CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA

01 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
14 54' 00”N, 23 25' 00”W

Está à vista a cidade da Praia, neste final de tarde calma e serena. Soubemos pelo VHF que está à nossa espera no cais um grupo de amigos de longa data e uma outra equipa que não nos conhece de sítio algum mas tem curiosidade em conhecer-nos. E como é Domingo, sobra-lhes tempo para dar uma volta pelo cais. Os nossos amigos são o Reitor e alguns professores da Universidade Jean Piaget e a outra equipa é a de um grupo de investigadores da Universidade de Cambridge, chegados na Sexta-feira passada para uma tarefa semelhante à nossa e que durará uma semana: eles estão a estudar O Roteiro dos Jesuítas, enquanto nós estamos a estudar o de um deles. O local de trabalho é o mesmo: a cidade velha da Ribeira Grande. Simples coincidência, talvez, mas que define o interesse de uma das mais prestigiosas instituições académicas do mundo pela temática e pelos meios utilizados: um trabalho de campo. Afinal, as minhas propostas só são originais e avançadas num país onde o verbete “imaginação” se evadiu dos dicionários. Vamos certamente dispor de uma oportunidade única para compararmos os nossos métodos e os nossos objectivos.

 

02 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

Mais uma surpresa esta manhã! Chegou um barco da National Geographic Society com um grupo de pessoas que vem visitar e estudar a Cidade Velha durante esta semana. Mais uma coincidência vantajosa e mais um sinal do interesse das mais conceituadas instituições do mundo pelos espaços que estamos a estudar, espaços esses que são a matéria prima da nossa identidade cultural. Agora começa o nosso trabalho a sério, que partilharemos convosco.

Também é séria a reparação que temos a fazer no nosso leme, o que faz parte do nosso dia-a-dia. Entretanto, como não pescámos nada pelo caminho, o Jaime e o Luís foram à lota comprar o primeiro almoço em terras de Cabo Verde. Imaginem só o que vai ser o menu!

 

03 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

A manhã de hoje foi dedicada à preparação das filmagens na Cidade Velha e parte da tarde à manutenção do veleiro e às necessárias reparações para a continuação da viagem: o mecanismo do leme e os buracos na vela grande. Falta de tela da mesma cor, fica um remendo chapado de azul no topo da vela. Daqui até à Bahia não devemos ter muitos encontros que nos envergonhem; se ainda houver ventania a pobre da vela vai chegar em frangalhos, e não será mais utilizável. Foi muito vento e muito mar nesta primeira etapa para uma vela grande já um tanto cansada de muitas borrascas. A genoa, nova, aguentou sem gemer todo o vento que lhe passou pelas costuras e suportou sozinha os dois últimos dias, toda desenrolada, com a escota reforçada, puxando-nos a uma média real de 7,6 nós. Contando com os ziguezagues provocados pela eficácia relativa do leme de socorro, devemos ter feito mais uns 10% da distância real da contagem do GPS, o que nos dá uma média superior a 8 nós, um grande desempenho numa viagem oceânica para um barquinho de 14 metros! Substituído o cabo de aço do quadrante do leme devemos ter governo à roda sem outros sobressaltos. Foi um trabalho muito duro, executado em posição deitada num espaço exíguo, onde tudo está besuntado com graxa consistente que nos cai aos pedaços gelatinosos na cara e nos olhos. As mãos lubrificadas deixam escapar as alfaias que exigem um contorcionismo de circo para serem recuperadas. E é nesse preciso momento que chegam a RTP África e a Agência Lusa para relatarem o que estamos ali a fazer!

Foi trabalho meu e do Jaime, enquanto o Luís se ocupava das câmaras, dos contactos e do planejamento das deslocações de amanhã para a Cidade Velha. Uma ajuda preciosa veio-nos do professor Francisco Weil, mais um brasileiro do Pará que assentou arraiais em Cabo Verde onde ensina realização cinematográfica na Universidade Jean Piaget. Chega esta tarde de Portugal o professor Sério Fernandes, que nos acompanhará nas filmagens. Mas antes de mais teremos esta noite, promovido pela secção cultural da Embaixada de Portugal, um encontro com a intelectualidade caboverdiana da Praia, cujo programa nos escapa pelo momento, apenas sabemos que terá como desfecho, oferecido por alguém, um churrasco do melhor atum destas águas. Naquelas cartas ao seu confrade o bispo eleito do Japão, ao príncipe D. Teodósio e ao provincial do Brasil, Vieira não menciona o que comeu em Cabo Verde; farto de estar no mar a comer biscoitos duros cozidos duas vezes (bis-cozido) não deve ter desprezado um petisco generoso oferecido pelos pescadores. Sabia para onde ia e o que o esperava do outro lado do oceano: tudo menos facilidades, mas estava conformado… um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil, e, enquanto lá houver algodão e tijucos, também não nos faltará de que fazer uma roupeta da Companhia. (Carta ao provincial da companhia de 14 de Novembro de 1652, uma semana antes de embarcar)

 

04 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

Cabo Verde surpreende-me. Estive aqui uns tempos em 1998 e em 1999, fiz escala rapidamente duas vezes em 2000 e fiquei com aquelas impressões de um forasteiro que passa, vê e faz uma opinião enfeitada de imagens. Entretanto passaram-se sete anos e as coisas mudaram muito. Vêem-se ainda, na periferia da cidade, as cabras e as vacas a comer sacos de papel e quantidade de cães vadios a desventrar contentores de lixo; pelas encostas multiplicam-se ainda os dejectos arremessados sem tino e os plásticos do consumismo das massas, matéria poluente da pobreza e de uma cidadania precária. Vêem-se pobres que lutam por um naco de pão, chegam à beira de nós com uma panela preta e amolgada de tanto fogo, cheia de pedaços do peixe que o mercado rejeitou e mendigam umas gotas de óleo para cozinhar a ceia. Mas eu não vejo miséria, não encontro aquela atitude de submissão a um destino implacável estampada no corpo dos indigentes que estendem a mão mas nem sequer olham para a cara de quem passa. As casas em perpétuo estado de construção inacabada que caracterizavam a cidade estão hoje rebocadas e pintadas, as ruas asseadas, as praças acolhedoras e apinhadas de gente que recebe os forasteiros com sorriso e orgulho.

Hoje esteve no nosso barco o Carlos, um jovem de uns 25 anos a verificar o circuito eléctrico do CHIC, que nos causava alguma preocupação por causa da carga das baterias que alimentam o sistema de iluminação; um profissional competente e simpático que em poucos minutos detectou a falha que nos provocava fortes perdas de energia. Surpreendeu-nos o seu interesse pelo nosso equipamento electrónico, os computadores, as impressoras e as máquinas de filmar de bordo. Explicou-nos que tudo aquilo que sabe aprendeu com um mestre com quem trabalha desde os 12 anos de idade e que a sua grande ambição seria de frequentar uma escola onde pudesse aprender tudo aquilo que precisa para ser o melhor dos melhores em electricidade e electrónica. Apareceram também dois irmãos da Libéria, de 18 e 20 anos, fugidos da guerra e de perseguições étnicas, que jogavam futebol num clube da principal liga do país, onde jogara o Weah, ao que parece, pedindo que os levássemos connosco para qualquer sítio do mundo onde pudessem jogar futebol. Trouxeram uma bola e exibiram-se no cais diante de nós.

Eu gostaria de estar vivo daqui por uns dez anos e voltar a encontrar estes jovens, saber o que será feito deles, como vão realizar os seus sonhos e levar o corpo à festa por esses caminhos cheios de pedras, por esses relvados cheios de sonhos. Mas a minha sina, escrita nas linhas da palma da mão, manda que eu pense em partir deste cais e deixar por conta estas caras lindas de olhos tão puros e cheios de esperança, despejando tanta energia e poder vital que nos confunde e nos aponta o destino traçado pelo criador: a vida nasce da separação e da ruptura, explode em desejos e em sonhos, antes de se dividir em parcelas de poeira fértil, a poeira das estrelas. O resto é silêncio e obstinação.

 

05 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

Preparar e realizar uma viagem como a nossa, no âmbito do país e das mentalidades que decoram a nossa tradicional pequenez, é assinar uma carta de crédito irrevocável com a loucura. Não fosse a satisfação de encontrar pelo caminho e longe das nossas hortas quem fale a mesma linguagem e enxergue os nossos objectivos, todo este esforço seria um puro exercício de masochismo. Mas felizmente que há quem saiba reconhecer o valor das coisas, pena que sejam os outros. Aqui, em Cabo Verde, descobrimos muito mais do que pensávamos encontrar. Não filmámos apenas pedaços significativos do património edificado da antiga capital da ilha, que existia naquele Natal de 52, quando Vieira por aqui passou; a fortaleza de São Filipe devia ter a aparência que tem hoje depois de restaurada e será este o edifício completo mais significativo que subsiste desse tempo. O vale continua a ser um oásis de verdura sustentada por um fio de água, na aridez que o comprime. A baía continua a oferecer um ancoradouro seguro e um abrigo acolhedor para as embarcações de pesca. Tem muitas crianças espreitando com curiosidade todos os nossos passos; grupos de alunos das escolas de outras ilhas vieram acampar aqui nas férias da Páscoa. Vieram dormir com o passado, para engendrarem o futuro.

Nesta aldeia emblemática, que teima em continuar a chamar-se cidade, os caboverdianos encontram a sua identidade. Este pedaço de chão é sagrado e sagradas são as ruínas que preservam a memória. O entreposto de escravos foi a grande porta de entrada de um potencial genético diversificado e um ponto de apoio para uma explosão cultural: esse é o património que chama à Cidade Velha intelectuais como os da Universidade de Cambridge e forasteiros como os da National Geographic Society. Eles interessam-se pelos vestígios físicos da implantação do cristianismo nos trópicos, pelos roteiros dos missionários, pela expansão e complexidade das culturas que utilizam como língua o português. Nós partilhamos com eles as emoções deste encontro com as nossas memórias mais sagradas; esta é para nós a evasão da loucura, o nosso encontro com uma dimensão até agora desconhecida da cidadania e um bálsamo ao nosso sofrimento.

