de que mais se deve prezar vosso sangue”.

De Santa Catarina, no sul do Brasil, até Toronto, no Canadá, passando pelas Caraíbas, Bermudas e os Estados Unidos, as festas do Divino e as procissões do Senhor Santo Cristo dos Milagres atestam a identidade dos açorianos que, na ânsia insaciável de viver, espalharam pelo mundo os seus genes, a sua cultura e a sua fé. No meio do Atlântico as ilhas preservam a sua beleza, o seu verde inimitável rasgado por cordões de lava negra, desafiando a instabilidade de um pedaço do planeta em permanente movimento telúrico. Joaquim Arruda carrega os dois latões na albarda do seu jumento, fecha a cancela do campo e desce o caminho de terra até ao posto do leite. Depois, esvaziados os latões, desce o resto do caminho montado, até à sua casa na fajã, feita em pedra de lava, como se o resto do mundo simplesmente não existisse.

 

12 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

No final do século IX, havia entre Córdova e Bagdad um serviço regular de correios que levava menos de 30 dias; as duas grandes capitais do mundo islâmico, apesar de reclamarem cada uma delas o direito de acolherem o verdadeiro califa, não prescindiam das comunicações que faziam funcionar negócios e ideias, bens e pessoas. Graças aos correios, o espaço islâmico criou dentro das suas fronteiras religiosas um vastíssimo intercâmbio tecnológico e ideológico, de tal modo que, século e meio apenas depois da invasão de Moussa ben Nossair e de Ibn Tarik, as técnicas agrícolas orientais estavam a ser aplicadas na península Ibérica e o azeite e peixe em conserva do Al-Andaluz eram apreciados no Oriente. Os ibéricos conheceram a rosa, a alcachofra, a romãzeira, a palmeira e uma quantidade de frutos e legumes exóticos jamais imaginados. Conheceram também uma língua nova, através da qual acederam a novos conhecimentos filosóficos, matemáticos, de física e de medicina. Com essa língua criaram poesia, que juntaram à música para melhor enfeitar os dias de festa e cantar a glória de Allah.

Quando no reino de Portugal foi aclamado um novo rei, no dia 1 de Dezembro de 1640, a grande notícia só chegou a Salvador da Bahia por meados do mês de Janeiro de 1641. O correio marítimo era mais lento que o terrestre, à velocidade dos ventos e das correntes e só melhorou quando se fabricaram embarcações mais rápidas e sofisticadas. Tinha uma grande vantagem sobre o correio terrestre: podia transportar enormes quantidades de mensagens e de bens, a um custo muito mais baixo. A navegação oceânica modificou completamente todas as relações de poder que existiam no mundo, depois que Vasco da Gama e os seus homens conseguiram ir até à Índia e voltar, navegando com precisão.

Antes de 1850 o correio circulava de costa a costa dos Estados Unidos, entre Nova Yorque e São Francisco, nos alforges das selas dos cavalos; o Poney Express durou cerca de 50 anos e transportava correio à velocidade do galope de um cavalo e à medida da resistência dos cavaleiros, em duas semanas de verão e sem data prevista de chegada no Inverno. Depois que o caminho de ferro ligou as duas costas da União, as comunicações ficaram à distância de uma semana, mas estava iminente a era de uma grande e estrondosa mudança.

A grande revolução nas comunicações aconteceu com a electricidade e a telegrafia sem fios, no último quartel do século XIX. Em 1920 o avião já transportava produtos entre continentes. Foi um desabar de invenções que a cada década modificavam o panorama das comunicações, transformando por completo o modo de vida do planeta. Ninguém programou, ninguém previu, ninguém avaliou com antecedência as consequências. Quando intelectuais como Marshall McLuhan formalizaram os conteúdos e os sistemas de ideias que descreveram a realidade emergente, já a “aldeia global” era um facto consumado e os sintomas da nova ordem já se repercutiam pelo mundo inteiro. Tinha acontecido aquilo que não pode mais voltar a acontecer: tomarmos consciência de um mundo novo, criado por nós, cuja génese escapou ao nosso controle. Isto é uma derrota, o caos para todos os sistemas de educação do mundo actual, que criaram as alfaias, os instrumentos, os sistemas e as tecnologias de um mundo novo e todos acabámos surpreendidos e esmagados pela “metrópolis” que engendrámos. Não pode voltar a acontecer uma coisa assim. Foi mais ou menos há uns 25 anos que acordámos para esta realidade que ainda não enxergámos na sua verdadeira amplitude: são 190 nações, 600 grupos linguísticos e uns 5.000 grupos étnicos interligados por redes de comunicação instantânea pelas quais circulam sem limites nem fronteiras pacotes de mensagens pessoais, negócios, técnicas de produtividade, intervenções cirúrgicas, desporto, pornografia, religião. A grande mudança começou com a electricidade (1873), depois veio o telefone (1876), o automóvel (1886), a telegrafia (1899) o avião (1903), a televisão (1926), o computador (1946), o microprocessador (1971) e a Internet (1991). De todos estes instrumentos, só o último se escreve ainda com letra maiúscula.

