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6 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.

Caros leitores,

Cada criatura é um ser em viagem entre um porto de partida e um porto de chegada, com muitas escalas pelo caminho, entre bonanças e tempestades.

Este Diário de Bordo é um exercício de comunicação e uma partilha de emoções ao longo da viagem que se inicia e que vai durar um ano da minha vida e muitos meses da dos meus companheiros a bordo de um veleiro. Este Diário de Bordo pretende partilhar com os leitores as euforias e os desencontros, os sucessos e as frustrações de uma viagem que, por ser longa e por espaços exóticos, não deixa de ser apenas mais uma viagem, como qualquer uma daquelas que cada um faz cada dia que o sol nasce. A sensação de estar vivo é a mais sublime das emoções, quando os cais desaparecem no horizonte e quando se avista outra vez os paredões do próximo porto.

Um dia, todos nós nos encontraremos num derradeiro porto, na alvorada do oitavo dia da Criação.



7 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

O nosso barco é pequeno e passa despercebido nos pontões de qualquer marina, igual a tantos outros que cruzam os oceanos para prazer e deslumbramento dos forasteiros da vida que escolhem o mar como lugar privilegiado das suas euforias provisórias. É uma embarcação de série, um ELAN 43 de escassos 14 metros, em quase tudo conforme aos seus congéneres saídos dos mesmos moldes desde há duas décadas: as únicas modificações dignas de menção limitam-se ao volume suplementar dos depósitos de carburante e à transformação de uma das cabinas em biblioteca e espaço de trabalho para um ano de viagem pelos mesmos roteiros do padre António Vieira, no século XVII. O equipamento de navegação em nada se distingue do convencional para uma viagem oceânica, apenas o recheio se distingue pelo equipamento de telecomunicações e acessórios de foto e vídeo que levamos a bordo.

O objectivo da nossa viagem é percorrer, durante o ano de 2007, os mesmos espaços do diplomata, do missionário e do utopista ao longo da sua vida por mares e terras da Europa e do Brasil, testemunhando visualmente a dimensão da fantástica empreitada ao serviço do seu rei e dos seus ideais religiosos e humanísticos. O resultado deste trabalho concretizar-se-á numa publicação ilustrada, num documentário vídeo e numa exposição fotográfica e videográfica interactiva, disponíveis para o ano de 2008, quando se comemorarem os 400 anos do nascimento do padre António Vieira. A Gráfica de Coimbra e a Universidade de Aveiro são os parceiros directos desta empreitada cultural.

Chamámos a este projecto Cruzeiro Histórico Identidade e Cidadania e o nosso barco chama-se CHIC: uma trivial coincidência. Seremos uma equipa permanente de quatro pessoas a bordo, às quais se juntam pontualmente mais duas, cada qual com diferentes capacidades de intervenção, desde o conhecimento da obra do jesuíta até à assessoria de imprensa. Ao longo da nossa viagem teremos oportunidade de dialogar com muita gente em muitas e variadas escalas, cujo conteúdo temático terá ampla difusão através deste Diário de Bordo.

Na sua última viagem, Vieira saiu de Lisboa a 27 de Janeiro de 1681 rumo à Bahia de Todos os Santos, uma viagem sem incidentes, que comentou numa carta ao arcebispo nomeado para a Bahia desta maneira: A viagem da Baía está hoje tão facilitada nas melhores monções, que são as de Dezembro até Março, que se pode tomar como quem passa o Tejo… A nossa viagem tem início na mesma monção e tem como primeiro destino a ilha de Santiago em Cabo Verde, onde Vieira fez escala pelo Natal de 1652, em rota para as missões do Maranhão. De lá seguiremos para Salvador da Bahia, onde o grande pregador viveu ao todo 42 anos da sua vida.

Estamos acessíveis ao longo de toda a viagem pelo correio electrónico vieira400@gmail.com para que possam dialogar connosco, dar-nos sugestões, quem sabe encontrar-nos num desses cais onde param por algum tempo os barcos e os homens que peregrinam de porto em porto, em cata do rumo para o derradeiro destino.


8 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Vieira embarcou para longas viagens marítimas por catorze vezes, navegando pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo a bordo dos mais sofisticados navios de então e também de velhas caravelas sardinheiras que não ofereciam nem o mínimo conforto nem segurança aos viajantes. A primeira das suas grandes viagens fê-la quando completava sete anos, a última quando chegava aos setenta e três. Ambas começaram em Lisboa e terminaram em Salvador da Bahia, cidades emblemáticas da grande aventura da expansão das culturas de língua portuguesa pelo mundo.

Todas as largadas de Vieira com destino ao Brasil ou aos países europeus tiveram lugar no Tejo; algumas delas foram recheadas de peripécias, sobretudo a do primeiro regresso ao Brasil, depois da grande desilusão de meia dúzia de anos de intensa actividade diplomática por França, Holanda e Itália, por vezes movimentada e perigosa… essa largada de 22 de Novembro de 1652 foi a mais comentada por Vieira: esteve vai não vai, nem ele sabia ao certo se queria ou não embrenhar-se pelas matas do Maranhão como missionário ou continuar a arriscar a vida e o nome ao serviço do rei. O próprio rei também não sabia: se ver Vieira longe de Lisboa ou mais próximo dos seus aposentos.

A caravela em que embarcou, na companhia de outro padre e de um criado índio, era pequena demais para tanta gente que levava e saiu atrasada de Paço de Arcos por causa dele. Os outros navios do comboio, mais quatro holandeses e um português, tinham saído com a maré da madrugada desse dia e já iam longe quando a caravela içou a verga, largou pano e se fez ao mar, rumo à Madeira. Era costume as embarcações esperarem em Paço de Arcos a maré de vela favorável e os passageiros que podiam ficavam alojados em terra até ao momento da largada. Às vezes já os navios iam de velas soltas quando chegavam ainda passageiros transportados por outras embarcações; muletas e batéis alcançavam as naus por vezes já em alto mar para transbordar os passageiros da última chamada.
As largadas de antigamente eram precedidas de grandes manifestações religiosas e profanas que serviam para entreter e acalmar quem partia e quem ficava. O mar sempre foi um lugar provisório e hostil para os humanos, ao mesmo tempo fascinante e terrível, espaço de todas as incógnitas, fortunas imaginárias e destinos incontornáveis.

Os marinheiros de antigamente entretinham mitos e crenças como remédios para as suas angústias; os passageiros dos navios encomendavam-se a todos os santos conhecidos e preparavam a alma para o encontro definitivo com o Criador. Angústias e medos cessavam ao pisar a primeira terra firme de qualquer praia distante, mas durante a travessia, por mais serena que fosse, os humanos sempre encontravam um tempo novo nas suas vidas, o tempo dos sentimentos e emoções verdadeiras, o tempo de um encontro imediato com os limites e a desmedida vaidade de cada um. Não há como o oceano para nos fazer sentir vulneráveis e minúsculos, no meio de uma indescritível e poderosa imensidão


9 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Na segunda viagem de Lisboa ao Maranhão, escreve de Cabo Verde uma Carta ao Padre André Fernandes em 25 de Dezembro de 1652: “Chegámos com trinta dias de viagem”. Com dez dias de mar, fugindo dos piratas e do mau tempo, mal agasalhados e mal nutridos, ainda se encontravam ao largo da costa portuguesa; levaram uma semana a admirar a paisagem das ilhas Canárias, sem vento que os empurrasse para Cabo Verde, onde chegaram com quase um mês de mar, forçados a uma escala imprevista por falta de mantimentos (Cartas). Em 1500 Cabral saiu do Tejo, cruzou as Canárias 5 dias depois e passou por Cabo Verde com 13 dias de mar (Carta de Pero Vaz de Caminha); em 1832 Charles Darwin demorou 10 dias a chegar de Inglaterra às Canárias, onde não fez escala por causa de uma epidemia de cólera que afectava a ilha de Tenerife; depois levou outros 10 dias a chegar das Canárias à cidade da Praia, em Cabo Verde (The Voyage of the Beagle).

Era assim no tempo da marinha à vela, das caravelas, dos galeões, das naus, das fragatas, dos brigues e de todas as embarcações que só se moviam ao sabor do vento. Nós temos um motor de 40 cavalos bem aconchegado e escondidinho por debaixo da madeira envernizada, depósitos de carburante para contrariar a monotonia, aparelhagem digital para nos informar sobre o tempo, um olho mágico para detectar os intrusos das redondezas, frigorífico, congelador, forno e micro-ondas para cuidar da saúde, uma biblioteca e dezenas de DVD’s para nos instruirmos pelo caminho, até um telefone por satélite que toca nos momentos mais inoportunos só para saberem se ainda estamos vivos. Ainda há colegas que pensam que esta viagem é uma aventura radical e nós nada podemos fazer para os contrariar.

 

10 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Há 25 anos eu consegui levar um veleiro oceânico de 20 metros ria acima, até à ponte da Varela e atracá-lo, na maré alta, aos cais da Bestida e da Torreira. Chegava do interior do continente americano, do rio São Lourenço, numa travessia longa e cheia de imprevistos; poder chegar tão pertinho de casa cheirava a erva doce e a resina de pinheiro. Hoje há portos de abrigo com cais flutuantes, água e luz, mas o meu barquinho de 14 metros não consegue lá chegar; não é por nada, apenas pela emoção, querer partir dali mesmo, pertinho de casa, à maneira de um pássaro que sai do seu ninho para uma grande viagem. Não passa de fantasia, mas é daquelas coisas que me deixariam satisfeito, com um sabor doce de saudade, em vez daquele azedume de raiva que teima em queimar a boca e desgastar a alma.