A escala na Praia será mais demorada do que previsto, não tanto pelos problemas técnicos e complicados da reparação da avaria do leme, que ainda não está concluída, como sobretudo pela quantidade de material que pretendemos recolher. Vamos também percorrer os caminhos de Charles Darwin pelas aldeias de São Domingos e de Pontes, para depois compararmos o discurso do jesuíta com o do naturalista e tencionamos colher as imagens do túmulo de um aveirense que foi bispo desta diocese de 1612 a 1614, D. Frei Sebastião da Ascenção, da ordem dos pregadores. Antes de tomar posse da diocese ele mandou construir uma capela na sua terra natal, uma aldeia de moleiros e pastores hoje desaparecida, entre Estarreja e Pinheiro da Bemposta. As gentes do vale do Antuã festejam a Senhora da Ribeira a 15 de Agosto, nas margens de um rego de água a que chamam a ribeira dos Covais. A capela, de estrutura sólida, com portas e janelas bordadas a pedra de Ançã, assim como os degraus, o altar e as imagens, é dedicada a Nossa Senhora da Ascenção e resiste ao tempo; a imagem principal é da autoria de mestre Jean de Rouen, o mesmo da primeira torre da Universidade de Coimbra e o pequeno templo tem data na fachada, 1611 - lampejo de requinte na paisagem agreste.

Desconhece-se a data de nascimento e o seu nome de baptismo terá sido Sebastião da Costa de Andrade; talvez o pai se chamasse André e terá morrido na desastrosa brincadeira de Alcácer-Quibir ou talvez não; a mãe, viúva, era pastora por aquelas bandas, seu único sustento e tinha feito a promessa de edificar uma capelinha a Nossa Senhora. Amparado por alguém, o jovem ingressou na ordem dominicana com o nome de Frei Sebastião da Ascensão e teve a oportunidade de exibir o seu saber e a sua arte oratória na presença do rei Filipe (II de Portugal), por terras de Espanha; uma irmã mais nova seguiu uma rota paralela e ingressou na mesma ordem feminina com o nome de Sóror Catarina dos Mártires. A mãe pastora nunca teria podido cumprir a promessa. Frei Sebastião foi nomeado Bispo de uma das maiores dioceses do mundo de então, de Cabo Verde e Guiné, criada em 1533 e que se estendia da Gâmbia até à Costa do Marfim; antes de partir, em 1611, voltou à aldeia onde a mãe não o reconheceu e até lhe recusou guarida por não ter tecto condigno e tão somente um punhado de farinha e leite de cabra.

O bispo cumpriu a promessa da mãe, retirou-a da indigência, instalou-a num convento e seguiu em 1612 para o seu destino. Antes de partir ainda exibiu a sua oratória em Autos da Fé por duas vezes: uma em Lisboa, na Ribeira, a 31 de Julho de 1611, quando foram queimados 11 homens e outra no adro da Sé de Évora, a 19 de Fevereiro de 1612, quando foram queimados um homem e uma mulher. Outros tempos, outras loucuras. No meio das ruínas da Cidade Velha tem uma campa rasa com uma inscrição que diz assim: “Aqui jaz D. Frei Sebastião da Ascensão, sétimo bispo destas ilhas e que faleceu em 18 de Março de 1614”. Na tradição popular do Vale do Antuã é conhecido como o Bispo Negro.

 

06 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

O cenário da passagem de Vieira por Cabo Verde está descrito minuciosamente nas duas cartas já mencionadas: uma ao seu amigo o padre André Fernandes, bispo eleito do Japão, escrita no dia de Natal, e outra ao provincial do Brasil, escrita depois de ter chegado ao Maranhão, já no mês de Maio de 1653. A caravela chegou à baía da vila da Praia a 20 de Dezembro e no dia seguinte fundeou “no porto da cidade” da Ribeira Grande, onde Vieira foi de imediato convidado pelo governador a hospedar-se na sua residência, o mesmo acontecendo por parte dos cónegos da Sé. Vieira estimou em 120.000 habitantes a população das ilhas, mas mencionou que a grande diocese comportava pelas 400 léguas da costa africana uma população de milhões de gentios, gente sem idolatrias e ávidos de conhecerem a fé cristã e de se baptizarem; um outro jesuíta, o padre Baltasar Barreira (faleceu em Cabo Verde em 1612) tinha sido o grande missionário desta região. Os jesuítas tinham abandonado a missão dez anos antes da passagem de Vieira, na sequência de desentendimentos com a administração do território e com o clero secular. Mas algo de muito importante permaneceu deste esforço de cristianização e acção educativa: nestas ilhas não têm necessidade de se lhes aprender a língua, porque todos a seu modo falam a portuguesa (Carta de 25 de Dezembro).

Vieira pregou um sermão no dia 22 de Dezembro, quarto domingo do Advento, sobre São João Baptista e o baptismo da penitência e outro no dia da partida, a 26 de Dezembro, este destinado aos padres do capítulo da Sé, exortando-os a irem ao encontro das populações das ilhas e da costa africana, com um recado muito à sua maneira: se para isso deixassem as cadeiras e coro da sua Sé, louvariam muito mais a Deus e lhe fariam muito mais agradável serviço. (Carta de 22 de Maio) Não deixa de insistir junto dos seus superiores para que providenciem o envio de padres da Companhia para esta região onde, apesar da ausência de uma dezena de anos, a população tinha grande estima pelos jesuítas, como prova a pontualidade com que lhes conservaram a casa e fazenda que eles deixaram. A equipa liderada pelo professor Evans, da Universidade de Cambridge, está justamente a fazer uma pesquisa arqueológica nos vestígios desta casa e do colégio dos jesuítas.

Detalhe mencionado por Vieira: no seu fundeadouro a caravela rebentou uma amarra, por causa do vento que se levantou. As embarcações de um porte médio, inferior a 100 toneladas fundeavam com uma ou duas âncoras e lançavam amarras de popa aos rochedos próximos de terra. Terá sido uma destas amarras que se partiu devido ao vento e à ondulação e, como todos os passageiros estavam a bordo o patrão da caravela decidiu fazer-se à vela sem mais demora rumo ao Maranhão, onde desembarcaram a 16 de Janeiro de 1653. As condições actuais no porto da Praia não são melhores, dado que uma grande ondulação penetra pelo porto adentro, tornando infernal a acostagem de pequenas embarcações; apesar de estarmos no fundo do porto de pesca, também nós partimos três cabos de atracação com a violência da ressaca, apesar de usarmos pneus como amortecedores nos cabos da proa e da popa. A escala de Vieira durou 6 dias; a nossa faz hoje 5 dias. Ele passou o Natal, nós passaremos a Páscoa.

 

07 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

Mensagem de JAIME RIBEIRO para a Escola O Bando dos Gambozinos e para todas as escolas do mundo onde se aprende a ser um cidadão do século XXI.

Como devem saber, estou a viajar de Aveiro para a Bahía, ou seja de Portugal para o Brasil. Foi tudo tão a correr que nem tive tempo de me despedir de vocês, e também me parece mais interessante escrever-vos já em viagem para vos contar histórias do mar e outras mais que ninguém levaria a sério se não estivéssemos onde estamos agora. Estou neste momento em Cabo Verde, antiga colónia portuguesa, hoje um dos países mais interessantes e mais evoluídos de África. A viagem que estou a fazer pretende percorrer o mesmo caminho de um dos personagens mais interessantes da história de Portugal, o padre António Vieira, uma figura do tempo da restauração da monarquia portuguesa, amigo muito querido do rei D. João IV; ele nasceu em 1608 e morreu em 1697. (Para saber mais sabem como fazer: vão à internet ou à enciclopédia e procurem em D. João IV, padre António Vieira, e lá conseguem saber muita coisa).

A viagem tem decorrido com muita velocidade, porque tivemos muito vento e o mar tinha ondas muito grandes que nos levam para o nosso destino. Nos primeiros quatro dias o vento e as ondas eram tão fortes que tivemos que nos refugiar (fazer uma escala) na ilha da Madeira, à espera que o tempo abrandasse. O nosso comandante disse que era um record, chegar de Aveiro à Madeira em apenas quatro dias! Quando lá chegámos todos se admiraram da nossa aventura.
Da Madeira para Cabo Verde passámos ainda pelas ilhas Selvagens (que são o território mais a sul do nosso país), pelas ilhas Canárias (que são território espanhol), mas não parámos.Está afixado no salão do barco o cartão com a palavra MAR, que me foi dado pela Joana, da Escola dos Castelos. O mar é de facto um sítio fantástico para os seres humanos, porque não é o nosso lugar para viver e por isso o encontro com os animais e as aves do mar são sempre emocionantes. Os golfinhos são os mais brincalhões, andam sempre à volta do barco, a saltar e a tentar falar connosco com a linguagem deles que nós não percebemos muito bem. No ar existem muitas aves que fazem longas viagens, atravessando todo o mar. Algumas são migratórias, outras vivem mesmo por aqui; todas têm a curiosidade de se aproximarem de nós para verem o que estamos a fazer no meio do mar. Mas a história mais incrível foi a de duas baleias que apareceram mesmo ao meu lado quando eu estava de quarto (período de quatro horas em que cada um assume a responsabilidade de guiar o barco): espirraram grandes jactos de água e mergulharam por debaixo do barco. O vento não estava de feição a que o espirro me molhasse e ao mergulhar foram tão ágeis que não tocaram no casco do barco. Eram animais com mais de sete metros de comprimento.

Por causa da ventania e do mar bravo, o leme do nosso barco à vela quebrou e tivemos que seguir viagem com um leme de socorro, uma espécie de sistema de segurança que permite seguir viagem mesmo em casos de grande dificuldade. Também a vela grande se rasgou e foi preciso remendá-la. Tivemos medo, mas conseguimos atingir o nosso destino em segurança. Levámos dois dias a reparar as avarias, mas agora estamos prontos a continuar a nossa viagem até ao Brasil.

E pronto, por agora é tudo. Se quiserem acompanhar a viagem vejam na Internet o site www.ua.pt/vieira2008, fazendo clique em Cruzeiro Histórico.
Boas aulas e até breve.