A “Feira Universal” de Vieira é hoje uma realidade, com parâmetros técnicos e alfaias que ele nunca imaginou, mas com o mesmo espírito e a mesma amplitude, até a mesma surpresa esmagadora. Em Roma, por várias vezes ele alertou do alto do púlpito e perante a assistência mais selecta do planeta para uma realidade emergente, cuja génese era obra de portugueses. Não o entenderam, mas nem por isso perdeu o ânimo: ele pensava ainda escrever aquele outro grande livro que seria a sua grande obra, o seu testamento filosófico, comparado com o qual os seus sermões pouco ou quase nada valiam, um livro onde tudo ficaria esclarecido. Poucos homens do seu tempo conheciam tão bem como ele o mundo, com os seus adornos e os seus vícios: cortes de reis, alcovas de embaixadas, carruagens de mala-posta, caravelas e navios de alto bordo, rios e picadas de sertões inóspitos. E conhecia ainda melhor que ninguém os vícios secretos do espírito humano que comandavam os poderes clandestinos, a malvadez e a impiedade dos que se reclamavam do próprio Deus para satisfazer ambições desmedidas.

Esta viagem e este Diário de Bordo são um produto da globalização, permitindo partilhar quase instantaneamente as emoções e o entendimento de um espaço humano, através do qual descobrimos hoje a grandeza e o génio de um personagem que ousou apontar, no seu tempo e para os séculos vindouros, com o seu poder criativo, a sua capacidade crítica e a sua postura ética, para o potencial escondido de um país e de um povo que ele amava e no qual acreditou até aos últimos dias da sua longa vida. O patriotismo, a fé, a capacidade de sacrifício e a ousadia nunca mais se acharam em outro português à sua altura.

14 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Se Vieira escreveu algumas cartas durante a sua passagem de cerca de três meses pelos Açores, elas perderam-se; mas não é provável que tal tenha acontecido. Ele dedicou-se ao bem-estar dos seus companheiros de naufrágio, servindo-se do seu prestígio e das suas relações pessoais. O superior das missões do Maranhão era o pregador do rei, tinha sido seu embaixador e todos reconheciam a sua capacidade de intervenção. Desconhecem-se os detalhes dos seus passos, mas sabe-se que os náufragos foram alojados e socorridos na ilha Graciosa antes de passarem para as instalações dos jesuítas na ilha Terceira, onde existia o maior colégio do arquipélago. A ilha Graciosa, pela sua posição geográfica, era a mais exposta aos ataques dos corsários no século XVII: os barcos provenientes do sul passavam normalmente entre as ilhas ocidentais (Flores e Corvo) e as centrais, deflectindo para leste e passando ao largo da Graciosa, onde os aguardavam predadores do norte de França, da Holanda, turcos e argelinos, todos com as mesmas intenções. A ilha foi por várias vezes atacada por piratas do norte de África; existe uma capela construída no século XVII em honra de Nossa Senhora da Vitória, comemorando a resistência dos insulares aos ataques dos argelinos.

Do que terá acontecido aos outros náufragos, nada se sabe. Talvez alguns tenham viajado no mesmo barco com destino a Lisboa, em Novembro. Nessa altura do ano as embarcações seguras, ou sejam navios de alto bordo e armados, eram raras e, depois da experiência da Graciosa, Vieira não queria expor-se a outros perigos, pois tinha uma missão importante a cumprir junto do rei. Por isso, apesar da embarcação ser de hereges, era segura para o levar ao destino. Ele fala no sermão pregado em 1655 dos marinheiros com as suas “machadinhas”, equipamento característico dos marinheiros de um navio inglês de comércio, armado.

A igreja do colégio de Ponta Delgada onde ele pregou o sermão de Santa Teresa, a 15 de Outubro, não era exactamente a actual; as paredes laterais são ainda as mesmas do templo erguido em 1591, mas o templo actual é obra do século XVIII, com a sua fachada barroca inacabada. A expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal em 1759 pôs um termo à presença de quase século e meio dos jesuítas nas ilhas. O púlpito onde ele pregou terá sido o existente actualmente ou outro similar na parede oposta, que já não existe, restando apenas a porta de acesso e a escada pelo interior da parede.

Quando largou daqui, levava três meses de atraso na sua viagem e o tempo era de Inverno, mar alteroso e ventos fortes. A viagem decorreu sem incidentes até Lisboa, onde ele esperava encontrar acolhimento favorável junto da corte, mas nem tudo correu conforme esperava. Na sua primeira carta conhecida desta época, escrita no mesmo dia em que iniciava a viagem de regresso para o Maranhão, a 16 de Abril de 1655, ele quase desabafa: Finalmente, segundo posso entender, Deus chamou-me para o Maranhão… Ele já lá estava desde Janeiro de 1653, mas, ao que parece, não tinha a certeza da sua vocação de missionário. Viera a Portugal ambicionando ainda um espaço à sua medida na corte, mas a situação modificou-se durante os cinco meses que esteve no reino e teve que assumir a tal vocação de missionário, longe das inquietações e perturbações da corte, das quais não pode escapar senão quem foge dela.

