

NA VOZ DA CRÍTICA

PERFIL DE VIEIRA
         NO PROCESSO DA INQUISIÇÃO
         
Quem é, o que pensa e o que fez? Quais suas credenciais?
Ponderação 8ª: acerca do réu
      In Defesa do Livro Intitulado
      “Quinto Império” pelo P. Antônio Vieira.
      
      1. 
      Esta última ponderação fora melhor fazê-la outrem 
      do que eu, pois sou forçado nela a falar por mim e de mim, mas o 
      fazê-lo forçado será desculpa das ignorâncias 
      que disser, que assim chamou S. Paulo a tudo o que disse; sendo tão 
      verdadeiro, quando obrigado a falar de si, se valeu da mesma desculpa, dizendo: 
      
                          — 
      Factus sum insipiens, vos me coegistis.
                          Ego 
      enim a vobis debui commendari; 
                          nihil 
      enim minus fui ab iis qui sunt supra modum Apostoli: 
                          tametsi 
      nihil sum. Quasi insipiens loquar: vos me coegistis.
                          “Tornei-me 
      um insensato. Vós me obrigastes. 
                          Eu 
      deveria ser defendido por vós, pois, embora nada seja,
                          
      em nada sou inferior aos melhores apóstolos.Falarei com insensato.
                          
      Vós me obrigastes." (II Cor. XII, 11)
      
           2. 
      De duas coisas me vi principalmente arguir nos exames:
           A primeira é de suspeito na 
      Fé, a segunda de presumido no engenho. E começando 
      por esta segunda arguição — que quero saber 
      mais que os padres e doutores antigos:
           Já disse que acerca da zona tórrida 
      e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao Mundo, sem saberem 
      ler nem escrever, o que não alcançou 
Aristóteles 
      nem S.t° Agostinho, pela diferença dos tempos; 
      e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete 
      das profecias, bem pode acontecer sem maravilha e cuidar-se sem presunção, 
      que um homem muito menos sábio possa atender, depois 
      do discurso de largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, 
      sapientíssimos e santíssimos, por falta de notícia 
      não declararam nem alcançaram. 
Assim cuidam de si Boécio, Genebrardo, Leão de Castro, Palácio, Árias Montano, Malvenda, Pôncio Sherlogo, Mendonça e outros muitos, os quais expõem muitas escrituras proféticas, sucedidas nestes últimos séculos, confessando que os padres antigos não puderam pela dita causa conhecer o sentido literal delas.
      Assim que, quando fizera 
      eu o mesmo, fora um daqueles que nem por isso são notados de presumidos; 
      mas não é este o meu caso, porque, ainda que me atrevi 
      a navegar por um mar tão profundo e por meio de 
      uma cerração tão escura como a das escrituras 
      proféticas, fui seguindo o farol de tanto número de santos 
      e doutores antigos e modernos, quantos no princípio ficam enumerados, 
      dizendo o que eles primeiro disseram e querendo só reduzir 
      a um discurso e volume o que eles escreveram dividido em muitos 
      lugares.
      
       
      Confesso, contudo, que se me pode replicar que, ainda em seguimento de outros 
      autores, não era esta empresa para um homem tão idiota 
      como eu agora tenho acabado de conhecer que o sou; mas esta culpa tiveram 
      em parte meus prelados, os quais de idade de dezessete anos me encomendaram 
      as ânuas da Província, que vão a Roma historiadas 
      na língua latina, e de idade de dezoito anos me 
      fizeram mestre de primeira, aonde ditei, comentadas, as tragédias 
      de Sêneca, de que até então não havia 
      comento; e nos dois anos seguintes comecei um comentário 
      literal e moral sobre Josué e outro sobre os Cantares 
      de Salomão em cinco sentidos; e indo estudar Filosofia 
      de idade de vinte anos, no mesmo tempo compus uma filosofia própria; 
      e passando à Teologia, me consentiram os meus prelados que não 
      tomasse apostila, e que eu compusesse por mim as matérias, 
      como com efeito compus, que estão na mesma Província, onde 
      de idade de trinta anos fui eleito mestre de Teologia, 
      o que não prossegui por ser mandado a este Reino na ocasião 
      da restauração dele.
     3. 
      Em Portugal continuei os mesmos estudos, com a aplicação que 
      todos sabem, sendo mais morador da livraria que do cubículo, 
      não prejudicando em nada aos ditos estudos as peregrinações 
      de Holanda, França, Inglaterra e Itália, onde fui enviado 
      por S. M., porque, sobre a notícia que tinha muito universal dos 
      livros, sendo sempre bibliotecário em todos 
      os colégios, pude ver as melhores livrarias do Mundo 
      e tratar os homens mais doutos, consultados e consumados 
      em estudos particulares, e estudar todo o gênero de controvérsia, 
      nem só na paz, senão com as armas na mão, 
      ajudando-me não pouco o mesmo conhecimento das terras e mares, 
      para a exata cosmografia e inteligência da história 
      profana, eclesiástica e sagrada, para a qual também 
      me apliquei muito à cronologia dos tempos, ordem e sucessão 
      das idades do Mundo, da Igreja e dos homens grandes que nele e 
      nela floresciam, querendo conhecer os ditos homens pelas suas obras 
      e lendo-as para isso nas suas fontes, principalmente as 
      dos Santos Padres e expositores da Escritura, a qual passei 
      por vezes toda, e mais particularmente.
 