 

08 de Abril de 2007, Santiago da Ribeira Grande.
14 55' 00”N, 23 34' 00”W

Antigamente chamava-se Cidade de Santiago da Ribeira Grande e era a capital de Cabo Verde. Terá sido edificada aqui a primeira igreja cristã dos trópicos, pelos anos 1475 ou talvez antes; é o que tenta apurar a equipa liderada pelo professor Christopher Evans, um compatriota canadiano, professor de Arqueologia na Universidade de Cambridge. A escassos metros desta igreja os jesuítas instalaram um colégio em 1604 e permaneceram até 1642, quando abandonaram o terreno depois de conflitos com o clero local e a nova administração portuguesa. O edifício tinha cerca de 15 metros de comprimento por 5 de largura. A residência dos padres era numa casa do bairro de São Braz, na orla marítima. O padre António Vieira verificou, dez anos depois, que a “casa e a fazenda”, propriedades da Companhia, encontravam-se em bom estado de conservação e insistiu junto dos seus superiores e das autoridades do reino para que os jesuítas regressassem a Cabo Verde, o que não veio a acontecer. Os vestígios do que foi o colégio encontram-se a cerca de 400 metros do mar, ligeiramente acima do nível do leito da ribeira, completamente seca neste momento, mas no meio de uma vegetação luxuriante de coqueiros e mangueiras, um verdadeiro oásis na paisagem brutalmente árida de toda a ilha.Mesmo na orla da praia encontra-se um magnífico pelourinho gótico em mármore, rodeado de coqueiros, acácias gigantes e lemba-lembas (e curiosamente também um eucalipto!), um dos cartões postais da cidade velha, construído em 1512. A fortaleza mandada construir por Filipe I em 1587 foi recentemente restaurada e é o único edifício militar defensivo de todo o arquipélago, vítima frequente de ataques de corsários ingleses e franceses que devastaram a cidade da Ribeira Grande por várias vezes, desde o inglês Francis Drake pelos anos de 1585, inimigo de estimação do rei dos países ibéricos, até ao francês Jacques Cassard, que em 1712 saqueou a catedral, a igreja de Nossa Senhora do Rosário e o convento dos franciscanos (construído a partir dos anos 1656).Quando Vieira por aqui passou a imponente catedral ainda não estava concluída (iniciada em 1556, só foi terminada em 1704 no tempo do bispo D. Vitoriano Portuense, originário de Aveiro) mas existia já um complexo monumental de edifícios que incluíam a cúria diocesana, os edifícios do cabido e uma parte administrativa. Foi lá que ele deixou recados aos cónegos, no Sermão que pregou do dia 26, antes da partida. Existia a igreja da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cuja construção se iniciou em 1495, onde ele pregou o Sermão do dia 22 de Dezembro, de um pequeno púlpito do lado esquerdo da nave. Desde a entrada principal desta igreja até às escadas do altar-mor encontram-se oito lápides funerárias, algumas com brazão. Uma delas, a primeira logo à entrada, é a do tal “bispo negro”, de entre Estarreja e Pinheiro da Bemposta, cuja inscrição é a seguinte: A S Do Sõr Dom Frei Sebastião Dascensão sétimo bispo destas ilhas, faleceu a 18 março de 1614 annos. Segundo o actual pároco desta paróquia, a única da Cidade Velha, a tradição popular atribui-lhe muitos milagres e existe um processo em Roma para a sua beatificação.
A Rua Banana e a Rua Carreira existiam no tempo da passagem de Vieira; muitas das casas que ainda hoje estão habitadas são as mesmas. O CHIC está ancorado a poucos metros da praia de areia negra onde se eleva o pelourinho, protegido da maresia pelos rochedos que romperam as amarras da caravela que o levava para o Maranhão.


09 de Abril de 2007, Santiago da Ribeira Grande.
14 55' 00”N, 23 34' 00”W

Há muito mais do que igrejas e relíquias do passado nesta cidade emblemática. Há gente que vive o seu cada dia como qualquer outra gente. Nada faz pensar numa “cidade”, pois todo o ambiente, cheiros, ruídos e cores são os de uma aldeia: tem cantar de grilos depois do pôr do sol, de galos pela madrugada, vacas e bezerros deambulando pelas ruas, bandos de cabras com suas crias catando a verdura que só elas enxergam, plantações de cana de açúcar em quantidade suficiente para alimentar um alambique do melhor grogue da ilha, o do senhor Fausto Freire, hortas viçosas com morangos e tomates, mangueiras, cajueiros, papaias, goiabeiras, maracujás e tem ainda três grandes “calabaceiras”, como lhe chamam, enormes baobabs centenários, um dos quais mais parece um local de culto com crucifixos espetados nos seus troncos e uma Senhora de Fátima num nicho improvisado de lata, pintado de verde. Todos os barcos pintados de cores vivas que ontem estavam na areia negra da praia saíram esta madrugada para a pesca. Com o afluxo de turistas, a construção de uma unidade hoteleira e o interesse sustentado de equipas de investigadores que chegam de longe para estudar as relíquias do passado, a população toma consciência da importância deste espaço que lhes pertence e protege-o. Não se vê o lixo abandonado que caracteriza a cidade da Praia, antes pelo contrário, cada esquina, cada rua, cada casa ostenta a sua simplicidade na mais perfeita harmonia ambiental. As pedras das calçadas são as mesmas da praia, apenas ordenadas e seleccionadas por tamanho; as paredes das casas são de pedra de lava, alguns telhados de palha, a maioria deles de telhas redondas, as mesmas que os escravos fabricavam, moldando-as nas suas coxas. Como é tempo de festa, o largo do pelourinho está iluminado e as moças passeiam ostentando os seus trajos de gala, coloridos e vaporosos. Actualmente a Ribeira Grande possui uma “comissão instaladora” para voltar a ser município, com presidente a ser eleito nas próximas eleições autárquicas. A Cidade Velha tem hoje 1.150 habitantes. Antigamente, no tempo de Vieira tinha cerca de 500 fogos e nunca ultrapassou os 3.000 habitantes permanentes. Ontem à noite foi a nossa festa de confraternização com os colegas que por aqui fazem um trabalho semelhante ao nosso, numa casa particular, improvisada em restaurante. A ceia foi de sopa de garoupa e bifes de atum, tudo muito fresquinho, saído dali mesmo, do mar que quase bate à porta.

 

10 de Abril de 2007, Santiago da Ribeira Grande.
14 55' 00”N, 23 34' 00”W

Preparativos para a grande etapa: ginástica financeira para o abastecimento, últimas revisões, consulta de todas as previsões meteorológicas disponíveis. Seguir viagem significa enfrentar cerca de 1.700 milhas náuticas até Salvador da Bahia, certamente duas semanas de mar, com uma paragem em Fernando Noronha ou talvez não. Não podemos utilizar o telefone por satélite para aceder à Internet: não nos foi possível obter a aparelhagem solicitada para uma correcta transmissão de dados, por questões de exiguidade de recursos. Durante as próximas semanas daremos as notícias apenas por telefone e enviaremos o Diário de Bordo logo que chegarmos a um destino.

Ontem à noite despedimo-nos dos colegas com quem convivemos quase uma semana, partilhando interesses e projectos académicos. Os jovens estudantes caboverdianos entendem-nos melhor do que ninguém, associando-se intensamente aos nossos trabalhos, como se fossem coisas íntimas deles. À pergunta sobre a identidade eles foram muito rápidos numa resposta que nos espantou: somos uma mistura de todas as etnias de África, unidas por uma língua cuja sonoridade e emoção é a dos povos que falam o português e no futuro gostaríamos de ser portugueses, uma espécie de região autónoma de Portugal… Este desabafo saiu espontaneamente da boca de estudantes universitários de engenharia ambiental e ordenamento do território que participa nas pesquisas arqueológicas da equipa de Cambridge. Quarenta por cento de todos os emigrantes deste país está em Portugal, outros tantos em França, os outros 20 % encontram-se espalhados pelo mundo. Talvez não seja este o sentimento da grande maioria dos habitantes, mas para este pequeno grupo de futuros engenheiros a resposta às questões Que Somos, Donde Vimos e Para Onde Vamos, estava na espontaneidade daquela frase. O futuro deles é tão incerto e imprevisível quanto a chuva.

Não foi fácil a nossa escala pascal em Cabo Verde. As reparações das avarias exigiram de nós uma enorme energia, provocaram grande desgaste, tendo em conta que nada é fácil neste país. Encontrar o parafuso certo faz-nos correr por toda a cidade onde tudo tem um custo duas vezes superior a Portugal, desde o litro de leite até à lata de graxa consistente, um vulgar casquilho de bronze ou um rolamento. Para aceder à Internet, as instalações da Universidade Jean Piaget ficam a 20 km de distância; num Cybercafé do centro da cidade temos que aguardar duas horas na fila para um máximo de uma hora de consulta que nos custa um balúrdio. O abastecimento do veleiro custa aqui o dobro do que pagámos à partida de Portugal. Os produtos são os mesmos, mas ao dobro do preço. Uma lata de atum que custa 39 cêntimos em Portugal custa aqui o equivalente a 60 cêntimos. Melhor esquecer a cerveja a 75 cêntimos e até temos que economizar no papel higiénico. A extrema exiguidade dos nossos recursos não ajuda em nada para o moral da equipa que trabalhou nesta primeira e pequena etapa de maneira exímia, com profissionalismo a traquejo. Salva-nos o carinho e o apreço dos forasteiros com quem partilhamos os nossos sonhos e que nos deram uma ajuda. Amanhã será outro dia, com muito sol, e de qualquer forma teremos um rumo; deixamos os suspiros, levamos as mágoas, tudo com muitos remendos como a nossa vela grande.

O grande Vieira também teve que engolir sapos e lagartos durante a sua vida de bandeirante da fé e de peregrino da utopia. Nem sempre se conteve e desabafou um dia: patria ingrata, non possidebis ossa mea! A frase não era dela, era de um herói de república de Roma; mas o vaticínio cumpriu-se.