De regresso ao Maranhão e Grão-Pará Vieira empreendeu uma das maiores façanhas da presença portuguesa no Brasil, uma acção de verdadeiro bandeirante, com uma visão estratégica de político e de religioso, única na história da colonização portuguesa: uma visão de génio, uma visão profética que ainda hoje muito poucos entendem. Nascia o Quinto Império.

 

16 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Da última vez que Vieira navegou ao largo dos Açores foi em Outubro de 1661, vinte anos depois da primeira vez. Viajava a bordo de um barco velho e inconfortável, seguia preso e separado dos seus colegas das missões do Maranhão, expulsos pelos colonos com o apoio das outras ordens religiosas. Os companheiros viajavam em outros barcos da mesma frota, um dos quais era o grande galeão Sacramento, propriedade do governador do Maranhão e Grão-Pará, D. Pedro de Melo. No dia da festa de Nossa Senhora do Rosário pregou a bordo um sermão, o nono da série do Rosário, lembrando a todos a fragilidade de se encontrarem no vasto oceano dentro de quatro tábuas, num mês tão formidável a todos os mareantes por suas tempestades, como memorável por seus naufrágios. O sermão é recheado de exemplos e de acontecimentos verdadeiros ou fabulosos referentes a viagens marítimas, batalhas navais, milagres e intervenções divinas que salvaram navegantes. No centro de todos os milagres está o Rosário e a devoção a Maria da qual nasceu Jesus, tema do sermão.

O missionário estava consciente de que aquela retirada do Maranhão seria para sempre e que para ele a tarefa terminara; em 1658, avaliando a sua acção missionária, confidenciava a um amigo as dificuldades que encontrava no terreno: nenhuma coisa se fez na missão do Maranhão os três primeiros anos, depois que viemos a ela, que não esteja mui assentada e ajustada com o uso e modo da Companhia (…) mas isto mesmo é que nos fez o mal, ou o que nos tem impedido os progressos de maiores bens. Padre e amigo meu (o padre Francisco de Avelar), a Companhia não está já hoje para semelhantes empresas… O seu projecto era muito mais vasto do que aquilo que as regras da Companhia de Jesus permitiam em terreno de missão. Vieira sentia-se tolhido por normas que o impediam de atingir os objectivos que os seus superiores não entendiam. Daí ele ter que camuflar acções, inventar um discurso diferente para cada interlocutor, até mesmo mentir descaradamente aos seus superiores, a propósito de cartas que não terão chegado ao destino, de navios que perderam o rumo, de correios que se extraviaram, enquanto esperava que lhe chegassem às mãos directivas régias que apoiassem as suas próprias iniciativas, tudo ao fim e ao cabo conforme aos insondáveis desígnios da providência divina. A missão da serra de Ibiapaba só se concretizou graças a uma arriscada estratégia e a uma persistência na demanda dos seus próprios ideais, por sua conta e risco.

Este poder criativo com sabor a rebeldia faz parte do carácter de Vieira, da sua personalidade, do seu patriotismo, da sua fé. Tudo nele é forte e coerente até ao limite do bom senso, mesmo se por vezes é necessário beliscar o raciocínio para entender os seus objectivos. Afim de garantir a liberdade dos indígenas ele aceita a escravatura dos negros, necessária também para salvar o reino da ruína, porque sem negros não há açúcar, sem açúcar o país não tem como comprar fragatas, sem armamento e soldados o reino e as suas conquistas não têm futuro. Até ao fim da vida, a escravatura dos negros não mereceu da sua parte mais do que discursos piedosos; não sofreu por causa deles nada de semelhante ao que padeceu por ter defendido os indígenas. A prioridade era o destino do reino, traçado nos textos dos profetas.

Aos 80 anos ele oferecer-se-á para regressar ao Maranhão com o seu companheiro o padre José Soares, como simples missionários, mas ninguém o leva a sério e em vez disso nomeiam-no aos 82 anos visitador geral da Companhia, dispensado de viajar. Quando estava em Roma morria de saudades pela Bahia, agora que está na Bahia o seu coração bate ao ritmo do Maranhão. Recusa-se a envelhecer, não aceita os avisos da morte, sonha com os ares puros da serra de Ibiapaba, as grandes águas do Tocantins, os infinitos lençóis de areia entre Cumã e Gurupi, as picadas do Marajó e as canoas do Itapicuru de proas enfeitadas com maracás, que só ele mesmo enxerga nos textos de Isaías… O corpo cansado sofre de surdez e de cegueira, as mãos crispam-se e não obedecem mais às ordens do cérebro que lhes comanda a escrita, mas a maior prisão é mesmo aquela Quinta do Tanque onde o condenaram a um desterro. O seu espírito de profeta liberta-se de todos os entraves da carne e dos ossos: Adeus Tanque…

Navegando pelas águas dos Açores ele não imaginava que o navio que o despejava no reino o entregava também nas mãos dos seus inimigos, mais perigosos que todos os oceanos. O país estava em mudança, um rei desatinado assumia o trono de um reino sem rumo e sem futuro, joguete ao serviço de forças políticas que lhe eram hostis e a sua saúde estava afectada pelo paludismo contraído nas intermináveis jornadas pelas florestas tropicais. Ninguém é profeta no seu país e nunca nenhum profeta previu o seu próprio destino. Vieira também não, mas ele confiava na sua estrela e interpretava as mensagens secretas dos cometas.