     Os 
      livros proféticos, insistindo sempre no sentido genuíno 
      e radical pretendido pelo Espírito Santo, sem me divertir 
      nas folhas e nas flores (que é o estudo ordinário dos Portugueses), 
      e procurando sobretudo a coerência de uns lugares com outros, 
      de modo que todos se pudessem entender concordemente, sem contradição 
      ou repugnância alguma em todo o Texto Sagrado.
        Estas são 
      as diligências que fiz em toda a minha larga vida, 
      sendo por mar e por terra meus companheiros inseparáveis 
      os livros, e estas são também as partes que eu lia 
      e ouvia dizer se devia compor o bom intérprete das Escrituras Sagradas, 
      de onde resultaram as razões e aparências por que eu com culpa, 
      e outros com não pouca temeridade, se enga-naram comigo, entendendo 
      que na mesma insuficiência havia capacidade para uma obra 
      que tanto excedia a limitação do meu cabedal e talento.
      
      
     4. 
      Quanto às suposições de Fé, 
      depois de dar infinitas graças a Deus por me chegar a estado em que 
      era necessário dar razão de mim em tal matéria, 
      peço aos Snrs. Inquisidores sejam servidos, primeiro que tudo, de 
      se informarem dos procedimentos deste indigno religioso, 
      principalmente no tempo em que escreveu o papel de que se tomam estes fundamentos, 
      para que julguem ao menos se o teor da sua vida e o seu zelo da disciplina 
      religiosa e do culto divino, da propagação da Fé e 
      da salvação das almas, da reformação dos costumes, 
      da frequência dos sacramentos, da promoção da piedade 
      e devoção, assim entre os Portugueses como entre os índios 
      e outros, eram ou podiam ser de homem que não amasse a Cristo, nem 
      cresse na sua Fé. 
      
      
     5. 
      E se, outrossim, eram ou podiam ser de homem que não amasse 
      a Cristo os assuntos de seus sermões e matéria e 
      eficácia deles, e as doutrinas de todos os domingos, uma que fazia 
      na Matriz aos índios na sua língua, e outra 
      aos estudantes em português no seu Colégio, a que concorria 
      todo o povo, e as confissões gerais e mudanças de 
      vida que resultavam das ditas doutrinas e pregações, e dos 
      livros espirituais, principalmente da diferença entre o temporal 
      e eterno, de que levei muitos a este fim, que repartia e fazia 
      repartir aos que eram capazes daquela lição; 
      
     E 
      se era de homem que não amasse a Cristo nem cresse na sua Fé 
      o contínuo socorro de todos os pobres, que são 
      neste Mundo os substitutos do mesmo Cristo, aos quais chegou a dar-lhes 
      a sua própria cama, dormindo daí por diante em uma 
      esteira de tábua, sem jamais se negar a 
      pobre coisa alguma que houvesse em casa onde ele 
      se achasse, tendo dado a mesma ordem a todas as outras.
           E porque naquelas terras não 
      havia botica, a mandava ir todos os anos deste Reino a grandes 
      despesas suas, para a fazer comum de todos os enfermos, 
      assim pobres como ricos, procurando e ajudando a que se 
      fizesse um hospital para os soldados que morriam ao desamparo, 
      solicitando as causas dos presos e intercedendo por eles, 
      e livrando muitos e mandando à cadeia muito frequentes esmolas, 
      e informando-se dos párocos e dos confessores das necessidades que 
      havia ocultas, as quais remediava também ocultamente, 
      e com maiores socorros do que se podia esperar de quem professava pobreza. 
   