 

10 de Abril de 2007, Santiago da Ribeira Grande.
14 55' 00”N, 23 34' 00”W

Foi o encontro mais mediático e mais emocionante da nossa estadia na Cidade Velha, o do padre Custódio Ferreira de Campos, missionário da congregação do Espírito Santo: 85 anos de vida, 53 dos quais em Cabo Verde, pároco da Cidade Velha há mais de 30 anos. Natural de Joane, perto de Famalicão, há mais de 20 anos que não vai à terra, onde ainda possui família. À sua passagem todos os habitantes o saúdam e se aproximam com carinho de uma figura pequena, magra, toda vestida de branco, com uns olhos vivíssimos por debaixo de uns óculos grandes, atento a tudo o que se passa na sua paróquia, em Cabo Verde e no mundo, uma réplica fiel da figura física do padre Valentim da Gráfica de Coimbra, exceptuando que não possui armas de fogo na casa do topo do morro, nem sabe caçar; é que não há nada para caçar em Cabo Verde. Mas ainda há dois anos se deslocava por toda a ilha, ajudando os outros missionários, na sua Kawasaki de 250 cm3.

Foi um extraordinário cicerone, conhecedor de todos os detalhes físicos e históricos da cidade. Graças à sua iniciativa, a velha igreja de Nossa Senhora do Rosário foi inteiramente restaurada com patrocínios espanhóis e a cidade mereceu a visita de S.M. a rainha Sofia de Espanha. Só falta restaurar o púlpito onde Vieira pregou naquele 22 de Dezembro e colocar lá uma placa. Não se esqueçam de mim quando publicarem o vosso livro! Ficou a promessa.

 

11 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

A nossa partida estava agendada para esta manhã, após o abastecimento no posto de combustível, a cerca de 200 metros do local onde estamos ancorados. Porém, aconteceu o pior: fomos assaltados pela madrugada, com todos a bordo, sem podermos reagir, o que teria sido fatal face a assaltantes armados. Tudo foi muito rápido e obra de profissionais: sacaram o que estava mais à mão e saíram por onde entraram, com o auxílio de uma pequena embarcação roubada. O saque atingiu sobretudo o nosso colega Jaime Ribeiro que esteve a trabalhar até muito tarde no seu computador, deixando-o em cima da mesa do salão. Ficou sem ele, sem o telemóvel, a câmara de vídeo, o passaporte e o leitor de CD’s. Levaram ainda 8.000 escudos caboverdianos (cerca de 80 euros), destinados ao gasóleo, uma pasta com CD’s de música e uma máquina fotográfica Canon A-700.

Ao apresentarmos queixa no posto da polícia marítima, soubemos que tinha sido assassinada à paulada, durante a noite, uma cidadã italiana e o nosso companheiro Dietmar também foi vítima, na semana passada, de agressão e roubo na cidade, ficando sem uma máquina fotográfica. No consulado português, onde fomos atendidos de maneira muito eficaz e onde se empenharam, junto da polícia, num esforço de coordenação para tentar encontrar o material roubado, já que se presume quem são os assaltantes, o Jaime obteve na hora e sem custos um passaporte provisório para 6 meses e também nos mencionaram que o ambiente da capital se tinha deteriorado nos últimos meses, tendo alguns portugueses sido vítimas de violência.

Conhecedores dos perigos e avisados dos problemas, tomámos sempre as mais rigorosas medidas de segurança, mas face a profissionais do crime é muito difícil defender a nossa integridade e os nossos bens. Nada aconteceu enquanto estivemos atracados ao cais, agora que estávamos no ancoradouro, em princípio mais seguros, fomos vítimas de um crime. Acordar de um choque destes é sempre difícil, mas passadas algumas horas sempre acabamos por ultrapassar o desespero do momento e recuperar forças para contrariar a adversidade. Também Vieira foi vítima, por duas vezes, de ataques de piratas que o deixaram desprovido de tudo o que levava, no canal da Mancha e nos Açores, o que não o fez desistir das suas missões. Aguardamos hoje o desenvolver dos acontecimentos e pensamos partir amanhã rumo a Salvador da Bahia.

Vamos continuar a nossa missão, esperando que os leitores deste Diário de Bordo continuem a acompanhar-nos nesta longa jornada, sem ter pena de nós, simplesmente entendendo que nos lançámos numa empresa difícil e cheia de sobressaltos, quiçá perigosa, como foi a vida do homem cujo roteiro nos inspira. Necessitamos de nos recompor das emoções e de substituirmos o material roubado ao chegarmos à Bahia, pelo que aguardamos e apelamos a todos aqueles e às empresas que entendam valer a pena patrocinar o nosso esforço, para que, todos juntos, prestemos daqui por um ano uma homenagem digna a um dos maiores portugueses de todos os tempos.

Por sorte, todas as imagens gravadas na câmara de vídeo roubada, todas as fotos da câmara, resultado do nosso trabalho da Cidade Velha, tinham sido armazenadas no computador principal e guardadas em discos de reserva. O Jaime tinha estado a trabalhar no computador dele as imagens e os documentos pessoais, de que, infelizmente, não fez cópias de segurança.
Esta manhã, quando estávamos no gabinete do Cônsul José de Castro Athayde Amaral, chegou o padre Campos, com quem conversámos de novo, contando-lhe o sucedido. Fingiu que a nossa história não o comoveu nem o impressionou e lançou-se numa poderosa investida psicológica: eu preciso que reconstruam o púlpito da minha igreja onde o padre Vieira pregou, preciso de refazer o coro que não foi refeito, preciso de uma placa comemorativa da passagem do grande padre e do seu sermão, quero o vosso livro, quero o vosso filme para o mostrar a toda a gente e conto com vocês. Sigam a vossa viagem e voltem com tudo isso daqui por um ano! A mensagem ficou gravada naquele consulado e nas nossas mentes. O adido cultural da embaixada, João Laurentino Neves, um aveirense, cagaréu de gema, não deixou também de nos incitar a continuarmos o trabalho com o empenho que mostrámos em Cabo Verde, olhando para este incidente como apenas uma pedra no meio do caminho.

Em Junho de 2000 eu fui vítima de um assalto à mão armada no Rio de Janeiro, fiquei sem nada, mas ainda estou vivo; parece que serviu de vacina. Mas ao Jaime é a primeira vez que isto acontece e a pancada atordoa. Ele vai ficar bom e continuar a ser aquele companheiro sempre pronto para todas as vagas, entre dois chás de cidreira.
Esta manhã choveu na cidade da Praia, pouquinha chuva, mas molhou o chão.

 

12 de Abril de 2007, Cidade da Praia.
14 54' 00”N, 23 33' 00”W

A última impressão da cidade da Praia não é certamente das melhores; na noite passada, mais um tripulante de um cargueiro foi assaltado. A imagem da capital de Cabo Verde não ganha com estes incidentes repetidos, apesar dos sorrisos e da simpatia da polícia que promete para daqui a 24 horas uma solução para o nosso caso. Há momentos apareceu junto de nós um indivíduo muito bem vestido, roupa de marca, carro vistoso, palavra amável, garantindo-nos a recuperação de todo o nosso material roubado contra um montante de 200 euros. Deixaram-no entrar nos portões bem guardados do porto, por ser certamente pessoa conhecida por estas bandas, idónea e recomendada. Havia um detalhe: os 200 euros eram na hora e a devolução seria dentro de duas horas. A recompensa no momento da entrega não funcionava. Nunca tive sucesso em negócios, e recusei o que me era proposto. À passagem pelos portões nem precisou de esperar para que se abrissem.

Não acreditando no sucesso das diligências policiais, vamos zarpar hoje à noite. Temos por duas semanas de mar até à Bahia. Durante a viagem vamos ter tempo de reflectir e de ordenar todos os momentos que aqui vivemos durante a nossa escala. Momentos de euforia e momentos de tristeza, como os momentos de todas as vidas.

 

14 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
12 12' 00”N, 25 00' 00”W

Largámos ontem, depois de um abastecimento de água complicado: esperámos toda a tarde de Quinta e toda a manhã de Sexta pelos homens da água. O porto da Praia não tem nenhum ponto de abastecimento de água potável. Os grandes navios são abastecidos por camiões cisternas de 15.000 litros, mas as embarcações de pesca e os pequenos veleiros como o nosso têm que recorrer a carrinhas com bidões de plástico de 220 litros, aos quais se aplica uma mangueira que verte o raro e precioso líquido nos depósitos. Um abastecimento de 400 litros de água custa 10 euros e ninguém acredita que aquela água seja verdadeiramente “potável”, tão precárias são as condições higiénicas que rodeiam a operação. A água para a sede das próximas duas semanas (90 litros) vai em garrafas, quase toda ela portuguesa, porque só existe uma marca caboverdiana de água engarrafada à venda nos supermercados. Preço de uma garrafa de 1,5 litros, 68 escudos caboverdianos, cerca de 0,63 euro.

Por um cálculo rápido e sumário avaliámos que mais de 80% de todos os produtos à venda nos supermercados são provenientes de Portugal e vendem-se quase ao dobro do preço. Estes produtos, que não competem em preço e qualidade com os similares da comunidade europeia, encontram em Cabo Verde um escoamento garantido. Talvez esse mercado justifique o esforço financeiro do governo português para garantir a taxa fixa do valor do escudo caboverdiano em relação ao euro, protegendo assim alguns produtores portugueses, uns tantos postos de trabalho, etc… Não é certamente uma solução a longo prazo; e como pode uma população pobre e carente pagar tais produtos? Existe um outro mercado paralelo, de produtos de baixa qualidade, nos mercados populares e nas ruas, onde a maioria da população se abastece. Esta é uma situação discriminatória, geradora de conflitos e de violência, a mesma da qual fomos vítimas.