 

17 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Faz hoje 319 anos que o holandês Guilherme de Nassau, casado com Mary Stuart, filha de Jaime II, tomou conta do trono de Inglaterra, destronando o sogro autoritário e intolerante. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II (irmão de Jaime) desde 1685, ainda vivia em Inglaterra neste ano de 1689 e por lá ficaria até 1693, por razões de estado. A Inglaterra vivia momentos de grandes mudanças, as mais importantes das quais eram as da tolerância religiosa. Carlos e Jaime optaram pelo catolicismo e impuseram um regime de verdadeiro terror contra os protestantes, enquanto governaram; o novo regime de Nassau garantia aos protestantes as suas liberdades enquanto os católicos britânicos encontravam em Catarina um apoio e uma referência política. À distância, no seu observatório privilegiado da capital do catolicismo, bem informado e bem aconselhado, Vieira inquietava-se com o que se passava naquele reino, por causa de Catarina e do futuro da Europa, quando hereges e católicos dificilmente encontravam um terreno comum de conciliação.

Não foi fácil a vida da filha de D. João IV em Inglaterra, esposa de um rei que muito raramente a visitava, num tempo de conflitos e de instabilidade. Em dada altura a rainha chegou a ser acusada de tentar assassinar o marido, assunto comentado por Vieira ao seu grande confidente da época, o embaixador Duarte Ribeiro de Macedo. Por causa da postura que Vieira assumira no conflito entre D. Afonso VI e D. Pedro II, optando pelo apoio ao segundo, as relações dele com Catarina de Bragança ficaram muito difíceis. Na carta que lhe escreve em 1695 Vieira apela às recordações do passado para cativar a sua estima, como voltará a fazer em 1697, agradecendo a recompensa monetária que a rainha lhe concedeu pela publicação do 11º volume dos seus sermões.

Foi graças ao clima de tolerância e de liberdade que o rei Guilherme e a rainha Mary introduziram em Inglaterra que o filósofo John Locke, exilado na Holanda, pôde regressar ao seu país e publicar, aos 59 anos, um dos grandes textos do século, a Epistola de Tolerantia, escrita em latim, com o título vernáculo de Carta sobre a Tolerância. Ele foi a personalidade mais brilhante da Inglaterra do século XVII. Nesses anos Vieira estava ocupado na Bahia com os assuntos internos da Companhia e o tempo que lhe restava ocupava-o na preparação da edição dos seus sermões; por isso não teve conhecimento das ideias do filósofo inglês que se aproximavam das suas próprias ideias. As coisas do Brasil e do reino sobravam para lhe ocupar o espírito e sobretudo começava a achar o tempo escasso para terminar a sua grande obra, a Clavis Prophetarum.

Os últimos anos de Vieira foram de decepção, de alguma revolta e de muita amargura. Quando chegou a Salvador da Bahia, aos 73 anos de idade, ele era para os seus colegas e segundo as regras da Companhia, um “velho” e como tal foi enviado para uma casa de idosos, a Quinta do Tanque. Anos antes estava em Roma, no auge da sua fama de pregador, com auditórios atentos de cabeças coroadas e de cardeais, reconhecido como um dos homens mais esclarecidos do seu tempo e no seu meio. No reino ainda recaíam sobre ele suspeitas e intrigas, foi escarnecido e acusado, incomodava e era temido pela sua postura crítica. Como não ousavam confrontar-se com as suas ideias, tramavam em silêncio o seu desprestígio e queimavam-no em efígie.

Nem por isso diminuiu o seu patriotismo e a sua fé no futuro de um reino que lhe pagava com ingratidão a coragem e o sacrifício de muitos anos de serviço. Na sua última carta, escrita uma semana antes de morrer, preocupa-se com o Brasil, “retrato e espelho de Portugal” em tudo o que lhe conta o seu correspondente (…) “dos aparatos de guerra sem gente nem dinheiro, das searas dos vícios sem emenda, do infinito luxo sem cabedal, e de todas as outras contradições do juízo humano”. Como acontecera a muitos antes dele, como aconteceria depois dele, o reino de Portugal sempre lidou muito mal com os seus filhos mais ilustres e mais dedicados, ontem como hoje.

Vieira perturba quem o lê hoje, como acontecia com quem o escutava há 350 anos; ele continua a ser a consciência crítica de um povo na contra mão da sua história, alienado do presente e desencontrado com o futuro. Apagaram-se as fogueiras da Inquisição, acenderam-se as fornalhas de outros poderes, porque o povo continua a delirar com o cheiro a carne queimada.