     6. 
      Ou se era de homem que nem cresse nem amasse a Cristo, o 
      cuidado e a vigilância, e as viagens e indústria 
      que tinha, para que nenhum gentio ou catecúmeno 
      morresse sem batismo nem algum batizado sem confissão, indo 
      muitas vezes quatro e seis léguas a pé, e muitas 
      vezes quinze e vinte, atravessando bosques e rios, sem 
      ponte nem caminho, caminhando de dia e de noite para confessar 
      a um enfermo. 
           E posto que nem as suas forças nem 
      as suas virtudes eram para outros maiores trabalhos, ao menos fazia que 
      os empreendessem seus companheiros, indo alguns deles distância de 
      cinquenta léguas e sessenta, a acudir a um moribundo, só 
      na dúvida de se poder achar ainda vivo, posto que se afirmasse estaria 
      já o índio morto, como verdadeiramente se achava. 
      
      E 
      porque as distâncias e as necessidades eram muitas e os sacerdotes 
      poucos, compus um formulário breve, com todos os 
      atos com que, em falta do sacramento da penitência, se pode uma alma 
      pôr em graça de Deus, escrito pelas palavras mais substanciais 
      e breves e de maior eficácia, assim na língua portuguesa, 
      como na geral dos índios, para 
      que qualquer pessoa, nos casos de necessidade, pudesse suprir a ausência 
      dos sacerdotes. E outra segunda parte na mesma forma, para poderem administrar 
      o sacramento do batismo e dispor para ele, nos casos e termos mais apertados, 
      a qualquer gentio; e outras semelhantes indústrias e prevenções, 
      para que nenhuma alma se perdesse. 
     7. 
      E será, finalmente, de homem que não cresse 
      em Cristo nem amasse a Cristo, a constância, a que outros chamam pertinácia, 
      com que tanto instou e trabalhou para arrancar por todas 
      as vias daquele Estado o pecado universal, e como original 
      dele, do cativeiro injusto dos Índios, 
      sem embargo de ter contra si todos, não só seculares, 
      senão eclesiásticos? 
           Tornou a Portugal sobre esta demanda, e embarcando-se 
      para isso em um tal navio, que no meio do mar se virou 
      onde tivera acabado os seus trabalhos, se Deus para outras maiores 
      o não livrara quase milagrosamente?
      
 
      
           8. 
      E posto que o Demônio nesta empresa parece que prevaleceu, não 
      deixou contudo o bom zelo de alcançar contra ele na mesma 
      batalha muitas importantes vitórias, sendo o primeiro 
      rendido o vigário da Matriz da cidade do Grão-Pará, 
      cônego da sé de Elvas, o qual deu liberdade, por uma escritura 
      pública, a mais de setenta escravos, com grande 
      escândalo de suas ovelhas, granjeando com esta obra o indigno instrumento 
      dela o ódio de todos os homens, mas ganhando aquela 
      e outras almas para Cristo, por quem e pelas quais, em tantos conflitos 
      por mar e por terra, expôs tantas vezes a vida às setas dos 
      Bárbaros e à fúria dos elementos, sem bastarem 
      estas demonstrações, não sendo feitas no seu cubículo, 
      senão na face do Mundo, para o não arguirem de inimigo 
      de Cristo.
      