11 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Ensinaram-nos desde crianças que fomos e seremos sempre um povo marítimo, o melhor do mundo pelos oceanos salgados e continuamos a cantar, quando a selecção joga futebol, que somos heróis, nobres, valentes e imortais. Ninguém acredita, mas todos fingimos que é verdade, para nosso deslumbramento sentimental. Nenhum povo do mundo parece ser tão descaradamente optimista como nós, portugueses. É uma característica endémica o acreditarmos nas nossas próprias paranóias. Esta viagem iniciou-se em Aveiro, terra de grandes tradições marítimas, de herdeiros da raça e da coragem dos forasteiros fenícios, gente que fincou o pé a Júlio César e ao seu divino sobrinho, de destemidos vikings, de navegadores quinhentistas, de grandes capitães de bacalhoeiros à vela, paraíso dos moliceiros e dos ovos moles, do sal (importado da Argélia), das enguias (importadas de França) e do bacalhau (importado da Rússia)… pois não possui uma marina digna deste nome capaz de acolher com dignidade um navegante. A ria está nojenta e degrada-se a cada maré viva, engolindo terras de pão e transformando os juncais em lamaçais repletos de podridão. É o ex-libris de uma região turística que insiste em denominar-se Rota da Luz em vez de se anunciar como Rota da Lama.



12 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Não me parece que seja nada fora do comum para os nossos parâmetros de referência convencionais. Aqui há uns anos apareceu por estas bandas um navegador solitário que conseguiu avançar até às terras da Murtosa, deliciando-se com a gente, a paisagem e a mesa, mas indignando-se contra o abandono e a indiferença da população em relação ao seu espaço marítimo privilegiado. Foi então que num acesso de inspiração teve uma ideia brilhante, sugerindo que todo este espaço fosse vendido aos holandeses para que fizessem dele aquilo que só eles sabem fazer bem: transformá-lo num poema de canais, de terras férteis, quem sabe até floridas. O povinho beneficiaria de uma fantástica paisagem humanizada e protegida, pagando um direito de entrada para beneficiar de tão agradável paisagem, assim como se paga para entrar num parque natural privado ou para circular por uma auto-estrada. A ideia não podia ser mais brilhante: entre vivermos de borla cercados por um charco imundo e pagarmos uma taxa para beneficiarmos de um ambiente são e de qualidade, ninguém hesitaria. Há sempre alguns que não conseguem habituar-se a viver fora da imundície onde nasceram, mas vivemos em democracia e a vontade da maioria sempre deve prevalecer sobre as forças reaccionárias, como nos habituámos a ouvir de há uns anos para cá, sem grande sucesso mas com muito alarido.



13 de Fevereiro de 2007, Ria de Aveiro.
40 38′ 23”N, 8 40′ 27”W

Em desespero de causa, também o padre Vieira propôs um dia ao rei que se vendesse Pernambuco aos holandeses, para salvar o país de uma desgraça ainda maior; a situação era tão séria que se chegou a considerar a hipótese da fuga da família real para o Brasil (o que viria a acontecer século e meio mais tarde). Verdade é que a cidade de Recife, no tempo da administração do príncipe Maurício de Nassau, ao serviço da Companhia Holandesa das Índias do Oeste, era a cidade mais agradável e mais desenvolvida daquelas bandas. Não faltava quem para lá quisesse emigrar e por lá refazer a sua vida, a sul do Equador, onde não havia pecados que não fossem perdoados e onde a liberdade passeava nua e sem vergonha pelas praias e pelas praças. Não havia autos-da-fé nem se denunciavam os judeus e até os artistas achavam inspiração para as suas telas e gravuras, com que incitaram outros intelectuais, filósofos e moralistas, a desenvolver novas teorias sobre a liberdade e sobre a bondade natural dos povos primitivos.

 

14 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Se Vieira escreveu algumas cartas durante a sua passagem de cerca de três meses pelos Açores, elas perderam-se; mas não é provável que tal tenha acontecido. Ele dedicou-se ao bem-estar dos seus companheiros de naufrágio, servindo-se do seu prestígio e das suas relações pessoais. O superior das missões do Maranhão era o pregador do rei, tinha sido seu embaixador e todos reconheciam a sua capacidade de intervenção. Desconhecem-se os detalhes dos seus passos, mas sabe-se que os náufragos foram alojados e socorridos na ilha Graciosa antes de passarem para as instalações dos jesuítas na ilha Terceira, onde existia o maior colégio do arquipélago. A ilha Graciosa, pela sua posição geográfica, era a mais exposta aos ataques dos corsários no século XVII: os barcos provenientes do sul passavam normalmente entre as ilhas ocidentais (Flores e Corvo) e as centrais, deflectindo para leste e passando ao largo da Graciosa, onde os aguardavam predadores do norte de França, da Holanda, turcos e argelinos, todos com as mesmas intenções. A ilha foi por várias vezes atacada por piratas do norte de África; existe uma capela construída no século XVII em honra de Nossa Senhora da Vitória, comemorando a resistência dos insulares aos ataques dos argelinos.

Do que terá acontecido aos outros náufragos, nada se sabe. Talvez alguns tenham viajado no mesmo barco com destino a Lisboa, em Novembro. Nessa altura do ano as embarcações seguras, ou sejam navios de alto bordo e armados, eram raras e, depois da experiência da Graciosa, Vieira não queria expor-se a outros perigos, pois tinha uma missão importante a cumprir junto do rei. Por isso, apesar da embarcação ser de hereges, era segura para o levar ao destino. Ele fala no sermão pregado em 1655 dos marinheiros com as suas “machadinhas”, equipamento característico dos marinheiros de um navio inglês de comércio, armado.
A igreja do colégio de Ponta Delgada onde ele pregou o sermão de Santa Teresa, a 15 de Outubro, não era exactamente a actual; as paredes laterais são ainda as mesmas do templo erguido em 1591, mas o templo actual é obra do século XVIII, com a sua fachada barroca inacabada. A expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal em 1759 pôs um termo à presença de quase século e meio dos jesuítas nas ilhas. O púlpito onde ele pregou terá sido o existente actualmente ou outro similar na parede oposta, que já não existe, restando apenas a porta de acesso e a escada pelo interior da parede.

Quando largou daqui, levava três meses de atraso na sua viagem e o tempo era de Inverno, mar alteroso e ventos fortes. A viagem decorreu sem incidentes até Lisboa, onde ele esperava encontrar acolhimento favorável junto da corte, mas nem tudo correu conforme esperava. Na sua primeira carta conhecida desta época, escrita no mesmo dia em que iniciava a viagem de regresso para o Maranhão, a 16 de Abril de 1655, ele quase desabafa: Finalmente, segundo posso entender, Deus chamou-me para o Maranhão… Ele já lá estava desde Janeiro de 1653, mas, ao que parece, não tinha a certeza da sua vocação de missionário. Viera a Portugal ambicionando ainda um espaço à sua medida na corte, mas a situação modificou-se durante os cinco meses que esteve no reino e teve que assumir a tal vocação de missionário, longe das inquietações e perturbações da corte, das quais não pode escapar senão quem foge dela.
De regresso ao Maranhão e Grão-Pará Vieira empreendeu uma das maiores façanhas da presença portuguesa no Brasil, uma acção de verdadeiro bandeirante, com uma visão estratégica de político e de religioso, única na história da colonização portuguesa: uma visão de génio, uma visão profética que ainda hoje muito poucos entendem. Nascia o Quinto Império.

Publicado por A de Abreu Freire
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15 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Num reino onde a mediocridade e a hipocrisia invadiam a sociedade dominante da época, a figura do padre António Vieira, com o seu perfil de homem íntegro e intransigente faz lembrar as palavras que Gil Vicente dedicou a Sá de Miranda, mais ou menos assim: Homem de um só parecer, de um só rosto e de uma só fé… de antes quebrar que torcer. Outra coisa pode ser, mas homem da corte não é! O pregador e amigo do rei era de um carácter diametralmente oposto ao do soberano a quem servia com toda a fidelidade e inteligência. Apenas em duas coisas eles se pareciam: ambos exibiam uma vasta e tradicional cultura humanística e nunca esconderam uma mais que justificada vaidade pelos sucessos das suas iniciativas, fossem elas de grande relevo ou apenas escaramuças pontuais. Vieira foi no seu tempo a consciência crítica de uma sociedade em conflito com a sua história e com o seu destino colectivo.

Quando estava em maré de raiva, o jesuíta não se controlava e o gesto e o verbo traduziam a fúria que lhe roía a alma; numa vez, na Holanda, encontrou um espanhol atrevido que o incomodou e parece que jamais se terá arrependido de ter puxado da adaga. Numa carta de 1656 ao seu confidente e amigo padre André Fernandes, jesuíta como ele e bispo eleito do Japão, revoltado contra o comportamento de outros religiosos no Maranhão, ele desabafa: Triunfe o vigário do Pará; triunfem os piratas do Gurupá…, e triunfe o Demónio, a gentilidade, a idolatria, a maldade, o escândalo, a abominação, o Inferno. Se os padres da Companhia fizeram a mínima parte do que estes têm feito e fazem, que havia de dizer de nós o mundo? Que herege, que turco, que cristão, não nos havia de apedrejar? E contudo (àqueles) há-de haver quem os defenda e favoreça e a nós, quem nos persiga, e quem se ponha contra nós. Nesta fase de bandeirante da fé, empolgado com a sua estratégia de construir um espaço seguro para um modelo de Império político e religioso, lançava-se por todos os caminhos, por todos os rios e até pelo oceano em rumo errado, confiando apenas nas suas intuições, empolgado pelos seus próprios ideais. Depois do regresso ao Maranhão a sua vida decorria com o furor de um furacão, arrasando tudo à sua passagem. Como todas as ventanias, a fúria dissipou-se e os mais persistentes venceram a batalha e ganharam a guerra.

A primeira atitude face ao tribunal da Inquisição foi de altivez e desafio, mas logo entendeu que se encontrava numa posição de extrema fragilidade, sem apoios políticos nem mesmo dos seus colegas de religião e optou por uma atitude mais humilde, satisfazendo as exigências do tribunal e guardando para mais tarde uma suave vingança. Quando foi tempo de se queixar da ingratidão dos grandes do reino, ele não poupou ninguém: canalhas, cafres da Europa, ignorantes, ingratos… ninguém escapou à sua crítica perspicaz e contundente.

A postura e o carácter de Vieira foram constantes ao longo de toda a sua vida. Num sermão pregado na igreja da Ajuda, tinha 32 anos, ousa dirigir-se ao próprio Deus e não aos ouvintes, convidando-O a reflectir sobre as consequências de uma entrega do Brasil aos hereges holandeses; foi em Maio de 1640. Tal ousadia levou-o, oito meses depois, a receber oficialmente o vice-rei marquês de Montalvão com um sermão patriótico recheado de recados subtis em defesa dos interesses do Brasil e da Bahia: o que é nosso fica por cá, não é para gastar em Lisboa nem desperdiçar em Madrid. Os recados, vindos da boca de um sacerdote ousado, eloquente e culto, não ofenderam o marquês que, um mês depois, confiava o filho à sua protecção, a caminho do reino.