A discriminação e a pobreza estão patentes por toda a parte, sobretudo na parte mais antiga da cidade e é fácil entender como se gera o esquema do predador e da sua presa. Qualquer pessoa que aparente possuir algo que se transforme em dinheiro torna-se uma presa dos predadores atentos a todos os movimentos dos cidadãos, em especial os estrangeiros. A escola básica da caça existe à porta de todos os supermercados, onde bandos de crianças se precipitam sobre o cliente e insistem em ajudar a levar os sacos de compras até aos automóveis, apoderando-se pelo curto caminho de uma maçã, um sabonete, qualquer miudeza mais à mão, reclamando pelo serviço prestado uma moeda de 20 escudos. É muito provável que o automóvel tenha sido aliviado de um limpa pára-brisas ou dos dois; não tem problema, porque umas centenas de metros mais à frente está uma criança com um par deles iguaizinhos, à venda por 500 escudos ou por quanto a vítima quiser dar. Como chove raramente o melhor é mesmo andar sem eles e enfiá-los somente quando começa a chover, exercício a efectuar uma vez por ano, ou menos.

Do alto da Achada Grande, um morro sobranceiro ao porto, os “olheiros” vigiam de dia e de noite a estrada mais movimentada da Praia e guiam os assaltantes por telemóvel. Possuem lunetas telescópicas de grande alcance para seleccionar as suas vítimas. A zona é espaço interdito à polícia e quartel-general dos predadores, um miradouro donde se vislumbra a mais bonita paisagem da capital de Cabo Verde.

 

15 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
09 53' 00”N, 25 36' 00”W

Uma brisa suave permite-nos uma navegação calma e repousante, contrastando com a primeira etapa da nossa viagem, ventosa e muito cansativa. Foi dia de limpeza do veleiro: a areia preta da praia da Ribeira Grande e a permanente poeira rosada da ilha de Santiago deixaram marcas impregnadas no convés e no interior. Foi apenas uma “primeira demão”, porque vamos ter que repetir a operação pelo menos mais uma ou duas vezes até nos vermos livres de tanto pó incrustado. Contamos ainda com uma boa chuvada tropical que não tardará a cair-nos em cima, uns graus mais abaixo. Também Charles Darwin notou a mesma coisa no seu diário de 1832 e explicou o porquê desta particularidade.

Muita desta poeira chega ao arquipélago trazida pelo vento do continente africano, criando por vezes uma névoa seca que limita a visibilidade a menos de 1.000 metros. Como nós, Darwin visitou a Cidade Velha e o vale de São Domingos. Impressionou-o a grandeza das ruínas da Sé, a igreja do Rosário e os seus túmulos de fidalgos e bispos, a suavidade dos vales onde a água cria oásis de verdura. Notou a ausência de discriminação racial e a alegria da população apesar da pobreza. As hortas do vale de São Domingos e da aldeia de Fontes são ainda hoje as que abastecem a capital em produtos frescos; mas pelo caminho as acácias apenas sobrevivem à secura, fustigadas pelo vento, dobradas para sul, agarradas à terra queimada. Ainda hoje se encontram pelo caminho crianças nuas atrás de um burrinho magro, carregado de gravetos, vacas e cabras procurando com que entreter a magreza, comendo sacos de papel. Darwin encontrou as crianças carregadas com feixes de lenha do tamanho delas e o mesmo gado magro e debilitado.

 

16 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
07 45' 00”N, 26 00' 00”W

À nossa frente estão umas 1.350 milhas até Salvador da Bahia. A bombordo e a estibordo só mesmo água, uma imensidão calma e serena, quente e sem vento; entramos na contra-corrente equatorial, com águas a mais de 28º centígrados, povoadas de tartarugas gigantes e de cardumes de peixes-voadores, descendentes daqueles mesmos que inspiraram um célebre sermão de Vieira, no Maranhão. É um mar tranquilo, de um azul quase violeta, com o sol na vertical. Avançamos a motor, esperando que uma qualquer brisa se levante para refrescar o ambiente e para continuarmos a nossa viagem à vela, que nos envolve num suave marulho quando o casco abre o seu sulco furtivo pela água, sem deixar traço da sua presença – metáfora bíblica do Livro da Sabedoria para a passagem do homem justo pela vida.

Na sua explicação da seca e da pobreza, o naturalista inglês escreveu que grande parte da ilha, assim como os arrabaldes da cidade da Praia, estavam cobertos de florestas, que foram entretanto abatidas sem tino pelos colonos, como aconteceu em Santa Helena e nas Canárias, o que provocou a erosão do solo e a seca. Darwin equivocou-se: nunca houve vegetação permanente na ilha de Santiago, como em outras ilhas do arquipélago, a não ser nos vales férteis, como o de São Domingos e o da Ribeira Grande. Entretanto, a água desta última foi desviada para alimentar a capital (Praia é capital de Cabo Verde desde 1769) e a antiga cidade, cuja riqueza e posição estratégica dependia do facto de ser depósito obrigatório do comércio de escravos (até 1647) e um centro de produção agrícola, definhou à sede, limitando-se hoje a pouco mais de mil habitantes. Foi recentemente restaurado o município que vai reclamar a sua água e os habitantes lutam pelo estatuto de atracção turística com a esperança de verem este espaço único ser dentro em breve reconhecido como património da humanidade.

Atrás de nós são águas passadas onde queremos afogar as mágoas que nos afligiram, preferindo comentar tudo quanto de bom por lá fizemos, revendo as imagens, compondo textos, comentando os encontros. Dois professores da Universidade Jean Piaget juntar-se-ão a nós no Brasil: o Francisco Weyl e o Konstantino. Francisco é professor de cinema e Konstantino é professor de arquitectura e design, responsável pela equipa local que participa nas investigações arqueológicas do professor Christopher Evans da Universidade de Cambridge. Alguns dos nossos serões passaram-se em discussões animadas sobre as coisas que nos interessam, partilhando utopias, questionando-nos sobre a nossa profissão, apinhados à mesa e entretidos a devorar um jantar de peixe fresco no pequeno salão do CHIC. Uma das questões era exactamente o do futuro dos jovens licenciados de Cabo Verde, mais de 85% dos quais não têm onde aplicar os seus conhecimentos no país. Obviamente que a importação de um tipo de ensino superior copiado de Portugal, onde está há anos desajustado das necessidades do país, onde já não é exemplo para ninguém e denunciado como um dos mais caros e menos eficazes de toda a Europa, não tinha à partida qualquer hipótese de vir a ser eficaz na antiga colónia.

Do mesmo modo que a importação de produtos de consumo de Portugal, fácil e tentadora, não beneficia em nada os caboverdianos, também a importação de métodos educativos passados de data apenas tapa buracos de somenos importância e cria pesadelos de graves consequências. Como todos os africanos, os caboverdianos de todas as condições aspiram poder um dia viver na Europa. Daqui por uma geração os africanos, actualmente o mesmo número dos europeus, serão 5 vezes mais numerosos e não terão outro continente para invadir que não seja a Europa. Os desesperados dos barcos que conseguem hoje chegar às costas de Espanha e de Itália, os milhares de crianças africanas que são deixadas às portas das igrejas e dos supermercados, são apenas o prenúncio de um gravíssimo problema que a Europa tem que resolver. O clube de ricos que exulta com os seus sucessos provisórios de primeira economia mundial não tem muralhas nem exército capaz de conter a enxurrada dos desesperados de um continente que nada tem a perder, que não passou da idade da adolescência política e da infância da produtividade.

A cada dia que passa, os predadores refinam as suas técnicas e as presas são cada vez mais numerosas. A explicação do fenómeno pela metáfora da vida selvagem não é uma solução para o problema, apenas uma explicação provisória. A Europa tem que pensar de imediato – e já é tarde! – em deixar de lado as soluções de emergência e os atalhos fáceis, partilhando com o continente africano a educação, a produtividade e o consumo. Só deste modo os africanos podem atingir o patamar, mesmo que seja o mais modesto, de uma cidadania onde todos participam de uma parcela, mínima que seja, do bem comum, produzindo-o e utilizando-o. O padre António Vieira chamou a esse encontro de pessoas, ideias e bens, a “feira universal”, uma “avant-première” da globalização, 300 anos antes de Marshall McLuhan.

Na ausência de cidadania instala-se o relacionamento elementar da sociedade primitiva, multiplicam-se os predadores e multiplicam-se as suas vítimas. Os primeiros acham-se no direito de alimentar uma família que aumenta desmedidamente; os segundos, que para garantirem a sua felicidade deixaram de aumentar em número, exigem segurança para preservar e usufruir das suas riquezas, em nome da ética e dos princípios democráticos. Mas quem foi que enunciou essa ética e esses princípios? Furtar é pecado, caçar é arte (se bem que um célebre livro sobre A Arte de Furtar tenha sido atribuido a Vieira)!

 

17 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
07 00' 00”N, 26 11' 00”W

Na noite passada levantou-se um vento de feição e logo pela alvorada enfeitámos o mastro com todo o pano, até o balão colorido foi para o topo; porém, a vela grande rendeu a alma, rasgando-se mais uma vez, ficando inutilizável. Ainda faltam cerca de 1.300 milhas até Salvador e temos que encontrar alternativas para não utilizarmos apenas a genoa. Lá se vai a nossa média e as previsões de chegada terão que ser adiadas de pelo menos um par de dias. Tentámos sair de Portugal com uma vela grande nova, mas não conseguimos convencer atempadamente nenhum patrocinador a colaborar na nossa empreitada. Por mais empolgantes e mediáticos que sejam os projectos, é sempre muito difícil conseguir a participação de instituições portuguesas em empreendimentos inéditos; a novidade assusta e confunde. É mais fácil seguir atrás da procissão e apanhar as canas dos foguetes do que desbravar caminhos novos. Mais où sont-elles, vierge souveraine, où sont les neiges d’antan? (François Villon, séc. XV)

As coisas são assim mesmo, há que ter paciência e aceitar viver e trabalhar com a mediocridade que se tornou a imagem de marca do nosso contentamento. Acabámos de sentir o mesmo problema durante o tempo que passámos na Cidade Velha. Há mais de 20 anos que o IPPAR empreendeu, com a equipa do arquitecto Siza Vieira, a consolidação das ruínas da Sé, o que ainda não está terminado, nem ninguém vislumbra quando estará. Entretanto a Espanha empenhou-se na restauração de outras partes da cidade e as coisas acontecem, estão terminadas, bonitas e encantam quem passa. Para os visitantes como para os residentes, quem preserva os vestígios do passado e contribui para que a cidade venha a ser património da Humanidade são os espanhóis e logo à entrada da sede da autarquia está bem em evidência a foto da rainha Sofia. Com todo o mérito!