      Não 
      cuidavam assim os que lhe ouviam as práticas dos passos da Paixão 
      de Cristo, que ele introduziu na igreja de S. Luís do Maranhão, 
      repartidos por todas as sextas-feiras da Quaresma, sem que nenhuma houvesse 
      em que não fosse necessário acudir com remédios 
      a muitos dos ouvintes, uns porque desmaiavam, outros porque abafavam 
      de dor e de lágrimas; 
           Mas ainda era maior o fruto, e muito conhecido, 
      de uma história ou exemplo de Nossa Senhora, que também introduziu 
      e pregava todos os sábados bem de tarde, a que concorria com grande 
      devoção e expectação toda a cidade, 
      introduzindo assim mesmo na dita igreja todos os dias o terço 
      do rosário, de que ele era capelão; e não 
      só vinham rezar os estudantes e meninos da escola, por obrigação 
      e para bem se costumarem; mas também se achava ordinariamente à 
      mesma devoção o Governador, Ouvidor-Geral, Provedor-Mor da 
      Fazenda, Sargento-Mor, o Vigário-Geral da Matriz, e outras pessoas 
      principais, sendo muitas as famílias que no mesmo tempo faziam o 
      mesmo em suas casas, rezando pais, filhos e escravos em um coro, 
      e as suas mães, filhas e escravas, em outro, seguindo em tudo a forma 
      a que eram exortados. 
      
      
     9. 
      Isto é o que obrava o réu em a mesma terra e no mesmo tempo 
      em que foi escrito o papel de que se inferem as consequências 
      por que é chamado ímpio e blasfemo. Mas supostas 
      as cousas referidas outras mais interiores (que se calam 
      e passaram no Maranhão), em Coimbra estão os padres Francisco 
      da Veiga, Jácome de Carvalho e José Soares, que podem testemunhar 
      neste caso, e estão em Portugal também o Dr. Pedro de Melo, 
      Baltasar de Sousa Pereira e o Dr. Jerónimo Cabral de Barros, governador 
      e Capitão-Mor e sindicantes que foram, naquele tempo e Estado, 
      meus capitais inimigos (e Deus e o Mundo sabem o porquê) 
      os quais sem embargo disso ofereço por testemunhas do mesmo, ao licenciado 
      Domingos Vaz Correia, Vigário-Geral que foi muitos anos e o era naquele 
      tempo do Maranhão; e os mestres pilotos e marinheiros 
      que de lá me trouxeram duas vezes, os quais dirão como as 
      primeiras rações da minha mesa ou do meu 
      refeitório eram de todos os passageiros pobres, que em duas 
      vezes que me tenho embarcado, tomei sempre à minha conta. 
      
           E, como, sendo roubados e lançados 
      na ilha Graciosa em número de quarenta uma pessoas, 
      eu me empenhei para remediar a todos, dando a quatro religiosos 
      do Carmo que ali vinham, hábitos e toda a roupa interior, e a todos 
      os mais camisas, sapatos e meias, e a outras pessoas vestidos que lhes eram 
      necessários; 
      
     E 
      com escolher de entre os marinheiros um homem de respeito e outro dos passageiros, 
      lhes entregava sem limitação o dinheiro necessário 
      para sustento de todos, em todo o tempo, que foram dois 
      meses que nos detivemos na dita ilha e na Terceira, aonde 
      dei a todos embarcação e matalotagem de biscoito e 
      carne e pescado para quarenta dias, por serem os ventos contrários, 
      com que passaram ao Reino. 
           E assim os ditos marinheiros e passageiros 
      desta viagem, de que era mestre Francisco Serejo, vizinho de Lisboa, como 
      os da última, de que era mestre Fulano Pontilha, vizinho de Aveiro, 
      dirão também como nos ditos navios pregava todos os 
      domingos e dias santos; e quando o mar e o tempo dava lugar, dizia 
      missa e havia muitas confissões e comunhões, 
      e varias doutrinas entre a semana, e lição da vida de santos; 
      e todos os dias pela manhã o terço 
      do rosário, e à tarde a ladainha de Nossa Senhora, 
      a que ninguém faltava, e depois dela meditação 
      para muitos que se achavam a ouvi-la, e à noite exame de 
      consciência para todos, tudo com grande silêncio, ordem 
      e campa tangida, como se fora convento ou noviciado 
      de religião.
      
      
     10. 
      E o mesmo se observava em qualquer canoa de missão, 
      sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil 
      e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios 
      espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do 
      Padre Geral, quando me mandou os seus poderes para que desse forma 
      à missão, dispondo e ordenando tudo o que nela se 
      havia de guardar, assim quanto à observância religiosa 
      dos missionários, corno no pertencente à conversão 
      e doutrina dos índios, as quais regras, deduzidas em mais de 180 
      capítulos, foram todas aprovadas em Roma, 
      sem se acrescentar nem diminuir palavra, e delas há em Portugal algumas 
      cópias, de que se poderão ver os errados 
      ditames do meu espírito e zelo da Religião.
      