Nunca ninguém conseguiu silenciá-lo nas questões que ele achava justas e oportunas, nunca ninguém teve coragem sequer de o censurar, nem o próprio rei, quando Vieira incitava o herdeiro D. Teodósio, mimado e inexperiente, a pegar em armas e fazer o que o pai tanto detestava que nunca fez: colocar-se à frente de um exército e defender a soberania do reino com vitórias militares. Quantas vezes, na capela real, o próprio rei ouviu da sua boca palavras duras que lhe eram dirigidas, sem por isso vacilar na amizade e no apreço que tinha pelo seu inimitável pregador! Foi antes do regresso ao Maranhão, na igreja da Misericórdia de Lisboa que um dia, lamentando que aquele sermão não estivesse a ser pregado numa capela real, ele defendeu que nem os reis chegariam ao paraíso sem levar com eles os ladrões, nem os ladrões cairiam no inferno sem arrastar com eles os reis. Ninguém melhor do que ele conhecia cortes e senzalas, palácios e malocas, reis e ladrões, os da Bahia e os do Maranhão, os de Lisboa e de Roma, de Haia e de Paris e todos os outros, sem corte e sem moral, que contrariavam as profecias.

O sermão pregado na igreja do colégio desta cidade de Ponta Delgada resume com total clareza a postura ética de toda a vida de Vieira: Deve-se pregar com os olhos no céu, para que vejamos o que devemos imitar nos santos: deve-se pregar com os olhos na terra, para que saibamos o que devemos emendar em nós: e deve-se pregar com os olhos no Evangelho, como luz do céu na terra, nos encaminhe ao que havemos de emendar na terra, e ao que havemos de imitar no céu. Céu, Terra e Evangelho, os parâmetros de um homem de fé, de um homem do mundo e de um cristão empenhado na história da salvação: a do seu reino e a do mundo inteiro.

Vieira nunca cedeu, nunca abdicou dos seus princípios, nunca duvidou do destino único e específico do seu país. A sua vida é uma sucessão de empreendimentos inacabados, todos eles orientados pela mesma postura ética, pela mesma fé e pelo mesmo patriotismo, todos eles contrariados por opções desatinadas. A sua memória ficará para sempre na história da consciência colectiva de um país por demais comprometido, ontem como hoje, com a mediocridade. Para sempre. Com este “para sempre” me quero despedir de vós, e que este para sempre vos fique soando nos ouvidos e imprimindo-se nas memórias: para sempre, para sempre, para sempre. Assim termina o sermão de Santa Teresa, pregado a escassas centenas de metros do cais onde estamos, faz hoje mesmo 353 anos e 4 meses.

Publicado por A de Abreu Freire
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16 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Da última vez que Vieira navegou ao largo dos Açores foi em Outubro de 1661, vinte anos depois da primeira vez. Viajava a bordo de um barco velho e inconfortável, seguia preso e separado dos seus colegas das missões do Maranhão, expulsos pelos colonos com o apoio das outras ordens religiosas. Os companheiros viajavam em outros barcos da mesma frota, um dos quais era o grande galeão Sacramento, propriedade do governador do Maranhão e Grão-Pará, D. Pedro de Melo. No dia da festa de Nossa Senhora do Rosário pregou a bordo um sermão, o nono da série do Rosário, lembrando a todos a fragilidade de se encontrarem no vasto oceano dentro de quatro tábuas, num mês tão formidável a todos os mareantes por suas tempestades, como memorável por seus naufrágios. O sermão é recheado de exemplos e de acontecimentos verdadeiros ou fabulosos referentes a viagens marítimas, batalhas navais, milagres e intervenções divinas que salvaram navegantes. No centro de todos os milagres está o Rosário e a devoção a Maria da qual nasceu Jesus, tema do sermão.

O missionário estava consciente de que aquela retirada do Maranhão seria para sempre e que para ele a tarefa terminara; em 1658, avaliando a sua acção missionária, confidenciava a um amigo as dificuldades que encontrava no terreno: nenhuma coisa se fez na missão do Maranhão os três primeiros anos, depois que viemos a ela, que não esteja mui assentada e ajustada com o uso e modo da Companhia (…) mas isto mesmo é que nos fez o mal, ou o que nos tem impedido os progressos de maiores bens. Padre e amigo meu (o padre Francisco de Avelar), a Companhia não está já hoje para semelhantes empresas… O seu projecto era muito mais vasto do que aquilo que as regras da Companhia de Jesus permitiam em terreno de missão. Vieira sentia-se tolhido por normas que o impediam de atingir os objectivos que os seus superiores não entendiam. Daí ele ter que camuflar acções, inventar um discurso diferente para cada interlocutor, até mesmo mentir descaradamente aos seus superiores, a propósito de cartas que não terão chegado ao destino, de navios que perderam o rumo, de correios que se extraviaram, enquanto esperava que lhe chegassem às mãos directivas régias que apoiassem as suas próprias iniciativas, tudo ao fim e ao cabo conforme aos insondáveis desígnios da providência divina. A missão da serra de Ibiapaba só se concretizou graças a uma arriscada estratégia e a uma persistência na demanda dos seus próprios ideais, por sua conta e risco.

Este poder criativo com sabor a rebeldia faz parte do carácter de Vieira, da sua personalidade, do seu patriotismo, da sua fé. Tudo nele é forte e coerente até ao limite do bom senso, mesmo se por vezes é necessário beliscar o raciocínio para entender os seus objectivos. Afim de garantir a liberdade dos indígenas ele aceita a escravatura dos negros, necessária também para salvar o reino da ruína, porque sem negros não há açúcar, sem açúcar o país não tem como comprar fragatas, sem armamento e soldados o reino e as suas conquistas não têm futuro. Até ao fim da vida, a escravatura dos negros não mereceu da sua parte mais do que discursos piedosos; não sofreu por causa deles nada de semelhante ao que padeceu por ter defendido os indígenas. A prioridade era o destino do reino, traçado nos textos dos profetas.

Aos 80 anos ele oferecer-se-á para regressar ao Maranhão com o seu companheiro o padre José Soares, como simples missionários, mas ninguém o leva a sério e em vez disso nomeiam-no aos 82 anos visitador geral da Companhia, dispensado de viajar. Quando estava em Roma morria de saudades pela Bahia, agora que está na Bahia o seu coração bate ao ritmo do Maranhão. Recusa-se a envelhecer, não aceita os avisos da morte, sonha com os ares puros da serra de Ibiapaba, as grandes águas do Tocantins, os infinitos lençóis de areia entre Cumã e Gurupi, as picadas do Marajó e as canoas do Itapicuru de proas enfeitadas com maracás, que só ele mesmo enxerga nos textos de Isaías… O corpo cansado sofre de surdez e de cegueira, as mãos crispam-se e não obedecem mais às ordens do cérebro que lhes comanda a escrita, mas a maior prisão é mesmo aquela Quinta do Tanque onde o condenaram a um desterro. O seu espírito de profeta liberta-se de todos os entraves da carne e dos ossos: Adeus Tanque…

Navegando pelas águas dos Açores ele não imaginava que o navio que o despejava no reino o entregava também nas mãos dos seus inimigos, mais perigosos que todos os oceanos. O país estava em mudança, um rei desatinado assumia o trono de um reino sem rumo e sem futuro, joguete ao serviço de forças políticas que lhe eram hostis e a sua saúde estava afectada pelo paludismo contraído nas intermináveis jornadas pelas florestas tropicais. Ninguém é profeta no seu país e nunca nenhum profeta previu o seu próprio destino. Vieira também não, mas ele confiava na sua estrela e interpretava as mensagens secretas dos cometas.

Publicado por A de Abreu Freire
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17 de Fevereiro de 2008, Ponta Delgada.

Faz hoje 319 anos que o holandês Guilherme de Nassau, casado com Mary Stuart, filha de Jaime II, tomou conta do trono de Inglaterra, destronando o sogro autoritário e intolerante. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II (irmão de Jaime) desde 1685, ainda vivia em Inglaterra neste ano de 1689 e por lá ficaria até 1693, por razões de estado. A Inglaterra vivia momentos de grandes mudanças, as mais importantes das quais eram as da tolerância religiosa. Carlos e Jaime optaram pelo catolicismo e impuseram um regime de verdadeiro terror contra os protestantes, enquanto governaram; o novo regime de Nassau garantia aos protestantes as suas liberdades enquanto os católicos britânicos encontravam em Catarina um apoio e uma referência política. À distância, no seu observatório privilegiado da capital do catolicismo, bem informado e bem aconselhado, Vieira inquietava-se com o que se passava naquele reino, por causa de Catarina e do futuro da Europa, quando hereges e católicos dificilmente encontravam um terreno comum de conciliação.

Não foi fácil a vida da filha de D. João IV em Inglaterra, esposa de um rei que muito raramente a visitava, num tempo de conflitos e de instabilidade. Em dada altura a rainha chegou a ser acusada de tentar assassinar o marido, assunto comentado por Vieira ao seu grande confidente da época, o embaixador Duarte Ribeiro de Macedo. Por causa da postura que Vieira assumira no conflito entre D. Afonso VI e D. Pedro II, optando pelo apoio ao segundo, as relações dele com Catarina de Bragança ficaram muito difíceis. Na carta que lhe escreve em 1695 Vieira apela às recordações do passado para cativar a sua estima, como voltará a fazer em 1697, agradecendo a recompensa monetária que a rainha lhe concedeu pela publicação do 11º volume dos seus sermões.

Foi graças ao clima de tolerância e de liberdade que o rei Guilherme e a rainha Mary introduziram em Inglaterra que o filósofo John Locke, exilado na Holanda, pôde regressar ao seu país e publicar, aos 59 anos, um dos grandes textos do século, a Epistola de Tolerantia, escrita em latim, com o título vernáculo de Carta sobre a Tolerância. Ele foi a personalidade mais brilhante da Inglaterra do século XVII. Nesses anos Vieira estava ocupado na Bahia com os assuntos internos da Companhia e o tempo que lhe restava ocupava-o na preparação da edição dos seus sermões; por isso não teve conhecimento das ideias do filósofo inglês que se aproximavam das suas próprias ideias. As coisas do Brasil e do reino sobravam para lhe ocupar o espírito e sobretudo começava a achar o tempo escasso para terminar a sua grande obra, a Clavis Prophetarum.