Os portugueses são um povo tradicionalmente laborioso e sofredor; os mais esclarecidos de hoje são gente tão ocupada, tão cheia de trabalho, que não lhes sobra tempo para fazer nada, daí a nossa baixa produção. Na era da facilidade da comunicação, dos telemóveis, dos quais Portugal é um dos países mais bem providos, nunca foi tão difícil conseguir chegar a falar com alguém e o normal do diálogo entre quadros empresariais, intelectuais, função pública, políticos e artistas é o desentendimento, o não escutar o que o outro tem para dizer, a maior parte das vezes alucinados com os limites de um poder fictício e com a fútil arrogância de cada um. Fala-se tanto, organizam-se tantas reuniões, que não sobra tempo para fazer nada! São coisas do nosso íntimo colectivo, dos nossos complexos, da nossa mediocridade assumida. Conformado? Eu não! Paciência? Que remédio! Já Vieira barafustava do alto do púlpito: Conselheiros de “que havemos de fazer” não são conselheiros. Os conselheiros hão de ser homens de “que fazemos”. (…) A razão por que se perdeu tanta parte daquela tão honrada monarquia da Ásia, ganhada com tão ilustre sangue, qual foi? Porque o inimigo “fazia” e nós “havíamos de fazer”. Não vamos tão longe. Enquanto Portugal teve homens de “havemos de fazer” (que sempre os teve) não tivemos liberdade, não tivemos reino, não tivemos coroa. Mas tanto que tivemos homens de “que fazemos”, logo tivemos tudo. (Sermão da 6ª Sexta-feira da Quaresma, na capela Real, 1662, IV, 223)

Quando os que querem fazer não encontram espaço no país, não falta quem lhes deite a mão por outras latitudes. Mas eu acredito que ainda sobra gente sadia e capaz; apenas aguardam o momento deles, a hora de ultrapassar a linha de um equador. Por aqui nós fazemos tudo e mais alguma coisa, com muita paciência e imaginação, amputados da vela grande. Havemos de chegar à Taporbana, ou a Passárgada, a São Saruê, quem sabe mesmo a Salvador da Bahia. Outros já lá chegaram em piores condições.

A MI CABALLO
Quando llegue el tiempo, Señor, del mundo acabar,
Deja un rincón de tierra para una niña bailar.
Quando venga el dia, Señor, del cielo se apagar,
Deja una pequeña estrella para mi barco guiar.
Quando fuera el momento, Señor, del sol se abrazar,
Deja la luna un ratito para un gitano cantar.
Quando sonar la hora, Señor, de tu juicio firmar,
Perdona a Maria Teresa que me enseñó a amar.
Quando todas las criaturas, Señor, se pongan a gritar
Por tu misericordia un poquito más de tiempo dar…
Por la playa de las dunas blancas vai un caballo a galopar.
Como se mueve el hijo del viento y de Tu poder de crear!

 

19 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
04 00' 00”N, 28 26' 00”W

A oeste, na mesma latitude, já é costa do Brasil, do estado do Amapá, que começa na foz do rio Oaipoque, na fronteira com a Guiana francesa. A leste, em África, é a república dos Camarões, no fundo do golfo da Guiné. Suspirámos por um aguaceiro que não aconteceu e tivemos que dar a segunda demão de lavagem do convés ao balde; pela noite ficámos rodeados de trovoada, que não nos atingiu. Pela manhã as nuvens desapareceram e brilha de novo um sol escaldante, amenizado por uma brisa primaveril de nordeste. Depois da primeira parte atormentada da viagem, merecemos estas férias para recuperar as forças físicas e mentais e repor o veleiro em condições. É impressionante o desgaste provocado pelo temporal: não foi apenas a vela grande que ultrapassou antes do tempo o seu prazo de validade, como também vários cabos como as escotas da genoa e as adrissas que sofreram com a tormenta e necessitam de ser substituídas. Duplicámos as escotas da genoa para prevenir o rebentamento; a adrissa do balão resistiu, mas o destorcedor do ponto de adrissa quebrou, deixando-nos a grande vela colorida estatelada na água. Substituímos a peça por uma manilha (içámos o Dietmar até ao topo do mastro!) e reenviámos todo o pano mesmo sem destorcedor; é que não temos intenção de nos demorarmos a fotografar estas paisagens só de água e céu.

É preciso navegar e “navegar é preciso”; a simplicidade dos aparelhos vélicos de hoje, os materiais sintéticos e os acessórios de precisão têm os seus limites. Um cabo de 16 mm de diâmetro suporta tensões de 3 toneladas, mas submetido a fricções aquece e rebenta. Uma rajada de vento numa superfície de 50 m2 provoca tensões nas costuras da tela sintética que podem ceder por desgaste e fricção nos brandais. O mecanismo do leme cedeu porque os rolamentos das polias estavam encravados e os cabos de aço romperam-se com a fricção. Estes são os nossos problemas das nossas horas dos nossos dias, apenas diferentes do quotidiano de quem pisa terra de minhocas. Com uma pequena diferença: é que aqui, para continuarmos vivos, temos que os resolver nós mesmos e na hora, seja noite seja dia, Domingo ou Quinta-feira.

Amanhã, talvez possamos fotografar os primeiros calhaus brasileiros, se lá passarmos de dia: são os penedos de São Pedro e São Paulo, meia dúzia de pedregulhos em pleno oceano, o topo de um pico montanhoso que nasce num abismo a mais de 3.000 metros e apenas aflora uns 20 metros acima da água. Foram descobertos por um infeliz que bateu neles sem se dar conta e lá naufragou em 1503. Estão a 58 minutos a norte do equador. Nós estamos neste momento a 240 milhas da linha do pecado. Ontem ao pôr-do-sol apareceu a lua com o seu sorriso tímido do primeiro dia do quarto crescente; fez-me pensar em Catulo da Paixão Cearense! Não há, ó gente, ó não, luar como este… O meu reino por uma cabana no sertão, uma noite de luar e um violão!

LUA-LUAR
Escuto leve batida…
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.
Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vêm morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.
Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.
Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina - lua-luar.
Lua dos becos tristes,
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos,
das velhas plantas sentenciadas,
do sopro morto,
dos bordões, rimas, violinos.
Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito
mal aceito: repudiado, abandonado.
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.
Cora Coralina (1889-1985)

 

21 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
04 00' 00”N, 28 26' 00”W

A oeste, na mesma latitude, já é costa do Brasil, do estado do Amapá, que começa na foz do rio Oaipoque, na fronteira com a Guiana francesa. A leste, em África, é a república dos Camarões, no fundo do golfo da Guiné. Suspirámos por um aguaceiro que não aconteceu e tivemos que dar a segunda demão de lavagem do convés ao balde; pela noite ficámos rodeados de trovoada, que não nos atingiu. Pela manhã as nuvens desapareceram e brilha de novo um sol escaldante, amenizado por uma brisa primaveril de nordeste. Depois da primeira parte atormentada da viagem, merecemos estas férias para recuperar as forças físicas e mentais e repor o veleiro em condições. É impressionante o desgaste provocado pelo temporal: não foi apenas a vela grande que ultrapassou antes do tempo o seu prazo de validade, como também vários cabos como as escotas da genoa e as adrissas que sofreram com a tormenta e necessitam de ser substituídas. Duplicámos as escotas da genoa para prevenir o rebentamento; a adrissa do balão resistiu, mas o destorcedor do ponto de adrissa quebrou, deixando-nos a grande vela colorida estatelada na água. Substituímos a peça por uma manilha (içámos o Dietmar até ao topo do mastro!) e reenviámos todo o pano mesmo sem destorcedor; é que não temos intenção de nos demorarmos a fotografar estas paisagens só de água e céu.

É preciso navegar e “navegar é preciso”; a simplicidade dos aparelhos vélicos de hoje, os materiais sintéticos e os acessórios de precisão têm os seus limites. Um cabo de 16 mm de diâmetro suporta tensões de 3 toneladas, mas submetido a fricções aquece e rebenta. Uma rajada de vento numa superfície de 50 m2 provoca tensões nas costuras da tela sintética que podem ceder por desgaste e fricção nos brandais. O mecanismo do leme cedeu porque os rolamentos das polias estavam encravados e os cabos de aço romperam-se com a fricção. Estes são os nossos problemas das nossas horas dos nossos dias, apenas diferentes do quotidiano de quem pisa terra de minhocas. Com uma pequena diferença: é que aqui, para continuarmos vivos, temos que os resolver nós mesmos e na hora, seja noite seja dia, Domingo ou Quinta-feira.

Amanhã, talvez possamos fotografar os primeiros calhaus brasileiros, se lá passarmos de dia: são os penedos de São Pedro e São Paulo, meia dúzia de pedregulhos em pleno oceano, o topo de um pico montanhoso que nasce num abismo a mais de 3.000 metros e apenas aflora uns 20 metros acima da água. Foram descobertos por um infeliz que bateu neles sem se dar conta e lá naufragou em 1503. Estão a 58 minutos a norte do equador. Nós estamos neste momento a 240 milhas da linha do pecado. Ontem ao pôr-do-sol apareceu a lua com o seu sorriso tímido do primeiro dia do quarto crescente; fez-me pensar em Catulo da Paixão Cearense! Não há, ó gente, ó não, luar como este… O meu reino por uma cabana no sertão, uma noite de luar e um violão!