      
     11. 
      Mas vindo ao particular da Fé: de idade de dezessete 
      anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos Gentios 
      e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei 
      às duas línguas do Brasil e Angola, de que 
      usam os gentios e cristãos boçais daquela província. 
      
      
     E 
      porque para este ministério me não era necessário 
      mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos Superiores 
      me tirassem dos estudos, porque não queria curso 
      nem Teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e ela se seguem.
      
      
     12. 
      E posto que os Superiores mo não quiseram conceder, 
      antes me tiraram a obrigação do voto, e o 
      Padre Geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir 
      nele, até que ultimamente o consegui, indo-me para 
      o Maranhão tanto contra a vontade de El-rei e do Príncipe, 
      como é notório, levando e convocando de diversas partes da 
      Companhia para a mesma missão mais de trinta religiosos 
      de grandes talentos, com os quais trabalhei por espaço de nove anos, 
      navegando neste tempo água doce e salgada, mais 
      de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos 
      sempre a pé. 
      
     Favoreceu 
      Deus tanto o fervor daqueles operários, que já a missão 
      e a Fé estava estendida em o distrito de seiscentas léguas, 
      que tantas contei eu e andei desde a serra de Ibiapaba até 
      o rio dos Tapajós, sendo catorze as residências 
      em que assistiam religiosos, acudindo de aí a diversas partes, e 
      havendo algumas em que só os batizados que morreram inocentes em 
      espaço de quatro anos passaram de seiscentos, além de muitos 
      adultos batizados in extremis, para os quais e para outros que mais de vagar 
      se iam catequizando compus no mesmo tempo, com excessiva diligência 
      e trabalho, seis catecismos que continham em suma todos os mistérios 
      da Fé e a doutrina cristã em seis línguas 
      diferentes: um na língua geral da costa 
      do mar, outro na dos Nheengaibas, outro na dos 
      Bocas, outro na dos Jurimanas e dois na dos Tapuias.
      
           13. 
      Tendo-se levantado e edificado de novo todas as igrejas das sobreditas residências 
      e outras muitas, 
servidas 
      e ordenadas todas pela indústria de quem escreve 
      este papel, porque a todas dava vinho e hóstias 
      para as missas e cera branca para os dias principais, 
      sendo levadas todas estas coisas deste Reino de Portugal, porque naquelas 
      terras as não há; 
           Como também iam de Portugal todos os 
      ornamentos, uns ricos e outros decentes, e os sacrários 
      e os altares portáteis, os cálices 
      e as custódias maiores e menores, aquelas de grande 
      majestade, cruzes, castiçais, lâmpadas, turíbulos, 
      alguns de prata e os mais de latão, muitos sinos, 
      muitas imagens de Cristo e de Nossa Senhora e 
      
de 
      vários santos, umas de pintura para os retábulos 
      e outras de relevo estofadas, assim maiores para os altares, como 
      menores para as procissões; e até máscaras 
      e cascavéis para as danças das mesmas procissões, 
      para mostrar aos Gentios, muito inclinados aos seus bailes, 
      que a Lei dos Cristãos não é triste. 
      
      
      
     14. 
      E assim mesmo todo o aparato dos batismos para se fazerem 
      com grande pompa, necessária igualmente aos olhos 
      da gente rude, que só se governa pelos sentidos; 
      muitas resmas de papel, tintas e latas para os sepulcros, e imagens da Paixão 
      para as procissões da Quaresma e Semana Santa, que tudo se introduziu 
      desde logo para ficar mais bem 
fundado 
      e estabelecido entre aqueles novos cristãos, sendo matéria 
      de grande devoção ver derramar sangue por amor de 
      Cristo e vestidos de disciplinantes à portuguesa, muitos 
      daqueles mesmos que poucos meses antes se fartavam de sangue e carne 
      humana; 
      
      
     15. 
      Sendo raro o que naqueles dias não fizesse esta penitência, 
      e para verem da mesma maneira com os olhos o mistério do nascimento 
      de Cristo, cuja solenidade fazia celebrar com diálogos 
      na sua língua, representados por seus próprios 
      filhos. 
      