Os últimos anos de Vieira foram de decepção, de alguma revolta e de muita amargura. Quando chegou a Salvador da Bahia, aos 73 anos de idade, ele era para os seus colegas e segundo as regras da Companhia, um “velho” e como tal foi enviado para uma casa de idosos, a Quinta do Tanque. Anos antes estava em Roma, no auge da sua fama de pregador, com auditórios atentos de cabeças coroadas e de cardeais, reconhecido como um dos homens mais esclarecidos do seu tempo e no seu meio. No reino ainda recaíam sobre ele suspeitas e intrigas, foi escarnecido e acusado, incomodava e era temido pela sua postura crítica. Como não ousavam confrontar-se com as suas ideias, tramavam em silêncio o seu desprestígio e queimavam-no em efígie.

Nem por isso diminuiu o seu patriotismo e a sua fé no futuro de um reino que lhe pagava com ingratidão a coragem e o sacrifício de muitos anos de serviço. Na sua última carta, escrita uma semana antes de morrer, preocupa-se com o Brasil, “retrato e espelho de Portugal” em tudo o que lhe conta o seu correspondente (…) “dos aparatos de guerra sem gente nem dinheiro, das searas dos vícios sem emenda, do infinito luxo sem cabedal, e de todas as outras contradições do juízo humano”. Como acontecera a muitos antes dele, como aconteceria depois dele, o reino de Portugal sempre lidou muito mal com os seus filhos mais ilustres e mais dedicados, ontem como hoje.

Vieira perturba quem o lê hoje, como acontecia com quem o escutava há 350 anos; ele continua a ser a consciência crítica de um povo na contra mão da sua história, alienado do presente e desencontrado com o futuro. Apagaram-se as fogueiras da Inquisição, acenderam-se as fornalhas de outros poderes, porque o povo continua a delirar com o cheiro a carne queimada.

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20 de Fevereiro de 2008, Oceano Atlântico.

Já nem me lembro de uma etapa desta viagem com tanta serenidade como esta que estamos neste momento a percorrer entre São Miguel e Lisboa, exactamente a meio caminho das 790 milhas que separam dois cais de duas marinas. Não fosse o frio, seria um banal cruzeiro de verão num oceano calmo com ventos favoráveis, usufruindo dos favores de um anticiclone muito bem instalado no sítio certo. Até a lua ajuda, amanhã é lua cheia e as nossas noites são iluminadas pelo melhor luar de Fevereiro. Mas o vento do Norte refresca por demais a temperatura, as noites são longas e frias, povoadas de fantasmas e de incertezas.

Talvez seja por causa do cansaço acumulado de quase um ano de viagem, que ela parece longa, esta última etapa de alto mar; não são as manobras que complicam a nossa existência a bordo, pois desde que içámos as velas, em frente à cidade de Povoação, nunca mais tivemos que alterar o velame, para além de ajustar as escotas, tão regulares têm sido o mar e o vento. Fevereiro e Março são meses ruins para navegar nestas paragens, mas se também Vieira por cá navegou nestas calendas, porque não haveríamos nós de o fazer também? Não foi de propósito, simplesmente aconteceu sem eu querer; até não deveria mesmo ter acontecido.

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22 de Fevereiro de 2008, Oceano Atlântico.

Como não podíamos passar impunes por estas latitudes em maré de Inverno, estamos hoje a pagar tributo a Neptuno, enfrentando rajadas de Nordeste que nos obrigam a procurar uma rota alternativa. Se continuássemos neste rumo que o vento nos impõe avistaríamos a costa alentejana amanhã pela manhã; mas os olhos mágicos que espreitam o planeta e os seus humores dizem-nos que a depressão que se cavou entre as Canárias e a Madeira vai encontrar-se connosco pela próxima madrugada, trazendo ventos do sector Sul que nos levarão até Lisboa. Gama e Cabral chegaram à Índia e voltaram sem nada que sequer se parecesse com as ajudas à navegação dos tempos modernos; também deixaram pelo caminho muitos navios e muitas vidas, eles e os outros que, depois deles, demandaram aquelas paragens longínquas em busca de fortunas imaginárias para satisfazer ambições desmedidas.

Foi assim que eles criaram um mundo novo, um mundo jamais antes imaginado, feito de saber e de esperanças, que marcou para sempre a identidade e a glória do povo português. Vieira lembrou-o aos seus ouvintes naquele sermão de Roma, diante de 19 cardeais e embaixadores de todos os países acreditados na Santa Sé e ele acreditava realmente naquilo que pregava. Talvez fosse mesmo o único naquela igreja a sentir no corpo e na alma aquilo que pregava; o seu patriotismo e a sua visão profética do futuro do país não têm semelhanças em toda a história do povo português.

Vamos enfrentar esta noite um oceano incómodo, com muita maresia, mais uma noite sem sono, mas será apenas mais uma; amanhã será outro dia e o próximo cais vai ficando mais perto a cada vaga. Navegamos com a esperança de que este será apenas mais um cais da nossa vida, enquanto aguardamos pelo derradeiro cais.

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24 de Fevereiro de 2008, Oeiras.

Foram sete dias de mar, quase hora por hora, entre Ponta Delgada e Oeiras. O porto de recreio recentemente inaugurado situa-se nas proximidades de Paço Darcos, onde embarcavam muitos passageiros das naus de quinhentos e seiscentos, que esperavam neste ancoradouro a melhor maré de vela para se lançarem ao oceano. Várias vezes Vieira menciona nas suas cartas as embarcações fundeadas dias e dias, já com as vergas e antenas içadas, prontas a zarpar ao primeiro vento favorável. Os passageiros, sobretudo os de maiores posses ou personalidades da vida cortesã da época, aguardavam nas proximidades o último momento para subir a bordo e chegava a acontecer que alguns embarcavam quando já os navios de alto bordo se encontravam no alto mar, alcançados por embarcações rápidas e ligeiras. Foi daqui que ele zarpou e foi aqui que ele arribou em quase todas as suas viagens marítimas.

Às chegadas e largadas ele avistou as mesmas paisagens de rocha massacrada pelas investidas do oceano, hoje entremeadas de edifícios modernos, de mansões de luxo e de empreendimentos de lazer: mas a serra de Sintra terá sido sempre a primeira terra a ser avistada e a última a perder-se no horizonte. Em algumas das suas chegadas e partidas ele estava amargurado, em outras contrariado, outras ainda eram momentos cheios de promessas e de augúrios que só mesmo a sua mente podia alcançar.

A sua última viagem começou aqui no mês de Janeiro de 1681 e foi com muita amargura que deixou o reino, rumo ao seu último pouso, um lugar que era para ele como um deserto onde sofria com a indiferença e a ingratidão do reino. Vieira regressava a Salvador da Bahia aos 73 anos, depois de numa ausência de 40 anos. Mas ainda lhe sobrariam mais 16 anos de uma vida fabulosa.

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25 de Fevereiro de 2008, Oeiras.

Chegar ao seu país, depois de quase um ano de viagem a bordo de um pequeno veleiro, vivendo todos os dias na escassez de uma cabine exígua, é sempre uma sensação muito especial, nem sempre de alegria. Muitos emigrantes portugueses que encontrámos pelo nosso roteiro falaram-nos da sensação de tristeza que os invade quando visitam o torrão natal. Foi um ano muito intenso da minha vida e da do meu companheiro Dietmar; embarcámos a 17 de Março do ano passado e ainda estamos vivos após termos navegado o equivalente de meia volta ao mundo, fazendo escala numa dúzia de portos principais onde por vezes tivemos que superar dificuldades extremas. Outros companheiros fizeram grandes etapas da viagem, o Jaime até Salvador, o Luís e o Cuécué até Belém do Pará, o João e o Rafael de Belém até Portugal. Hoje tivemos uma grande alegria: um conhecido historiador sueco, Herman Lindqvist, uma espécie de José Hermano Saraiva daquelas latitudes frescas, contactou-nos com o intuito de desenvolver a temática do relacionamento da rainha Cristina com Vieira e das ideias do missionário português sobre a tolerância religiosa. Acedeu por acaso ao Diário de Bordo através do site e ficou entusiasmado com o nosso trabalho; está no ar o projecto de uma edição sueca dos meus textos e das aguarelas do Dietmar. Foi a primeira grande emoção à nossa chegada; mais uma vez acontece o que por demais é crónico no nosso país, como no tempo de Vieira: primeiro somos apreciados lá fora pelo que fazemos e só depois nos descobrem cá dentro. Para crescer continuamos a ter que sair da terra pequena onde nascemos, encontrar outras mentes e outras atitudes, como aconteceu ao jesuíta que tão bem o disse nos púlpitos de Roma.
Oeiras
Hoje é dia de repouso para a tripulação que tenta introduzir alguma ordem num veleiro por demais massacrado pelas ventanias e pelo furor invernal do Atlântico; o convés está transformado em estendal e as máquinas de lavar do porto de recreio de Oeiras ainda não deram conta do nosso serviço. Os últimos dias desta pequena etapa de 790 milhas (na realidade, com os desvios teremos feito 860 milhas) foram particularmente violentos: navegar à bolina nestas paragens com um mar agitado de vaga curta e desordenada é um verdadeiro martírio. Com dois brandais fragilizados e reforçados de emergência, mais o estai da genoa que aparenta uma fissura na fixação do topo do mastro, com a adrissa da vela grande bloqueada na polia e substituída pela do balão, não podíamos navegar com muita tela exposta ao vento. A tampa do porão de proa abriu-se com uma vaga violenta, perdeu as borrachas de vedação e encheu-se com mais de duas toneladas de água, evacuada ao balde numa noite agitada; depois vedámos a tampa do porão com o saco do anexo de borracha. Quando ligámos o motor à chegada à barra de Lisboa, a água de arrefecimento não saía pelo escape, porque o circuito tinha apanhado ar, o que significa que a entrada de água salgada, situada junto à quilha, tinha em dado momento ficado ao de cima de água. Apesar dos incidentes do percurso, conseguimos respeitar o calendário previsto para a etapa, navegando com segurança e precisão a uma média superior a 120 milhas por dia, chegando ao destino com as camas encharcadas e sem roupa seca, contando as gotas de leite e as migalhas de pão, mas contentes com o nosso desempenho. O investimento em material de pesca perdeu-se, quando um espadarte ou um agulhão de grande porte engoliu isca e anzol; a criatura debateu-se, saltou várias vezes fora de água mas a linha não resistiu e ficámos sem peixe fresco e sem recursos de pesca.