 

20 de Fevereiro de 2008, Oceano Atlântico.

Já nem me lembro de uma etapa desta viagem com tanta serenidade como esta que estamos neste momento a percorrer entre São Miguel e Lisboa, exactamente a meio caminho das 790 milhas que separam dois cais de duas marinas. Não fosse o frio, seria um banal cruzeiro de verão num oceano calmo com ventos favoráveis, usufruindo dos favores de um anticiclone muito bem instalado no sítio certo. Até a lua ajuda, amanhã é lua cheia e as nossas noites são iluminadas pelo melhor luar de Fevereiro. Mas o vento do Norte refresca por demais a temperatura, as noites são longas e frias, povoadas de fantasmas e de incertezas.

Talvez seja por causa do cansaço acumulado de quase um ano de viagem, que ela parece longa, esta última etapa de alto mar; não são as manobras que complicam a nossa existência a bordo, pois desde que içámos as velas, em frente à cidade de Povoação, nunca mais tivemos que alterar o velame, para além de ajustar as escotas, tão regulares têm sido o mar e o vento. Fevereiro e Março são meses ruins para navegar nestas paragens, mas se também Vieira por cá navegou nestas calendas, porque não haveríamos nós de o fazer também? Não foi de propósito, simplesmente aconteceu sem eu querer; até não deveria mesmo ter acontecido.

 

22 de Fevereiro de 2008, Oceano Atlântico.

Como não podíamos passar impunes por estas latitudes em maré de Inverno, estamos hoje a pagar tributo a Neptuno, enfrentando rajadas de Nordeste que nos obrigam a procurar uma rota alternativa. Se continuássemos neste rumo que o vento nos impõe avistaríamos a costa alentejana amanhã pela manhã; mas os olhos mágicos que espreitam o planeta e os seus humores dizem-nos que a depressão que se cavou entre as Canárias e a Madeira vai encontrar-se connosco pela próxima madrugada, trazendo ventos do sector Sul que nos levarão até Lisboa. Gama e Cabral chegaram à Índia e voltaram sem nada que sequer se parecesse com as ajudas à navegação dos tempos modernos; também deixaram pelo caminho muitos navios e muitas vidas, eles e os outros que, depois deles, demandaram aquelas paragens longínquas em busca de fortunas imaginárias para satisfazer ambições desmedidas. Foi assim que eles criaram um mundo novo, um mundo jamais antes imaginado, feito de saber e de esperanças, que marcou para sempre a identidade e a glória do povo português. Vieira lembrou-o aos seus ouvintes naquele sermão de Roma, diante de 19 cardeais e embaixadores de todos os países acreditados na Santa Sé e ele acreditava realmente naquilo que pregava. Talvez fosse mesmo o único naquela igreja a sentir no corpo e na alma aquilo que pregava; o seu patriotismo e a sua visão profética do futuro do país não têm semelhanças em toda a história do povo português.

Vamos enfrentar esta noite um oceano incómodo, com muita maresia, mais uma noite sem sono, mas será apenas mais uma; amanhã será outro dia e o próximo cais vai ficando mais perto a cada vaga. Navegamos com a esperança de que este será apenas mais um cais da nossa vida, enquanto aguardamos pelo derradeiro cais.

 

24 de Fevereiro de 2008, Oeiras.

Foram sete dias de mar, quase hora por hora, entre Ponta Delgada e Oeiras. O porto de recreio recentemente inaugurado situa-se nas proximidades de Paço Darcos, onde embarcavam muitos passageiros das naus de quinhentos e seiscentos, que esperavam neste ancoradouro a melhor maré de vela para se lançarem ao oceano. Várias vezes Vieira menciona nas suas cartas as embarcações fundeadas dias e dias, já com as vergas e antenas içadas, prontas a zarpar ao primeiro vento favorável. Os passageiros, sobretudo os de maiores posses ou personalidades da vida cortesã da época, aguardavam nas proximidades o último momento para subir a bordo e chegava a acontecer que alguns embarcavam quando já os navios de alto bordo se encontravam no alto mar, alcançados por embarcações rápidas e ligeiras. Foi daqui que ele zarpou e foi aqui que ele arribou em quase todas as suas viagens marítimas.

Às chegadas e largadas ele avistou as mesmas paisagens de rocha massacrada pelas investidas do oceano, hoje entremeadas de edifícios modernos, de mansões de luxo e de empreendimentos de lazer: mas a serra de Sintra terá sido sempre a primeira terra a ser avistada e a última a perder-se no horizonte. Em algumas das suas chegadas e partidas ele estava amargurado, em outras contrariado, outras ainda eram momentos cheios de promessas e de augúrios que só mesmo a sua mente podia alcançar.