LUA-LUAR
Escuto leve batida…
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.
Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vêm morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.
Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.
Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina - lua-luar.
Lua dos becos tristes,
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos,
das velhas plantas sentenciadas,
do sopro morto,
dos bordões, rimas, violinos.
Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito
mal aceito: repudiado, abandonado.
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.
Cora Coralina (1889-1985)

 

22 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
01 40' 00”S, 30 52' 00”W

A passagem do equador tem os seus ingredientes naturais: entre os 10º de latitude norte e os 3º de latitude sul sucedem-se as calmarias, os aguaceiros, as trovoadas, as rajadas instantâneas de vento, o calor e a humidade, tudo nos extremos. Pois passámos a linha com todos estes ingredientes à excepção da trovoada que sempre nos rodeou mas nunca veio sobre nós. Estamos a umas 150 milhas de Fernando de Noronha e começamos a notar a diferença no ambiente: ao vazio do mar equatorial substitui-se a animação crescente. Uma ave marinha passou toda a noite em nossa companhia, pousada no suporte das antenas, a meio metro acima da cabeça do homem do leme; pela manhã, apareceu outra ave semelhante e as duas partiram para a caçada. Logo a seguir foi um bando de uma centena de golfinhos que nos acompanhou durante meia hora, para nosso divertimento e grande excitação do Quéqué. O céu está limpo, o vento é fresco e o mar de pequena vaga. Não estava previsto, mas amanhã faremos uma curta escala neste paraíso ecológico, porque estamos com pouca água potável; aproveitaremos para enviar este Diário de Bordo para o site e saborear a nossa primeira caipirinha autêntica e a primeira água de coco.

Vieira nunca mencionou nos seus escritos nem os penedos de São Pedro e São Paulo nem o arquipélago de Fernando de Noronha, nem o mais original de todos os pedaços secos do Atlântico, o atol das Rocas. Ele passou por aqui certamente em três das suas sete travessias do Atlântico, a primeira aos 7 anos, quando emigrava de Portugal, a segunda aos 33 anos quando acompanhava o filho do governador até junto de D. João IV e finalmente a terceira quando regressava definitivamente à Bahia; terá festejado a bordo, durante esta travessia, o seu 73º aniversário. As outras travessias foram todas entre Portugal e o Maranhão, mas a rota das frotas em comboio para sul também passava por aqui, até que os navios do Maranhão se separavam, ao desviar para noroeste por alturas dos Cabos São Roque e Calcanhar (proximidades da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte). Vieira menciona essa particularidade na carta ao provincial do Brasil de Maio de 1653. …tivemos a primeira vista da costa do Brasil, que foi a terra dos baixos de São Roque, sobre a ponta dos quais nos achámos no Sábado à meia noite (ele quererá dizer à meia-noite de Sexta para Sábado), com trinta brassas de fundo. Há daí ao Maranhão mais de trezentas léguas, e todas as que andámos com pouco pano, em três dias, tanta é a corrente das águas. (Cartas, I, 314) Vieira tem de vez em quando destes exageros para evidenciar os sucessos; não são trezentas léguas, mas pouco mais de duzentas, umas 540 milhas náuticas que uma nau daquele tempo podia percorrer nesta zona, com o vento e a corrente a favor (esta superior a 2 nós à hora no mês de Janeiro!), em três dias e meio! A nau fundeou na noite de Terça para Quarta-feira seguinte na baía de São Marcos, o que dá três dias e meio de navegação.

Faz hoje 507 anos que foi celebrada a primeira missa no Brasil, num areal enfeitado com coqueiros que hoje se chama a Praia Vermelha, na Baía de Cabrália a sul da Bahia. Era para chamar-se Terra de Vera Cruz, depois Terra de Santa Cruz, mas ficou sendo simplesmente Brasil. Quatro anos depois do encontro de Cabral com os indígenas, um navegador italiano escrevia de Cabo Frio (Rio de Janeiro) que se alguma vez existiu um paraíso, deveria ser por estas bandas. Chamava-se Américo Vespucci.

 

23 de Abril de 2007, Ilha de Fernando de Noronha.
03 50' 00”S, 32 24' 00”W

Os últimos dois dias foram os melhores momentos de navegação desde a nossa largada: vento fresco de ESE, o CHIC galopando num mar de pequena vaga a uma velocidade média superior a sete nós, mais de 300 milhas em dois dias! Mas tudo se paga: como a vela grande não suportava o esforço, enviou-se o balão. A euforia da velocidade não se pagou em despiste, que o mar é grande, mas num rombo na vela colorida de tela ligeira, feita para brisas mais suaves. Mais costuras em Salvador! Como não estamos aqui para fotografar as gaivotas, há que chegar ao destino com as fraldas que temos a bordo!

Uma escala em Fernando de Noronha vai permitir-nos fazer aguada potável e comprar frutas frescas, que as securas do equador foram muitas. Há sete anos, também no mês de Abril, fiz aqui uma escala e para além dos veleiros da regata comemorativa dos 500 anos só havia pequenas embarcações de pesca; hoje tudo é diferente. Na baía estão ancoradas mais de 30 embarcações, a maioria delas dedicada ao turismo, ao mergulho e à observação da natureza. O ambiente é bucólico e sereno, um paraíso de verdura que contrasta com a aridez de Cabo Verde. O donatário a quem o rei D. Manuel concedeu estas ilhas em 1502 e às quais deu o seu nome é que não conseguiu rentabilizá-las e abandonou-as poucos anos depois.

Na mesma latitude, a Oeste, é o estado do Ceará (se bem que o arquipélago esteja sob a jurisdição do estado de Pernambuco); a Leste, em África, muito longe, é a costa do Gabão.
Tem aquele pedregulho que se avista a mais de 30 milhas do mar, qual dedo de Deus ou pedra filosofal, suspenso acima da água por um anel de verdura, tem arvoredo e praias imaculadas, pássaros e golfinhos, tem um ar de paraíso, uma nostalgia perfumada. Uma paisagem de festa!

NÃO CHORA …
Que eu tenho uma razão
P’ra você não chorar

Eu perguntei ao vento onde pára a minha amada.
O vento fugiu soprando e não disse nada.
Eu perguntei ao rio onde se banha a minha amada,
O rio ficou correndo e não disse nada.
Eu perguntei à chuva onde se abriga a minha amada,
A chuva caiu molhando e não disse nada.
Eu perguntei ao sol onde se esconde a minha amada,
O sol brilhou queimando e não disse nada.
Eu perguntei à lua com quem anda a minha amada,
A lua corou sorrindo e não disse nada.
Eu escrevi na praia o nome da minha amada,
Você partiu chorando e não disse nada.

 

24 de Abril de 2007, ilha de Fernando de Noronha.
03 50' 00”S, 32 24' 00”W

Em todas as viagens marítimas que fez, o padre António Vieira nunca foi um passageiro qualquer. Logo na sua primeira travessia, talvez não tivesse ainda completado sete anos, ele era o filho de um funcionário superior do reino que levava a família para a capital da colónia do Brasil e certamente que não dormia nas tarimbas da coberta nem entre duas barricas de carne salgada no porão. Os navios de seiscentos, por mais rústicos que fossem, ofereciam sempre algum luxo e aconchego para os viajantes mais especiais. Na segunda viagem ele acompanhava o filho do então vice-rei do Brasil; nas deslocações pela Europa ele era o embaixador especial do rei, na viagem para o Maranhão era o superior das missões, e até à sua última viagem, aos 73 anos, nunca deixou de ser um personagem famoso a bordo de um navio.

Certamente que durante os muitos dias que duravam as travessias ele teve conversas animadas com os capitães e, curioso como era, aprendeu muito sobre navegação, ao ponto de escrever em dada altura que se considerava um marinheiro prático e de mostrar por diversas ocasiões que era capaz de se servir de um quadrante para determinar a posição a partir da altura e da posição do sol. Em muitas cartas ele conta detalhes das suas viagens marítimas e fluviais; são inúmeras as alusões, nos seus sermões, a cenas de navegação, a rotas de navios, a correntes e regimes de ventos, a fenómenos meteorológicos, a fauna e flora marítimas, que ele explora nos mais delicados detalhes, resultado de uma observação minuciosa e sustentada.

O sermão de Santo António aos Peixes, pregado no Maranhão em 1654, é disso um dos exemplos mais elucidativos. Mas porque é que Vieira, que sempre cuidou de descrever os locais por onde passou, nunca faz menção desta ilha, nem dos dois grandes perigos destas paragens, o atol e os penedos?

A ilha de Fernando de Noronha é uma espécie de sentinela avançada do Brasil para quem vem da Europa, o primeiro pedaço de terra habitável, uma etapa quase obrigatória para quem viaja à vela. Aqui estão fundeados mais dois veleiros oceânicos, um australiano e outro inglês, em rota respectivamente para as Caraíbas e para Buenos Aires. Este paraíso ecológico é único no Atlântico, como é único o vizinho atol das Rocas. Vocacionado para um turismo muito seleccionado, as regras de protecção da natureza são rigorosas e as infracções severamente punidas. Porém, a organização de tão delicado programa é ainda incipiente e o sistema tem falhas. Qualquer pessoa que aborde este arquipélago paga uma “taxa turística” de 33,09 reais por dia (cerca de 12,50 euros); um barco do tamanho do nosso paga 120 reais de ancoradouro (cerca de 50 euros), para além do que pagam os tripulantes, tendo direito a ir ao cais por duas horas e a fazer aguada. Acontece que neste momento não há hipótese de acostar ao dito cais, porque só tem profundidade suficiente em plena maré alta e além disso o fornecimento de água ainda não está instalado. Mas como a legislação já está em vigor há que pagar na mesma para estar ancorado a enferrujar a sua própria âncora na areia a 500 metros do cais. Isto é o que se chama eficiência! Mas um só dia nesta ilha paradisíaca vale mesmo a pena!

 

26 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
06 28' 00”S, 32 11' 00”W

O nosso 25 de Abril também foi ontem e não teve desfiles, nem discursos nem foguetes; teve aguaceiros e muito vento durante a noite. Vem aí outro feriado, este a sério, e esperamos festejá-lo já em Salvador da Bahia. Os feriados servem para comemorar qualquer coisa que os cidadãos de um país partilham e com que se emocionam. Parece-me que a data daquela grande trapalhada que começou há 33 anos já não emociona mais ninguém. Não basta festejar o acesso a algumas regalias que eram tolhidas por um regime político passado de data, mas mantido no poder por aqueles mesmos que numa madrugada de primavera resolveram tirar-lhe o tapete dos pés. Teria sido necessário que, conquistadas as tais regalias, com elas se construísse uma sociedade diferente, mais conhecedora, mais produtiva, mais participativa; mas o que aconteceu foi que os portugueses enlearam-se nos mesmos vícios e na mesma arrogância que lhes é endémica e em nome da liberdade retrocederam em conhecimento, em produtividade e em participação.