Estamos quase a chegar ao fim deste périplo pelos espaços atlânticos de um dos maiores portugueses de todos os tempos, senão o maior de todos; a descoberta da grandeza das suas ideias visionárias de missionário e de político, da sua coragem, do seu patriotismo, da sua postura ética, da sua crítica oportuna e contundente aos desvios da sociedade acomodada do seu tempo, foram o resultado do nosso sacrifício e da nossa obstinação ao longo desta viagem difícil. Ainda falta completar detalhes, polir alguns textos, seleccionar imagens, acabar o desenho de mapas e roteiros, mas o essencial do trabalho está feito, missão cumprida.

O CHIC tem 18 anos, não é uma embarcação nova. A viagem foi longa e complicada, as condições de mar massacraram o casco, o mastro e os brandais, perdemos uma vela e uma tempestade tropical deixou marcas bem visíveis da sua violência. Com traquejo e habilidade fomos resolvendo os problemas, sem nunca nos expormos a perigos excessivos.
Também aconteceu o mesmo com Vieira no seu tempo, o que não nos satisfaz, muito menos nos comove.

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27 de Fevereiro de 2008, Oeiras.

Em Abril de 1638 a armada holandesa entrava na Bahia de Todos os Santos comandada por um príncipe de grande e nobre linhagem, Maurício de Nassau, que tinha chegado a Pernambuco no ano anterior, para dirigir os destinos da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Os ocupantes, que tinham consolidado as suas posições no Ceará, tentavam de novo ocupar a cidade de Salvador; fizeram algumas razias pelos engenhos do Recôncavo, tentaram com diplomacia convencer outros senhores de engenho a juntarem-se à sua causa, mas não ousaram atacar a cidade. Uma das posições que ocuparam foi junto à igreja de Santo António, a de além do Carmo e a outra foi também junto a uma outra igreja de Santo António, a da Barra, do lado oposto da cidade; quando os holandeses evacuaram da Bahia, Vieira pregou na igreja da Barra, no dia 13 de Junho, um sermão com sabores de vitória e outro na da Misericórdia em Julho (Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel) festejando a libertação da cidade.

O Conde da Torre, D. Fernando Mascarenhas, era um militar experiente com serviços prestados em África e no Oriente e que viria a organizar mais tarde o exército e a armada depois da Restauração (morreu em 1651). Foi-lhe confiado o comando de uma esquadra mandada ao Brasil por Filipe III para combater os holandeses. Mas no final de 1639 a armada real luso-espanhola tinha sido corrida e derrotada pelos holandeses e refugiara-se na Bahia. Os furores do oceano também massacraram a armada, ao que parece mal organizada e mal apetrechada em homens e em material. Vieira pregou na igreja da Sé, nos primeiros dias de 1640, talvez a 17 de Janeiro, um sermão para reconfortar os ânimos, que publicou como o décimo segundo da série do Rosário. “Que é o que padece o Brasil? Que é o que deseja tão longamente? O que padece é a guerra: o que deseja é a paz. E quando esta, na infelicidade dos sucessos presentes, parece mais desesperada e sem remédio, para exemplo do remédio e para alento da esperança, oportunamente nos representa o Evangelho a diferença de dois reinados imediatamente sucessivos, um tão famoso no que padecemos, outro felicíssimo no que desejamos”.

Pela Páscoa de 1640 a armada holandesa navegava outra vez ao largo da Bahia e desafiava os canhões dos navios do conde da Torre que não ousavam fazer-se ao mar, evitando novos confrontos; os holandeses também não se decidiram a entrar pela barra dentro e tentar mais uma vez a sua sorte. Foi nessa situação crítica que Vieira pregou na igreja da Ajuda, a 11 de Maio, um dos seus mais célebres e ousados sermões, pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda, dirigindo-se ao próprio Deus numa patética investida oratória. “Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que um dia queirais espanhóis e portugueses e que os não acheis.” Entretanto os holandeses abandonaram a estratégia da provocação e recolheram a Pernambuco. A armada luso-espanhola ficou protegida e abrigada na Bahia; o seu lugar seria no mar, defendendo um espaço conquistado e merecido, para cumprir o destino de Portugal. Vieira exortava a nobreza e os soldados nos sermões da Santa Cruz e de Santa Bárbara, mas a vontade de combater e de defender o espaço português e os seus tesouros escondidos não parecia ser uma prioridade daqueles soldados e marinheiros.

Em Julho de 1640 Vieira pregou novo sermão da Visitação de Nossa Senhora, na igreja da Misericórdia, festejando a chegada de um novo governador que exibia o título de vice-rei: D. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão. Se os holandeses tinham um príncipe à frente dos destinos dos territórios ocupados no Brasil, a colónia livre dispunha agora de um vice-rei, muito mais que um simples governador. Vieira associa a chegada do marquês a uma quase vitória sobre o poder holandês, animando os ânimos, mas deixa recados importantes sobre o modo como o Brasil deve ser governado, recados que o recém chegado deve ter ouvido com algum desconforto. “Esta é a causa original das doenças do Brasil, tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos, e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda e o Estado se perde. Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens (…) porque o que se tira do Brasil tira-se ao Brasil; o Brasil o dá, Portugal o leva. (…) Tudo o que der a Bahia para a Bahia há-de ser: tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há-de gastar”. A 6 de Janeiro de 1641 o sermão do Dia de Reis na igreja do colégio da Bahia foi um oratória de acção de Graças pelos 6 meses de governo do marquês de Montalvão, ao qual desta vez o jesuíta não poupou lisonjas. Desconhecia-se então em Salvador que a monarquia portuguesa tinha sido restaurada e que o novo monarca era um descendente da casa de Bragança.

A notícia chegou a Salvador por finais de Janeiro e logo o vice-rei decidiu enviar ao reino o seu filho Fernando, para garantir a D. João IV a sua adesão à nova monarquia; para o acompanhar solicitou dois padres da Companhia de Jesus, Simão de Vasconcelos e aquele que tinha já fama de grande orador, António Vieira. Não era o melhor momento para empreender uma travessia do Atlântico, mas as circunstâncias exigiam um esforço e valia a pena correr esse risco; os holandeses não seriam um perigo neste momento para dois ou três navios a caminho de Portugal, pois até Nassau tinha festejado em Pernambuco e com muita euforia a ocupação do trono português por D. João IV – não fossem os espanhóis seus inimigos de estimação!. Os barcos largaram de Salvador a 27 de Fevereiro para uma travessia invernal do Atlântico, faz hoje mesmo 367 anos.

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28 de Fevereiro de 2008, Peniche.

Vieira desembarcou em Peniche nos últimos dias do mês de Abril de 1641 em condições dramáticas. Naquele tempo eram raríssimos os cais que podiam receber os navios de alto bordo e desembarcar os passageiros através de um portaló e Peniche dispunha apenas de uma grande baía abrigada para permitir um ancoradouro seguro, protegido por uma fortaleza cujo alcaide era o conde de Atouguia, D. Jerónimo de Ataíde, um dos principais actores do enredo da Restauração. Não se sabe quantos navios chegaram, seguramente mais do que um, seriam normalmente três, um navio de alto bordo, do tipo de uma fragata de 40 canhões e mais dois de menor porte servindo de escolta. O vice-rei terá requisitado ao Conde da Torre um dos melhores navios da sua armada de barcos portugueses e espanhóis que estava ancorada na Bahia sob o seu comando, para transportar o filho até junto do rei numa tão significativa e oportuna missão. Portugal não dispunha nessa altura de navios de grande porte; Espanha sim e pelo menos esse navio exibiria as cores de gala e o pavilhão espanhol num momento inoportuno, quando o rei espanhol tudo tentava para destronar o “usurpador” D. João IV.
Peniche
Ancorados os navios, estes comunicaram ao que vinham e o que faziam naquelas paragens. Acontece que os familiares do marquês de Montalvão que governava o Brasil, incluindo a sua esposa que tinha ficado em Portugal, tinham aderido à causa de Filipe III e por essa razão o filho do vice-rei não recebeu as boas-vindas da população de Peniche, antes pelo contrário foi agredido e os padres que o acompanhavam foram molestados. O alcaide não encontrou outra solução senão meter os passageiros na cadeia para os proteger da fúria popular, não conseguindo evitar que o filho do marquês, D. Fernando de Meneses, fosse ferido na cabeça. Não são conhecidos os detalhes dos incidentes, mas sabe-se qual foi o desfecho: no dia 30 de Abril Vieira encontrava-se com o rei em Lisboa para lhe dar conta da sua missão.

Resta-nos a especular por que razão os navios chegaram a Peniche e não a Lisboa. Os biógrafos de Vieira resolveram a questão de uma maneira muito plausível, imaginando uma tempestade invernal do quadrante Sul que os tenha arrastado para umas 50 milhas mais a norte. Pouco provável esta hipótese porque, mesmo em caso de mau tempo, seria sempre mais prudente e mais fácil para aqueles navios entrar pela barra de Lisboa do que ancorar na baía de Peniche. A explicação deve ser outra, se bem que não passe de outra especulação plausível: o navio principal da frota que trazia os padres e o filho do vice-rei seria de bandeira espanhola e o seu comandante, prudente, não entrou pela barra de Lisboa donde o poderiam muito facilmente impedir de sair, porque o Tejo estava muito bem protegido com diversos fortes bem armados. Aquele navio, uma vez engavetado em Lisboa, seria menos um perigo para a frágil monarquia recém restaurada, enquanto que em Peniche, ancorado fora do alcance dos canhões da fortaleza, o comandante espanhol poderia zarpar em qualquer maré para o seu destino sem ter que dar contas a ninguém. O comandante de um navio de guerra não é apenas um navegador, é também e sobretudo um estratega e terá sido essa a estratégia inteligente que adoptou, escolhendo Peniche como ponto de chegada da sua missão, evitando que o seu navio fosse apreendido.