A sua última viagem começou aqui no mês de Janeiro de 1681 e foi com muita amargura que deixou o reino, rumo ao seu último pouso, um lugar que era para ele como um deserto onde sofria com a indiferença e a ingratidão do reino. Vieira regressava a Salvador da Bahia aos 73 anos, depois de numa ausência de 40 anos. Mas ainda lhe sobrariam mais 16 anos de uma vida fabulosa.

 

25 de Fevereiro de 2008, Oeiras.

Chegar ao seu país, depois de quase um ano de viagem a bordo de um pequeno veleiro, vivendo todos os dias na escassez de uma cabine exígua, é sempre uma sensação muito especial, nem sempre de alegria. Muitos emigrantes portugueses que encontrámos pelo nosso roteiro falaram-nos da sensação de tristeza que os invade quando visitam o torrão natal. Foi um ano muito intenso da minha vida e da do meu companheiro Dietmar; embarcámos a 17 de Março do ano passado e ainda estamos vivos após termos navegado o equivalente de meia volta ao mundo, fazendo escala numa dúzia de portos principais onde por vezes tivemos que superar dificuldades extremas. Outros companheiros fizeram grandes etapas da viagem, o Jaime até Salvador, o Luís e o Cuécué até Belém do Pará, o João e o Rafael de Belém até Portugal. Hoje tivemos uma grande alegria: um conhecido historiador sueco, Herman Lindqvist, uma espécie de José Hermano Saraiva daquelas latitudes frescas, contactou-nos com o intuito de desenvolver a temática do relacionamento da rainha Cristina com Vieira e das ideias do missionário português sobre a tolerância religiosa. Acedeu por acaso ao Diário de Bordo através do site e ficou entusiasmado com o nosso trabalho; está no ar o projecto de uma edição sueca dos meus textos e das aguarelas do Dietmar. Foi a primeira grande emoção à nossa chegada; mais uma vez acontece o que por demais é crónico no nosso país, como no tempo de Vieira: primeiro somos apreciados lá fora pelo que fazemos e só depois nos descobrem cá dentro. Para crescer continuamos a ter que sair da terra pequena onde nascemos, encontrar outras mentes e outras atitudes, como aconteceu ao jesuíta que tão bem o disse nos púlpitos de Roma.

Hoje é dia de repouso para a tripulação que tenta introduzir alguma ordem num veleiro por demais massacrado pelas ventanias e pelo furor invernal do Atlântico; o convés está transformado em estendal e as máquinas de lavar do porto de recreio de Oeiras ainda não deram conta do nosso serviço. Os últimos dias desta pequena etapa de 790 milhas (na realidade, com os desvios teremos feito 860 milhas) foram particularmente violentos: navegar à bolina nestas paragens com um mar agitado de vaga curta e desordenada é um verdadeiro martírio. Com dois brandais fragilizados e reforçados de emergência, mais o estai da genoa que aparenta uma fissura na fixação do topo do mastro, com a adrissa da vela grande bloqueada na polia e substituída pela do balão, não podíamos navegar com muita tela exposta ao vento. A tampa do porão de proa abriu-se com uma vaga violenta, perdeu as borrachas de vedação e encheu-se com mais de duas toneladas de água, evacuada ao balde numa noite agitada; depois vedámos a tampa do porão com o saco do anexo de borracha. Quando ligámos o motor à chegada à barra de Lisboa, a água de arrefecimento não saía pelo escape, porque o circuito tinha apanhado ar, o que significa que a entrada de água salgada, situada junto à quilha, tinha em dado momento ficado ao de cima de água. Apesar dos incidentes do percurso, conseguimos respeitar o calendário previsto para a etapa, navegando com segurança e precisão a uma média superior a 120 milhas por dia, chegando ao destino com as camas encharcadas e sem roupa seca, contando as gotas de leite e as migalhas de pão, mas contentes com o nosso desempenho. O investimento em material de pesca perdeu-se, quando um espadarte ou um agulhão de grande porte engoliu isca e anzol; a criatura debateu-se, saltou várias vezes fora de água mas a linha não resistiu e ficámos sem peixe fresco e sem recursos de pesca.

Estamos quase a chegar ao fim deste périplo pelos espaços atlânticos de um dos maiores portugueses de todos os tempos, senão o maior de todos; a descoberta da grandeza das suas ideias visionárias de missionário e de político, da sua coragem, do seu patriotismo, da sua postura ética, da sua crítica oportuna e contundente aos desvios da sociedade acomodada do seu tempo, foram o resultado do nosso sacrifício e da nossa obstinação ao longo desta viagem difícil. Ainda falta completar detalhes, polir alguns textos, seleccionar imagens, acabar o desenho de mapas e roteiros, mas o essencial do trabalho está feito, missão cumprida.

O CHIC tem 18 anos, não é uma embarcação nova. A viagem foi longa e complicada, as condições de mar massacraram o casco, o mastro e os brandais, perdemos uma vela e uma tempestade tropical deixou marcas bem visíveis da sua violência. Com traquejo e habilidade fomos resolvendo os problemas, sem nunca nos expormos a perigos excessivos.
Também aconteceu o mesmo com Vieira no seu tempo, o que não nos satisfaz, muito menos nos comove.