     Mandava 
      também ir de Portugal as imagens do presépio 
      e outras curiosidades daquela festa, de que se paga ainda a gente de maior 
      entendimento; vários ternos de chamarelas e flautas 
      para maior solenidade das missas, as quais já alguns 
      dos índios tinham aprendido a cantar em música de 
      órgão, e ajuntando-se a estas despesas mais chegadas 
      ao culto divino, outras ordenadas ao mesmo fim, que são as que lá 
      chamam resgates, 
com 
      que se conciliam os ânimos dos Bárbaros, e vem a ser grande 
      quantidade de machadas, foices de roçar, facas, tesouras, 
      espelhos, pentes, agulhas, anzóis, e de tudo isto milheiros 
      levados com o demais de Portugal, muito pano de algodão para 
      cobrir, ao menos decentemente, as mulheres convertidas, 
      e outros vestidos de panos de cores alegres para os maiores 
      e régulos das nações. 
      
     Nas 
      quais coisas todas, em duas vezes que fui ao Maranhão, em nove anos 
      que lá estive, despendi com aquela nova cristandade mais de cinquenta 
      mil cruzados, pela valia da terra, sendo muito maior o cuidado e 
      desvelo que o valor, para que se julgue se foi demasiado empenho 
      com Cristo e a sua Fé, para quem se diz que espera outro Messias.
      
      
     16. 
      E porque não pareça muito a quantidade ou quantia da despesa, 
      esta se tirava de quatrocentos mil réis que o Senhor Rei D. João 
      me deu para este fim, situados nos dízimos do Brasil, donde vinham 
      em açúcares, livres de direitos, e do meu ordenado 
      de pregador de El-rei e das esmolas de meus parentes, que só 
      para isso lhas aceitava, e de empenhos e dívidas que fazia, de que 
      ficava por fiador o Padre procurador do Brasil, e principalmente da grande 
      e contínua liberalidade com que El-rei em sua vida, e a Rainha por 
      sua morte, assistiam àquela missão, não só por 
      via da Junta da Propagação da Fé, 
      senão por mercês e donativos particulares.
      
      
     17. 
      Mas o que muito se deve notar é que a aplicação 
      das coisas sobreditas, toda era e vinha a ser à custa da 
      caridade e mortificação dos missionários, 
      os quais, comendo farinha-de-pau, bebendo água e vestindo 
      algodão tinto na lama, tiravam de si da boca o que tinham 
      por mais bem empregado no culto divino e no socorro dos pobres corpos 
      das almas 
que 
      iam salvar, sendo o maior trabalho e dificuldade de toda 
      a missão a cobiça insaciável dos que, 
      por cativar e vender os corpos punham em risco as almas; 
      e, para o fazerem mais livremente e sem estorvo, chegaram a prender 
      sacrilegamente e desterrar aos que por amor das mesmas almas se tinham desterrado. 
      
           Mas 
      agora sobre a impunidade que logram estarão muito satisfeitos 
      desta sua ação, pois não consentiram que na sua terra 
      pregasse a Fé um homem a quem o Santo Ofício prendeu por crime 
      contra ela, e tem por suspeito na Fé.
     18. 
      Indo para o Maranhão, quis Deus que por uma tempestade 
      arribasse o navio às ilhas de Cabo Verde; e conhecendo o 
      desamparo espiritual delas e de toda a costa de Guiné e Angola, escrevi 
      de aí apertadissimamente a S. M., metendo grande escrúpulo 
      ao Príncipe (que já ficava enfermo) para que se acudisse àqueles 
      gentios e desamparados dos Cristãos, de que resultaram as duas missões 
      que ainda hoje se continuam com grande fruto, uma dos religiosos da Piedade 
      em Cabo Verde, outra de carmelitas descalços em Angola.
      
           E tornando depois a este Reino a procurar 
      o remédio (que depois foi causa da minha expulsão) 
      com que se evitassem os cativeiros injustos e se tirasse 
      de uma vez no Maranhão este estorvo da conversão das almas, 
      com o bem delas procurei juntamente o universal de todos os gentios, alcançando 
      de S. M. se informasse a Junta da Propagação da Fé, 
      de que sou deputado, e pondo em prática com alguns senhores a congregação 
      do mesmo fim, que pouco depois se instituiu em S. Roque, debaixo da proteção 
      de S. Fran-cisco Xavier.
      