Vieira tinha 33 anos e esta viagem iria mudar por completo o rumo da sua vida. Quando atravessou o oceano pela primeira vez, de Lisboa para Salvador, tinha sete anos e certamente que se recordava daquela outra primeira viagem; o que ele não imaginava era que esta seria apenas a segunda de catorze grandes viagens marítimas que teria que fazer ao longo da sua vida, cumprindo muitas missões impossíveis.

Na sua última grande viagem marítima ele saiu de Lisboa a 27 de Janeiro de 1681 e festejou a bordo os 73 anos. Na mesma frota de navios viajava um grande jurista, mas também poeta infame e irreverente, Gregório de Matos Guerra, o “boca do Inferno”, cujas rimas Vieira reconhecia terem mais impacto no povo que os seus sermões. Para Gregório, Vieira era um “bestianista”, mas quando foi necessário juntarem-se na mesma luta contra a prepotência de um governador indesejado, António de Sousa de Meneses, o célebre Braço de Prata, nenhum deles hesitou em juntar o verbo à acção.

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1 de Março de 2008, Peniche.

Peniche é a última escala deste Cruzeiro Histórico pelo espaço Atlântico das viagens de Vieira; foi o lugar de chegada da sua primeira missão, que mudaria o rumo da sua vida. Quando ele tinha entre dezoito e vinte e um anos viajou de barco de Salvador até Recife e retorno, provavelmente numa embarcação da própria Companhia de Jesus, que dispunha de meios de transporte próprios na colónia. Não era propriamente um novato em termos de viagens marítimas, pois já contava uma primeira travessia do oceano, pelos sete anos de idade, quando emigrou para a colónia do Brasil.

Faltam poucos dias para que Dietmar e eu completemos um ano completo de vida a bordo do CHIC. Nenhum de nós é um novato nestas andanças marítimas, mas o oceano é sempre um desafio imprevisível, mesmo para os mais experientes. O último cais desta viagem está a cerca de 80 milhas, porém os perigos do oceano são sempre os mesmos, quer estejamos no meio da imensidão salgada ou a escassas milhas do destino. Raros foram os desastres e os naufrágios que aconteceram em pleno oceano, a grande maioria deu-se na proximidade das costas, pois o maior perigo para uma embarcação, construída para navegar, é a terra e não a água; a bordo de um barco, os maiores problemas de uma grande travessia não acontecem com o material mas sim com as tripulações. Muitos desastres marítimos da história, que não os das guerras, ficaram a dever-se à incapacidade das tripulações para enfrentarem a situação.
CHIC
O CHIC é um veleiro sólido, rápido e seguro; com 18 anos de idade, regressa ao ponto de partida desta longa viagem com algumas mazelas bem visíveis e outras mais camufladas. Foram muitas as milhas de oceano, mas também muitas as entradas por rios e igarapés, muitas as acostagens em locais difíceis, impróprios para uma embarcação deste género. O casco perdeu muita pintura, os frisos de protecção foram arrancados das suas calhas, os balaústres torcidos, até a poeira de ferro do porto de Itaqui se incrustou no casco, colorindo-o da cor da ferrugem. Quase todos os estais e brandais que sustentam o mastro têm que ser substituídos, os encaixes de fixação dos baixos brandais e do estai de popa terão que ser inteiramente refeitos. As polias do topo do mastro deverão ser substituídas, assim como os cabos das adrissas. A base do mastro necessita um reforço com luva embutida de alumínio, porque apresenta placas de corrosão. Todo o circuito eléctrico terá que ser refeito, o frigorífico deixou de funcionar nas Caraíbas, a bomba de água salgada rendeu a alma nas Bermudas, o forno eléctrico apagou-se nos Açores, a água quente deixou de funcionar com o circuito eléctrico de 220 volts e funciona apenas com o motor em marcha. O comando exterior do motor pifou antes de chegar a Lisboa, a bomba de porão já não dispara com o mecanismo automático, metade dos postigos deixaram de ser estanques. Aqui mesmo, em Peniche, avariou-se o mecanismo de controle de pressão da bomba de água doce. Tem ainda a tampa do porão de proa que perdeu as suas borrachas de vedação, o piloto automático avariou na costa brasileira, o cabrestante da ancora só funciona manualmente e entra água, quando chove ou quando uma vaga cobre o convés, pela fixação das catracas de bombordo. Também entra água pelos tubos do banheiro de proa e o abastecimento do motor faz-se através de um tubo provisório instalado através do buraco que era do indicador de nível. Pelo caminho ficaram todas as defensas que tínhamos levado à partida de Aveiro, umas rebentadas outras roubadas, mas sempre fomos conseguindo outras; o mesmo aconteceu com os cabos de atracagem. A tempestade tropical arrancou-nos antenas, bóias e material de convés. As avarias mais graves que aconteceram ao longo da nossa rota foram as do leme, que reparámos em viagem. Nada disto nos impediu de chegar até aqui e havemos de alcançar o nosso destino sem mais prejuízos.

O material de trabalho, bem acomodado e estivado na cabine de estibordo (boreste), cumpriu a sua missão. O ambiente marítimo é muito nocivo para a aparelhagem electrónica e um ano de trabalho desgasta consideravelmente tudo quanto é câmaras fotográficas, material de vídeo e sobretudo os computadores. O que lhes resta de vida será efémero, mas cumpriram. Perdemos um computador devido à usura provocada pelo ambiente marítimo; uma câmara de vídeo avariou em Salvador, mas foi reparada em São Paulo e aguentou o resto da viagem. Cabos de ligação eléctrica, de portas USB e coisas similares têm os terminais corroídos. O material que perdemos foi o que desapareceu nos assaltos de que fomos vítimas. Os livros fizeram a viagem sem sofrerem demasiado com a humidade.

Tudo isto é perfeitamente normal ao longo de uma grande viagem, cujo sucesso depende muito mais do traquejo da tripulação do que da qualidade da embarcação. Dietmar navegou durante 9 anos em solitário a bordo de um veleiro de 8 metros, pelo Mar do Norte e pelo Mediterrâneo, atravessou o Atlântico por duas vezes, cruzou ao longo da costa africana. Eu contabilizei neste regresso do Brasil a minha 14ª travessia do Atlântico e este foi o veleiro mais pequeno que alguma vez comandei. Nunca, mesmo nos momentos mais difíceis da tempestade tropical e dos temporais do regresso, quando tivemos as avarias graves do leme, nunca estivemos em situação de perigo nem o pânico se instalou a bordo. Na viagem de ida como na de regresso tínhamos como companheiros dois tripulantes sem grande experiência oceânica. Cumpriram as suas tarefas a bordo, melhorando cada dia o seu desempenho e aprendendo durante estes meses de travessia muitos segredos da sobrevivência no oceano.

Porém, o mais importante desta viagem não foi o percurso marítimo, nem a arte de velejar, nem a história de uma rota equivalente a meia volta ao mundo; não foram essas proezas que alimentaram este Diário de Bordo desde há um ano. Fiel aos objectivos traçados nas primeiras linhas deste texto, este Diário vai terminar como começou: exercício de comunicação, partilha de emoções, divulgação de valores próprios à nossa identidade, descoberta da dimensão global das ideias do padre António Vieira, uma reflexão sobre cidadania no contexto da realidade cultural portuguesa, sem esconder as verdades nem camuflar as frustrações que rechearam o nosso quotidiano ao longo do espaço e do tempo desta viagem muito difícil e por demais complicada.

No mesmo dia em que chegámos a esta última escala do roteiro de Vieira, os meios de comunicação social anunciavam que o nível de confiança dos portugueses estava no ponto mais baixo de sempre; hoje, neste mesmo momento em que escrevo estas linhas, a rádio estende-se em comentários sobre esta mazela crónica. Tais inquéritos e avaliações não se faziam nem se comunicavam no tempo de Vieira, mas ele estava consciente como ninguém das misérias que afectavam o reino, muito similares às de hoje. Em vez de se lamentar e de as contemplar ele teve a coragem de propor aos seus compatriotas o projecto de um espaço global ao jeito e ao gosto dos portugueses, na qualidade dos quais ele acreditava, até porque a história do futuro de Portugal estava escrita nos textos dos profetas: o Quinto Império.

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2 de Março de 2008, Peniche.

Ontem foi dia de pagar promessa. Cumpridas as obrigações com os nossos anfitriões rumámos por via terrestre até Nazaré, ao encontro das raízes culturais e religiosas do maior evento de Belém do Pará, o Círio de Nazaré (Diário, 13 e 14 de Outubro), como prometido na cidade das mangueiras aos nossos compatriotas do Grémio Literário e Recreativo Português. Foi nosso guia José Manuel Lourenço, director do jornal quinzenal Correio Popular, nascido em Angola com muitos anos de Brasil. Antes passámos pelo santuário de Nossa Senhora dos Remédios, um antiquíssimo lugar de peregrinação, do tempo em que Peniche era uma ilha, nos primórdios da nacionalidade. Chamavam-se os “círios”, os movimentos de peregrinos que se deslocavam até aos locais onde o imaginário colectivo tinha criado enredos de devoção. Numa gruta cavada nos pedregulhos do Cabo Carvoeiro apareceu uma imagem milagrosa de Nossa Senhora dos Remédios, à volta da qual, ao longo dos anos, se foram acrescentando paredes, enfeitadas com azulejos e adornos de talha dourada, graças à generosidade dos peregrinos.
Sra da Nazaré
Mais antiga é a história da Senhora da Nazaré, uma imagem da mãe de Jesus, saciando com o seu seio generoso a boca gulosa do bebé Salvador, também ela encontrada numa gruta por um monge de nome Frei Romano, que a deu a conhecer ao rei visigodo Rodrigo, vencido pelos exércitos muçulmanos na batalha de Guadalete em 711, chegado a estas paragens foragido e arrependido dos seus pecados. O almirante da frota do primeiro rei de Portugal, D. Fuas Roupinho, terá sido milagrosamente salvo da morte pela Senhora da Nazaré, quando uma caçada ao veado se transformou numa armadilha diabólica para o matar. Na pederneira onde o seu cavalo firmou os posteriores o nobre personagem mandou construir uma ermida que logo se transformou num destino de “círio”, por muitos e muitos anos. No século XVII a devoção à Senhora da Nazaré tinha-se estendido por todo o país e perto da ermida original elevava-se uma igreja que daria lugar, no século XVIII a um imponente templo religioso.