27 de Fevereiro de 2008, Oeiras.
Em Abril de 1638 a armada holandesa entrava na Bahia de Todos os Santos comandada por um príncipe de grande e nobre linhagem, Maurício de Nassau, que tinha chegado a Pernambuco no ano anterior, para dirigir os destinos da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Os ocupantes, que tinham consolidado as suas posições no Ceará, tentavam de novo ocupar a cidade de Salvador; fizeram algumas razias pelos engenhos do Recôncavo, tentaram com diplomacia convencer outros senhores de engenho a juntarem-se à sua causa, mas não ousaram atacar a cidade. Uma das posições que ocuparam foi junto à igreja de Santo António, a de além do Carmo e a outra foi também junto a uma outra igreja de Santo António, a da Barra, do lado oposto da cidade; quando os holandeses evacuaram da Bahia, Vieira pregou na igreja da Barra, no dia 13 de Junho, um sermão com sabores de vitória e outro na da Misericórdia em Julho (Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel) festejando a libertação da cidade.

O Conde da Torre, D. Fernando Mascarenhas, era um militar experiente com serviços prestados em África e no Oriente e que viria a organizar mais tarde o exército e a armada depois da Restauração (morreu em 1651). Foi-lhe confiado o comando de uma esquadra mandada ao Brasil por Filipe III para combater os holandeses. Mas no final de 1639 a armada real luso-espanhola tinha sido corrida e derrotada pelos holandeses e refugiara-se na Bahia. Os furores do oceano também massacraram a armada, ao que parece mal organizada e mal apetrechada em homens e em material. Vieira pregou na igreja da Sé, nos primeiros dias de 1640, talvez a 17 de Janeiro, um sermão para reconfortar os ânimos, que publicou como o décimo segundo da série do Rosário. “Que é o que padece o Brasil? Que é o que deseja tão longamente? O que padece é a guerra: o que deseja é a paz. E quando esta, na infelicidade dos sucessos presentes, parece mais desesperada e sem remédio, para exemplo do remédio e para alento da esperança, oportunamente nos representa o Evangelho a diferença de dois reinados imediatamente sucessivos, um tão famoso no que padecemos, outro felicíssimo no que desejamos”.

Pela Páscoa de 1640 a armada holandesa navegava outra vez ao largo da Bahia e desafiava os canhões dos navios do conde da Torre que não ousavam fazer-se ao mar, evitando novos confrontos; os holandeses também não se decidiram a entrar pela barra dentro e tentar mais uma vez a sua sorte. Foi nessa situação crítica que Vieira pregou na igreja da Ajuda, a 11 de Maio, um dos seus mais célebres e ousados sermões, pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda, dirigindo-se ao próprio Deus numa patética investida oratória. “Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que um dia queirais espanhóis e portugueses e que os não acheis.” Entretanto os holandeses abandonaram a estratégia da provocação e recolheram a Pernambuco. A armada luso-espanhola ficou protegida e abrigada na Bahia; o seu lugar seria no mar, defendendo um espaço conquistado e merecido, para cumprir o destino de Portugal. Vieira exortava a nobreza e os soldados nos sermões da Santa Cruz e de Santa Bárbara, mas a vontade de combater e de defender o espaço português e os seus tesouros escondidos não parecia ser uma prioridade daqueles soldados e marinheiros.

Em Julho de 1640 Vieira pregou novo sermão da Visitação de Nossa Senhora, na igreja da Misericórdia, festejando a chegada de um novo governador que exibia o título de vice-rei: D. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão. Se os holandeses tinham um príncipe à frente dos destinos dos territórios ocupados no Brasil, a colónia livre dispunha agora de um vice-rei, muito mais que um simples governador. Vieira associa a chegada do marquês a uma quase vitória sobre o poder holandês, animando os ânimos, mas deixa recados importantes sobre o modo como o Brasil deve ser governado, recados que o recém chegado deve ter ouvido com algum desconforto. “Esta é a causa original das doenças do Brasil, tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos, e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda e o Estado se perde. Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens (…) porque o que se tira do Brasil tira-se ao Brasil; o Brasil o dá, Portugal o leva. (…) Tudo o que der a Bahia para a Bahia há-de ser: tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há-de gastar”. A 6 de Janeiro de 1641 o sermão do Dia de Reis na igreja do colégio da Bahia foi um oratória de acção de Graças pelos 6 meses de governo do marquês de Montalvão, ao qual desta vez o jesuíta não poupou lisonjas. Desconhecia-se então em Salvador que a monarquia portuguesa tinha sido restaurada e que o novo monarca era um descendente da casa de Bragança.