Em mais de três dezenas de anos de experiência da tal liberdade que continua a merecer feriado, o país nunca parou de descer em qualidade de vida e é apontado como um dos mais atrasados do seu espaço geo - económico. Um país que tem mais de 25.000 professores licenciados no desemprego e conta 10% da sua população adulta analfabeta primária, mais outros tantos analfabetos funcionais, não pode deixar de ser uma piada. Talvez seja esta piada, modelo e parâmetro de todos os programas televisivos de riso programado, que mereça o tal feriado. Por estas latitudes do sul não achámos graça nenhuma ao feriado do norte!

O padre António Vieira tinha uma maneira muito ao seu jeito de apontar do alto do púlpito para os vícios da sociedade do seu tempo e pregou muitos dos seus sermões contra os pecados da sociedade portuguesa que eram os mesmos de hoje, admoestando todos, desde o rei e os cortesãos até aos religiosos e ao povo mais humilde, sobre os pecados que causavam o atraso e as desgraças do país que ele tanto amava, desesperando de o ver ocupar o lugar que deveria ser o dele entre as nações, na história do futuro que ele queria contar. De todos esses pecados, os mais hediondos eram, segundo ele, a malvadez e a inveja.

Como no seu tempo, aqueles que lutam para arrancar o país do seu marasmo educativo e produtivo encontram no meio do caminho os pedregulhos daqueles que, por simples maldade, se comprazem em tolher os mais elementares gestos de criatividade. O abuso do poder é o pecado mais hediondo de uma sociedade que ainda reclama da sua crença em Deus para camuflar os seus vícios escondidos e a sua mesquinhez hereditária. Como o fim de semana está à porta e na próxima Terça-feira é feriado, vai ser preciso esperar pela próxima Quarta-feira para resolver as questões de sobrevivência dos peregrinos. No tempo do poeta Dante, que os via passar por debaixo da sua janela, abriam-se as portas para lhes oferecer água e sombra, fosse Quarta-feira de manhã ou Domingo à tarde. O poder de fazer esperar, de fazer parar a caravana, só tem igual naquela sensação arrepiante de prazer, comendo o caldo quente em frente de um mendigo que espera para limpar com os dedos e as côdeas o fundo da malga. O padre não tinha papas na língua quando se tratava de denunciar a crueldade de um povo aparentemente bondoso e crente em Deus que delirava de prazer com as fogueiras da Inquisição, ouvindo os condenados a gritar por mais lenha e mais fogo para que acabasse o suplício.

O pecado dos pecados é a inveja, imagem de marca da nossa gentinha. Chega ao ponto de se ter inveja do sofrimento dos outros, só pela remota possibilidade de que tal sofrimento venha um dia beneficiar quem sofre com algum aconchego merecido, seja ele o perdão de alguns pecados a norte do equador, no dia do juízo final.

Por ser feriado, abrimos ao jantar uma garrafa de Dão, para acompanhar o frango comprado em Fernando de Noronha e assado no forno. Qué Qué comeu os miúdos misturados com a ração seca e gostou.

 

28 de Abril de 2007, Oceano Atlântico.
11 48' 00”S, 37 09' 00”W

A chegada a Salvador está complicada. Uma frente fria traz-nos aguaceiros e ventanias contrárias que atrasam a nossa navegação, ainda por cima privados da eficácia da vela grande. Hoje pela manhã passou perto de nós, fazendo rumo a norte, o veleiro-escola da marinha brasileira, a galera Cisne Branco, com vento de feição, só com as velas baixas, levando uma enorme vaga de espuma na proa. O Cisne Branco é um dos mais bonitos e modernos veleiros-escola do mundo, de três mastros, envergando seis velas no mastro real, na mais pura tradição dos clípers do século XIX; foi construído na Holanda, juntamente com um irmão gémeo, o Stad Amsterdam e fez a sua viagem inaugural no ano 2000, na regata comemorativa dos 500 anos do Encontro, de Lisboa ao Rio de Janeiro, com escalas na Bahia e em Cabrália. Também eu lá estava com o Barconauta. Trocámos saudações por VHF e seguimos os nossos destinos.
Logo atrás dele, puxado pelo mesmo vento, fazia rumo a norte um outro veleiro do mesmo tamanho do nosso, com bandeira inglesa. Para nós o vento é contrário, o que vai atrasar a chegada de um dia. A chuva também nos complica a navegação, diminuindo a visibilidade e sobretudo complicando as manobras.

Esta madrugada suportámos durante três horas seguidas uma chuva tão violenta que se tornou impossível fazer a leitura da bússola exterior, tendo que navegar guiando-nos pela direcção aparente do vento. Como não era possível guardar os impermeáveis a cobrir-nos a cabeça, acabámos completamente encharcados. Neste momento, apenas eu tenho ainda roupa seca para vestir. Debaixo do convés, nas cabines e no salão privados da ventilação, reina a humidade e a roupa molhada. Na cabine que nos serve de biblioteca e de sala de trabalho, tentamos manter tudo bem seco, beneficiando do calor do motor que fica mesmo por debaixo e do gerador que fica ao lado.

 

30 de Abril de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Chegámos! Uma etapa da nossa missão está cumprida, a mais difícil de todas: navegar de Aveiro a Salvador, uma etapa muito longa, de quase 3.000 milhas com os desvios inevitáveis da rota, quatro pessoas que não se conheciam na intimidade, uma das quais nunca tinha navegado. Fizemos uma escala de 2 dias na Madeira, por razões de mau tempo, demorámo-nos duas semanas em Cabo Verde para o nosso trabalho de investigação, tendo também reparado nós mesmos uma avaria grave no leme, fizemos dois dias de escala na ilha de Fernando de Noronha e chegámos à cidade que foi a da juventude e a da velhice de Vieira, onde ele viveu 42 anos da sua vida, hoje ao pôr do sol. Tivemos temporais, acalmias, dias de bom vento, sol quando bastasse para mudarmos de cor e chuva quanta chegasse para nos deixar sem roupa seca. Fomos resolvendo pelo caminho os problemas do nosso quotidiano a bordo, deixando outros para resolver nas escalas; com traquejo e experiência de muitos anos de mar todos chegámos ao destino alegres e bem dispostos, festejando a chegada com espumante… tinto e da Bairrada, claro, partilhado com alguns dos navegantes de oito países que aqui fazem escala.

Os maiores percalços desta primeira etapa não aconteceram a navegar mas sim em escala: dois assaltos em duas semanas de escala em Cabo Verde: a primeira vítima foi o nosso companheiro Dietmar, na cidade, e depois fomos todos nós, surpreendidos a bordo. Os incidentes que tivemos no mar foram a grave avaria no leme que logo resolvemos com os meios de bordo e a perda da vela grande que o temporal inutilizou; o Jaime perdeu um sapato que tinha deixado a arrastar na água, amarrado à corda do balde. Sabe-se lá porquê, sumiu o sapato e o balde! Foram 43 dias desde a largada de Aveiro, 19 dos quais em terra, 24 no mar.

No que toca à navegação, foi uma viagem sem grandes histórias para contar. Não fossem as utopias e o sofrimento do quotidiano, este provocado pela incerteza e pela falta de apoios ao nosso trabalho, não haveria com que escrever tantas páginas do Diário de Bordo para divertir os leitores. Como escrevia Vieira ao arcebispo nomeado para a Bahia, D. Frei João da Madre de Deus, em 23 de Maio de 1682: A viagem da Baía está hoje tão facilitada nas melhores monções, que são as de Dezembro até Março, que se pode tomar como quem passa o Tejo… (Cartas, III, p. 470). Já se tinha esquecido da atormentada viagem de Lisboa ao Maranhão.

Mas, afinal, porque é que estamos aqui? Porque razão não nos deixamos ficar em terra, na quietude dos espaços que nos são próprios, embalados pelo quotidiano sem luxos mas sem perigos, ao ritmo de todos os que partilham desejos e emoções sem surpresas? Vivemos cada dia da nossa vida de marinheiros de ocasião nos limites do perigo, onde um pequeno erro pode ser fatal; tudo o que não for feito na perfeição é uma ameaça à nossa vida e à dos nossos companheiros. O mar é muito grande e o nosso barco muito pequenino! E há as vagas que se quebram e se despedaçam sobre nós, há a ventania, a chuva, a trovoada, a roupa encharcada, o corpo dorido, as noites negras que nunca mais acabam, e sobretudo este mar que não é o nosso sítio para viver e que nunca descansa, naquele ritmo próprio só mesmo dele de subir e descer, de passar da calmaria à violência no espaço de um sono mal dormido. Há o medo dos naufrágios, o medo da solidão, de estar longe de todos, há o encontro inevitável com as nossas mentiras e o arrepio no espelho das nossas verdades, há tantas vezes um desejo profundo de dormir e de esquecer, como se nada fosse real, como se tudo acontecesse apenas na nossa imaginação.

Erradamente se chamam baixos aqueles em que naufragam os navegantes. Não são baixos, senão os lugares mais altos do mar, que em penhascos ou areias se levantam no meio dele. Por isso neles naufraga o mesmo mar, e se quebram e se espedaçam as ondas. Ditosas as que sem querer sair nem subir, se deixam estar no seu fundo, que essas só se conservam em paz, e gozam de inteira quietação; e se lá chegam os ecos das que perigam e quebram, elas descansam e dormem ao som das outras. (Sermão do XVI domingo depois do Pentecostes, VI, 183)

Estamos na cidade mais africana do Brasil, Salvador da Bahia, onde deveríamos começar o nosso verdadeiro e mais emocionante trabalho. Até agora foi apenas um aperitivo, um “tira-gosto”, como dizem por cá! A vida é abundância e o tempo é criança – dizia um poeta dos nossos, há quase mil anos. Nada nem ninguém nasce por ser bom, ninguém nem nada morre por ser mau; como os bichos, as flores e os pedregulhos, tudo nasce e tudo morre, para delírio e glória do Criador!

DIÁRIO DE BORDO

 

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