A cidade de Nossa Senhora de Belém, ou simplesmente “cidade do Pará”, como lhe chamava Vieira, teve como padroeira desde a sua fundação, em 1616, Nossa Senhora da Nazaré. A procissão do Círio começou no final do século XVIII e transformou-se ao longo dos anos no mais espectacular evento cultural e religioso de todo o Brasil. O pudor dos crentes afeiçoou a imagem às exigências da mentalidade dos peregrinos e o bebé deixou de mamar para olhar para os devotos com um ar saciado e sereno de menino mais crescido. É essa imagem, com seu manto de seda bordado cada ano do mais precioso fio de ouro entremeado de pedrarias, que preside ao Círio da cidade de Belém. Na Nazaré encontramos ainda as duas imagens, as da amamentação anteriores ao século XV e as posteriores, com o menino bem acordado, olhando com ar interessado para quem o venera.

Depois veio a surpresa: a nossa visita demorou cerca de três horas, tempo mais que suficiente para que a viatura, estacionada a escassos metros da praça principal e da grande igreja de Nossa Senhora da Nazaré, fosse arrombada e esvaziada de tudo quanto lá dentro tinha algum valor. O maior de todos os prejuízos foi o computador com todo o seu conteúdo armazenado, valor irreparável e incalculável. Na esquadra da polícia, o oficial de serviço nem sequer nos deixou a mínima esperança de recuperação de tão precioso instrumento de trabalho: são bandos organizados com métodos sofisticados de intervenção, contra os quais a polícia não dispõe de meios. Dia de Sábado com temperatura agradável, os primeiros visitantes acorrem aos locais turísticos e os predadores seguem com sucesso os trilhos da caça.

Tínhamos sido assaltados por três vezes durante a nossa viagem, em países onde normalmente existem assaltos, o que não nos acomoda com a ideia de sermos roubados; por isso tomamos sempre maiores precauções, sem todavia conseguirmos escapar às técnicas ousadas dos assaltantes. Consumado o acto apenas nos consolamos com a ideia de nos terem deixado a vida, para podermos partilhar a frustração das outras vítimas. Mas sermos assaltados ao chegar a casa, num país de brandos costumes e de gente piedosa, não dá para acreditar. Talvez as coisas tenham mudado tanto durante a nossa ausência que tenhamos que nos reciclar para podermos viver por mais algum tempo neste país anacrónico, onde a globalização do crime chegou antes da alfabetização global. Por várias ocasiões já tinha pensado nisso, não a propósito dos assaltos mas da postura ética de alguns dos nossos interlocutores. Depois de termos vivido um ano a bordo de um veleiro, vamos ter que rever a nossa postura e a nossa identidade, como qualquer peregrino depois de uma longa caminhada, de um sofrido círio.

Cumprimos a nossa promessa sem pedirmos nenhum milagre, mas bem precisaríamos que a Senhora da Nazaré nos fizesse o que fez por D. Fuas: livrar-nos da malvadez do diabo.

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3 de Março de 2008, Peniche.

Quando eu era pequeno, criança que calçava tamancos para ir à escola, havia muitos pobres que pediam esmola palas casas. Vinham uma vez por semana, eram de todas as idades, velhos agarrados a um cajado tosco, cegos e estropiados, jovens mães adolescentes com bebés ao colo e irmãos mais novos pela mão, mulheres idosas derreadas pelo peso de uma existência precária; tinham dia certo para entrar pelos pátios das casas e rezar nos quinteiros por alma de quem de lá já tinha zarpado para sempre. A primeira vez que eu vi os seios de uma mulher foi quando uma jovem mãe, desesperada, com um bebé ao colo, para despertar a piedade, abriu a blusa e mostrou os seios vazios, sem leite, caídos como folhas murchas sobre as costelas salientes.

O espectáculo era mais triste de Inverno, quando eles tremiam de frio e de fome e eu me aconchegava num cesto de caruma colado à lareira, alimentando o lume e a fumaça que curava os enchidos, com achas verdes e gravetos secos. Os pobres rezavam lá fora e muitas vezes a minha mãe, em maré de mau génio, deixava-me o aviso: “Não abras a porta”. Mas os pobres rezavam ainda mais alto porque sabiam que havia gente em casa. Minha avó, depois de enviuvar, nunca mais teve alegria, nunca mais cantou nem falou com os vizinhos, nunca mais rezou o terço em voz alta; vivia num mundo secreto que era só dela, dentro do espaço fechado da casa de lavoura, cuidando das couves da horta, do seu poleiro, das suas coelhas parideiras. Sentava-se num mocho centenário ao pé da lareira, e fiava lã para o tear da minha mãe.

“Não abras a porta”, insistia a mãe. A avó olhava para mim e levantava-se. Abria a caixa onde eu mergulhava as duas mãos e ela, com a sua mão grande de mulher lavradeira, metia dois punhados de feijão no avental. Os pobres já rezavam muito alto quando se abria a porta e o rosto dela iluminava-se de um fulgor de juventude, com seus caracóis de cabelos brancos escapando do lenço negro, seus lábios finos estremecendo como se voltassem a cantar, seus olhos maliciosos brilhando de tanta bondade. Quando eles saíam pelo pátio apressados, rumo à próxima casa, ajeitando as esmolas nas sacolas, sempre a rezar por almas desconhecidas, contentes das côdeas e dos feijões que lhes aconchegariam o estômago, a minha avó olhava para mim com uma infinita ternura e não dizia nada. Voltava a sentar-se no mocho, enfiava a roca na cintura e o fuso cantava nos seus dedos.

Na minha cabeça de criança pequena calçada de tamancos os pobres de pedir eram seres maravilhosos que expiavam os pecados de todos os homens e deixavam no quintal, debaixo da parreira, aquela fragrância de santidade que iluminava o rosto triste da avó e lhe devolvia naqueles momentos sublimes a beleza de uma perpétua juventude. Anos mais tarde eu voltei a casa vindo de países distantes onde tinha encontrado aconchego enquanto crescia sem tino. A avó tinha falecido e os pobres não eram os mesmos, já não rezavam, não queriam mais pão nem feijões, pediam dinheiro. Não eram os mesmos pobres dos meus tempos de criança, eram apenas mendigos que não inspiravam piedade e deixavam atrás deles o cheiro estranho da revolta que lhes corroía a alma e esvaziava o corpo. Só a fome era a mesma e o frio mais terrível. “Não abras a porta”, acautelava ainda a minha mãe, que herdara aqueles inesquecíveis cabelos brancos. As caixas de milho e feijão estavam vazias, não se lavravam mais as terras nem se cozia pão em casa. Nunca pensei que um dia pudesse ser eu a ter fome, mas aconteceu.
peniche
Amanhã, esta viagem pelos caminhos de Vieira, com os seus tormentos e as suas euforias, se o vento e o mar o permitirem, chega ao fim. Cada um de nós, criaturas humanas, terá que acertar contas com o seu destino, mais tarde ou mais cedo: “e quanta gente bem nascida se verá naquele dia mal ressuscitada!” – dizia Vieira do alto do púlpito. Enquanto esperamos o aconchego do derradeiro cais, partilhamos com todos os crentes no Deus de Abraão a esperança numa justiça que não contempla a avaliação dos pequenos percalços dos dias de raiva. Só o Anjo da Justiça, criado antes de todas as demais criaturas para as juntar num só momento e num só espaço no dia da Grande Misericórdia, saberá apontar a rota da efémera eternidade de cada nome e a luz que saciará todas as fomes e todos os desejos.

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4 de Março de 2008, Peniche.

Há exactamente um ano, estávamos a duas semana da partida e a página deste Diário de Bordo terminava assim: (Vieira) merece também o perigo e o fascínio de um oceano inteiro, há muito descoberto, mas sempre um desafio para os peregrinos do tempo. Chegámos a mais um cais da nossa história de peregrinos da vida, cumprindo os objectivos traçados, por entre perigos e fascínios. O desafio valeu a pena só por termos chegado, contra todas as expectativas e apesar de todas as pedras que a invejosa malvadez dos homens despejou ao longo da nossa rota. Chegamos feridos, vulneráveis, sem festa nem arraial, na intimidade da nossa satisfação que não partilhamos com ninguém. Mais tarde haverá porventura razões para festejar e partilhar outras colheitas, mas agora não, queremos ficar sozinhos, curtindo a nossa humilde e silenciosa vaidade. Foi um oceano inteiro de ventanias, de tempestades violentas, numa travessia invernal que pôs à prova coragem, resistência e traquejo, coisas só nossas, dos nossos medos, das nossas preces, das nossas incertezas. Precisamos de tempo para nos habituarmos de novo a pisar a terra, cheirar-lhe os vícios, medir-lhe a aparente serenidade.

sítios remotos

A viagem não terminou, mas este é o derradeiro espaço das andanças Atlânticas de Vieira; o temporal obriga-nos a ficar ao abrigo, as gaivotas refugiaram-se em terra. Em Aveiro, donde largámos, não é ainda tempo do junco em flor mas já nascem os poldros e as andorinhas não vão tardar. As cegonhas e os flamingos ficaram por lá, parece que o Inverno foi suave, os maçaricos catam na lama da maré baixa e as tarambolas na orla dos juncais. Tudo parece como dantes, nesta paisagem melancólica de areias, de lamas e de vento, só nós é que estranhamos a quietude do cais, como se tivéssemos esvaziado dos nossos alforges ambições e paixões, sacudido o pó das alpercatas e adormecido no silêncio da memória atordoada.