A notícia chegou a Salvador por finais de Janeiro e logo o vice-rei decidiu enviar ao reino o seu filho Fernando, para garantir a D. João IV a sua adesão à nova monarquia; para o acompanhar solicitou dois padres da Companhia de Jesus, Simão de Vasconcelos e aquele que tinha já fama de grande orador, António Vieira. Não era o melhor momento para empreender uma travessia do Atlântico, mas as circunstâncias exigiam um esforço e valia a pena correr esse risco; os holandeses não seriam um perigo neste momento para dois ou três navios a caminho de Portugal, pois até Nassau tinha festejado em Pernambuco e com muita euforia a ocupação do trono português por D. João IV – não fossem os espanhóis seus inimigos de estimação!. Os barcos largaram de Salvador a 27 de Fevereiro para uma travessia invernal do Atlântico, faz hoje mesmo 367 anos.

 

28 de Fevereiro de 2008, Peniche.

Vieira desembarcou em Peniche nos últimos dias do mês de Abril de 1641 em condições dramáticas. Naquele tempo eram raríssimos os cais que podiam receber os navios de alto bordo e desembarcar os passageiros através de um portaló e Peniche dispunha apenas de uma grande baía abrigada para permitir um ancoradouro seguro, protegido por uma fortaleza cujo alcaide era o conde de Atouguia, D. Jerónimo de Ataíde, um dos principais actores do enredo da Restauração. Não se sabe quantos navios chegaram, seguramente mais do que um, seriam normalmente três, um navio de alto bordo, do tipo de uma fragata de 40 canhões e mais dois de menor porte servindo de escolta. O vice-rei terá requisitado ao Conde da Torre um dos melhores navios da sua armada de barcos portugueses e espanhóis que estava ancorada na Bahia sob o seu comando, para transportar o filho até junto do rei numa tão significativa e oportuna missão. Portugal não dispunha nessa altura de navios de grande porte; Espanha sim e pelo menos esse navio exibiria as cores de gala e o pavilhão espanhol num momento inoportuno, quando o rei espanhol tudo tentava para destronar o “usurpador” D. João IV.

Ancorados os navios, estes comunicaram ao que vinham e o que faziam naquelas paragens. Acontece que os familiares do marquês de Montalvão que governava o Brasil, incluindo a sua esposa que tinha ficado em Portugal, tinham aderido à causa de Filipe III e por essa razão o filho do vice-rei não recebeu as boas-vindas da população de Peniche, antes pelo contrário foi agredido e os padres que o acompanhavam foram molestados. O alcaide não encontrou outra solução senão meter os passageiros na cadeia para os proteger da fúria popular, não conseguindo evitar que o filho do marquês, D. Fernando de Meneses, fosse ferido na cabeça. Não são conhecidos os detalhes dos incidentes, mas sabe-se qual foi o desfecho: no dia 30 de Abril Vieira encontrava-se com o rei em Lisboa para lhe dar conta da sua missão.

Resta-nos a especular por que razão os navios chegaram a Peniche e não a Lisboa. Os biógrafos de Vieira resolveram a questão de uma maneira muito plausível, imaginando uma tempestade invernal do quadrante Sul que os tenha arrastado para umas 50 milhas mais a norte. Pouco provável esta hipótese porque, mesmo em caso de mau tempo, seria sempre mais prudente e mais fácil para aqueles navios entrar pela barra de Lisboa do que ancorar na baía de Peniche. A explicação deve ser outra, se bem que não passe de outra especulação plausível: o navio principal da frota que trazia os padres e o filho do vice-rei seria de bandeira espanhola e o seu comandante, prudente, não entrou pela barra de Lisboa donde o poderiam muito facilmente impedir de sair, porque o Tejo estava muito bem protegido com diversos fortes bem armados. Aquele navio, uma vez engavetado em Lisboa, seria menos um perigo para a frágil monarquia recém restaurada, enquanto que em Peniche, ancorado fora do alcance dos canhões da fortaleza, o comandante espanhol poderia zarpar em qualquer maré para o seu destino sem ter que dar contas a ninguém. O comandante de um navio de guerra não é apenas um navegador, é também e sobretudo um estratega e terá sido essa a estratégia inteligente que adoptou, escolhendo Peniche como ponto de chegada da sua missão, evitando que o seu navio fosse apreendido.

Vieira tinha 33 anos e esta viagem iria mudar por completo o rumo da sua vida. Quando atravessou o oceano pela primeira vez, de Lisboa para Salvador, tinha sete anos e certamente que se recordava daquela outra primeira viagem; o que ele não imaginava era que esta seria apenas a segunda de catorze grandes viagens marítimas que teria que fazer ao longo da sua vida, cumprindo muitas missões impossíveis.

Na sua última grande viagem marítima ele saiu de Lisboa a 27 de Janeiro de 1681 e festejou a bordo os 73 anos. Na mesma frota de navios viajava um grande jurista, mas também poeta infame e irreverente, Gregório de Matos Guerra, o “boca do Inferno”, cujas rimas Vieira reconhecia terem mais impacto no povo que os seus sermões. Para Gregório, Vieira era um “bestianista”, mas quando foi necessário juntarem-se na mesma luta contra a prepotência de um governador indesejado, António de Sousa de Meneses, o célebre Braço de Prata, nenhum deles hesitou em juntar o verbo à acção.

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