Vamos precisar de tempo, Dietmar e eu, para medirmos quanto realmente conseguimos fazer durante este ano sofrido das nossas vidas e os companheiros que partilharam connosco meses de trabalho também. Luís esteve a bordo 7 meses, João e Rafael 4 meses, Jaime e Henrique 3 meses. Quetzal acompanhou-nos durante 7 meses e já se despediu da vida para farejar os canteiros das estrelas. Amanhã vai nascer o primeiro dia do resto das nossas vidas.
Qué Qué
Pelo longo roteiro desta viagem encontrámos paisagens deslumbrantes, no mar como na terra, florestas e desertos, bichos de todas as espécies, raças e cores, grandes cidades e aldeias remotas, e sobretudo seres humanos maravilhosos com quem partilhámos as nossas paixões e o nosso vinho. Nos momentos mais difíceis apareceram como por milagre os que aliviaram o nosso sofrimento e contribuíram para que a viagem chegasse ao fim. Valeu a pena percorrer estes espaços de um dos maiores portugueses de sempre, para melhor entendermos a sua mensagem, para dar a conhecer a todos quantos hoje se apaixonam pela nossa língua a grandeza inimitável do seu poder de crítica construtiva, do seu patriotismo, da sua visão optimista de um futuro grandioso para todos os que falam português, o que tarda a acontecer.

Antes de tudo Vieira foi um missionário, um crente em Deus que levou a todos os terreiros dos seus passos a mensagem inequívoca da sua fé, da sua visão cristã do mundo e da história, sem se confinar nos limites do tradicionalismo e do fanatismo que caracterizavam o pensamento religioso da época no nosso país. Visionário, patriota e profeta, ele apontou para um mundo novo cheio de promessas e de uma dimensão jamais imaginada, guardando para Portugal um lugar à parte na globalização que só ele vislumbrava, prometida e profetizada.

O discurso de Vieira é de uma actualidade contundente: os mesmos pecados do seu tempo corroem a sociedade dos nossos dias, tolhendo as suas capacidades de enfrentar a liderança do futuro. Falta aos portugueses e brasileiros de hoje, enquanto colectividades diferenciadas do resto das culturas do planeta, um perfil produtivo e um perfil ético próprios para construírem uma cidadania, sem abdicarem daquilo que faz deles uma cultura original e única pela suas raízes genéticas, pela variedade dos valores culturais assimilados, pelo tremendo poder de criatividade, pelo futuro que só os génios conseguem enxergar, sem abdicarem da sua identidade. Falta-nos hoje um pregador como Vieira. Nasceu há 400 anos e no primeiro sermão que pregou na Europa, a 1 de Janeiro de 1642, na capela real, prometia ao seu Rei muito mais do que a continuidade de um trono restaurado: um Império, por vontade de Deus. Foram muitas as pedras que teve pelo seu caminho, mas nunca abdicou, nunca desistiu de apontar aos seus compatriotas o rumo certo, oculto mas traçado nos textos dos profetas.

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31 de Março de 2008, Ria de Aveiro.

A única carta que o padre António Vieira escreveu a uma comunidade judaica foi a que enviou aos judeus de Ruão a 20 de Abril de 1646, 2 dias depois de ter chegado a Haia, na sua 3ª grande viagem, a primeira ao serviço de D. João IV. Encontrara-se pessoalmente com a comunidade judaica daquela cidade semanas antes, solicitando créditos para comprar navios na Holanda.

Três anos antes ele tinha apresentado ao rei um texto de sua lavra em que defendia o regresso ao reino dos judeus portugueses da diáspora, como medida para acudir ao miserável estado do reino, texto que acabou nas mãos do Tribunal do Santo Ofício. O primeiro objectivo das propostas de Vieira era de ordem prática: o reino precisava do dinheiro e do dinamismo produtivo da comunidade judaica, que abandonara o país por causa das perseguições. O outro objectivo era de ordem ideológica: ele defendia a tolerância religiosa, sem abandonar a sua convicção de que a verdadeira e única religião era o catolicismo romano, à qual no futuro todos os homens adeririam. A sinceridade do padre não deixa dúvidas: “não é justo faça divisões a pena onde não reconhece diferença o coração”. E acrescenta: “até agora o persuadia (ao rei) com argumentos do discurso e daqui por diante o poderei fazer com experiências de vista”. Também reconhece que não será tarefa fácil, mas considera-se capaz de a levar a cabo: “As coisas grandes não se acabam de repente; hão mister de tempo e todas têm seu tempo. O desta parece que é chegado”… O diplomata confiava no rei que servia e no apoio do soberano às suas ideias; sempre foi um optimista, mas media mal a força dos poderes clandestinos que minavam o reino. No dia 15 de Dezembro de 1647, num auto-da-fé em Lisboa foi queimado vivo um cristão-novo chamado José de Lis (Isaac de Castro), negociante muito conhecido em Antuérpia, Amsterdão e Hamburgo, membro da comunidade judaica de Ruão. Vieira estava na Holanda pela segunda vez, metido em negócios complicados e quando soube do acontecido e da prisão de outros cristãos-novos em Portugal ficou desolado e furioso.

Naquele mesmo ano de 1646, o rabino da sinagoga da cidade de Recife, Kahal zur Israel (O rochedo de Israel), Isaac Aboab da Fonseca, publicava um livro de poemas bíblicos intitulado Memorial aos Milagres de Deus. Nascido em Castro Daire em 1605, refugiou-se com a família em Amsterdão com cerca de 8 anos e viajou para o Brasil em 1642, no tempo de João Maurício de Nassau. Um primeiro texto de Vieira foi traduzido para flamengo em 1646, o Sermão dos Bons Anos, pregado na capela real a 1 de Janeiro de 1642, onde ele se desliga definitivamente das ideias sebastianistas que um dia o seduziram e formula a sua primeira visão da história do futuro do reino de Portugal, “vencendo e sujeitando todas as partes do mundo a um só império, para todas em uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos pés do sucessor de São Pedro. Assim o contam as profecias”… Conforme às profecias era aquela promessa feita a D. Afonso Henriques, divulgada pelo cronista Duarte Galvão. Nascia assim a grande ambição de toda a vida de Vieira: interpretar os profetas para escrever a História do Futuro, tarefa que iniciou em 1649, mas que nunca levaria a cabo.

Nos seus poemas publicados em Recife em 1646, Isaac da Fonseca comentava um texto do profeta Ezequiel que diz assim: “Eu irei buscar os filhos de Israel dispersos pelas nações onde se refugiaram, juntá-los-ei a todos para trazê-los de volta à sua terra; farei deles uma só nação na terra, sobre os montes de Israel, e haverá um só rei que reinará sobre todos eles. E nunca mais haverá duas nações nem dois reinos no futuro. Não se contaminarão mais com ídolos, nem com abominações, nem com todos os pecados; tirá-los-ei salvos de todos os lugares onde pecaram e purificá-los-ei. Eles voltarão a ser o meu povo e Eu o seu Deus. Um descendente do meu servo David reinará sobre eles e haverá para todos um só pastor; todos observarão as minhas leis, guardarão os meus preceitos e praticarão os mesmos cultos.” (Ezequiel, 37, 21-24) Este mesmo texto foi citado e comentado inúmeras vezes por Vieira, até teve que o explicar em detalhe ao tribunal que o condenaria pela defesa dos judeus e da liberdade religiosa.

Quando o amigo do rei estava pela segunda vez na Holanda, o estado do reino era ainda mais miserável e complicado do que antes, ao ponto de ser considerada a hipótese de ter que se vender aos holandeses um pedaço dos mais valiosos do domínio português no Brasil, Pernambuco. Vieira encontrou-se por várias vezes em 1648 com o rabino da comunidade judaica de Amsterdão, Manassés Ben Israel, um português nascido na ilha da Madeira com o nome cristão de Manuel Dias Soeiro, também ele autor de um livro de poesias (Livro do Sopro da Vida), mas sobretudo de um outro livro intitulado Esperanças de Israel, onde, baseado nas mesmas profecias comentadas por Vieira e Isaac da Fonseca, ele discorre sobre a história do futuro. Anos mais tarde, em 1659, quando o missionário Vieira escreve, “navegando numa canoa pelo rio das Amazonas”, uma carta de consolação à rainha viúva, intitula essa carta Esperanças de Portugal.

Em 1653 Vieira chegava, contrariado, às missões do Maranhão e Isaac da Fonseca regressava à Holanda no ano seguinte, também contrariado, no momento da rendição dos Holandeses em Pernambuco. Em 1660 o antigo rabino de Recife sucedia a Manassés ben Israel à frente de comunidade judaica de Amsterdão e Vieira era preso e expulso das suas missões no ano seguinte. Isaac da Fonseca morreu em Amsterdão em 1693 com 88 anos, deixando para a posteridade o seu nome ligado à construção, naquela cidade, do mais célebre templo judaico do mundo depois do de Jerusalém, a Sinagoga Portuguesa; Vieira morreu em Salvador da Bahia em 1697 com 89 anos, deixando para a posteridade a mais poderosa visão do futuro que jamais saiu da mente de um génio, a da Globalização. Estes dois líderes carismáticos pisaram os mesmos terreiros, defenderam as mesmas ideias, mas nunca se encontraram.

A comunidade judaica de Ruão é muito antiga; por debaixo do Palácio de Justiça da cidade foi encontrada uma construção do tempo dos Romanos que parece ter sido uma sinagoga ou uma escola hebraica. Ao longo dos séculos a comunidade teve os seus altos e baixos, o pior momento terá sido o da expulsão dos judeus de França em 1394, por Carlos VI, o rei bem-amado que enlouqueceu, castigo de Deus pela decisão iníqua. Nos séculos XVI e XVII a França foi um dos destinos dos judeus portugueses expulsos do reino ou foragidos das perseguições da Inquisição: Bordéus, Tolosa e Ruão foram os principais destinos. No século XX, os judeus de Ruão foram deportados durante a ocupação alemã e a maioria deles nunca mais voltou. Depois da independência de Marrocos, Tunísia e Argélia, nos anos 50 e 60, muitos judeus sefarditas, originários de Espanha e Portugal, imigraram para França, onde fizeram crescer as comunidades locais, entre as quais a de Ruão. Os judeus de origem portuguesa ainda hoje são recordados pela comunidade judaica local com carinho e admiração. Existe na cidade uma Rua dos Judeus, próxima do Palácio de Justiça e uma Sinagoga moderna situada na Rue des Bons Enfants. Do tempo da passagem de Vieira não resta nada.

Publicado por A de Abreu Freire
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