           19. 
      Tornando em menos de um ano outra vez ao Maranhão, sobre novas instâncias 
      de S. M., mas com novas leis sobre a conversão 
      e liberdade dos índios, bastou só a fama das ditas 
      novas leis, certificadas só com a firma de quem as veio procurar, 
      para que muitos índios dos 
mais 
      bravos e belicosos se mandassem logo sujeitar à direção 
      dos missionários, e por meio deles à obediência da Fé 
      e de S. M., havendo mais de vinte anos que, por agravos 
      recebidos, faziam cruel guerra aos Portugueses; e SE 
      a cobiça dos que tinham maior obrigação de 
      guardar as ditas leis não fizera tão pouco caso delas, como 
      das de Deus e da natureza, fora sem dúvida hoje aquela cristandade 
      das mais florescentes e copiosas que teve a Igreja. 
      
      
     20. 
      Contudo, enquanto com a vida de El-rei se não perdeu 
      o respeito às suas ordens, houve lugar de se fazerem onze 
      missões pelo sertão dentro, até a distância 
      de mais de seiscentas léguas, sendo um dos missionários 
      delas, que tinha obrigação de dar exemplo aos mais, 
      este suspeito na Fé. 
 
     Nas 
      quais missões não faltavam trabalhos e perigos, em que alguns 
      dos missionários deram a vida e trouxeram para o 
      grêmio da Igreja muitos milhares de almas de diversas nações 
      — Potiguares, Tupinambás, Catingás, Pacaiás, 
      Poquis, Mainauás e Anaiás — e se começava 
      a introduzir a Fé e receber nos Tucujus e Aroaquis, 
      que são dois grandíssimos reinos ou províncias, 
      por onde também se abria o passo a outros muitos, sendo sempre maior 
      dificuldade e trabalho vencer a contradição dos Portugueses 
      que a fereza dos Bárbaros e Gentios, isto é, 
      quanto à fé destes, de que pudera fazer muito largas 
      relações.
      
      
     21. 
      Quanto aos hereges, no tempo em que vivi e passei por suas terras 
      me apliquei com toda a diligência ao estudo de suas 
      controvérsias, tendo com eles batalhas quotidianas e públicas, 
      por ser esta a sobremesa daqueles países, principalmente 
      à noite, assistindo-me Deus com fortíssimos argumentos 
      e evidentes soluções, que por não acrescentar suspeita 
      de presumido não digo que se não 
      acham nos livros, e sempre pela graça divina com vitória 
      da Fé e honra da Igreja Romana. 
 
 
           E quando estive na mesma Roma, aonde tive 
      também disputas e convenci a um ateu que entre eles 
      era douto, dispus um memorial para se apresentar à Santidade 
      de Inocêncio X sobre a conversão dos hereges 
      do Norte, pelas notícias que eu tinha alcançado do 
      que mais dificultava a sua conversão ou redução, 
      o que se impediu com a repentina brevidade com que o Padre Geral, a instância 
      de El-rei de Castela, por seu embaixador o duque do Infantado, me mandou 
      sair da Cúria. 
 
 
           Apliquei-me à apreensão de quatro 
      índios canarins levados por desastre a Inglaterra desde a índia, 
      os quais tirei de entre aquela gente com dádivas, e os trouxe com 
      muita despesa a Portugal para que se não fizessem hereges, como já 
      se tinha feito outro seu companheiro e um grumete português natural 
      do Porto, moço de quinze anos, 
      do qual tive notícia ia ferido de peste em um navio velho da mesma 
      frota de Holanda em que vim embarcado, e me passei ao dito navio, e assisti 
      nele por mais de vinte dias, em que padeci três terríveis tempestades, 
      até que morreu confessado nas minhas mãos, para que os hereges 
      o não pervertessem.
      
           22. 
      Quanto ao Judaísmo, não só procurei em Holanda e França 
      reduzir a cegueira dos Judeus em algumas conversações particulares 
      (que pela ignorância deles não merecem o nome de 
disputas), 
      mas diante de alguns, em Amsterdã, convenci ao seu mestre português, 
      Manassés, e apelando para outro italiano, Morteza, também 
      lhe pedi que mo trouxesse e que escolhesse o dia e lugar em que quisessem 
      disputássemos, o que eles não fizeram, pelo tal Mortera não 
      querer. Mas agora poderá ser que cuidem que me pareceram bem os argumentos 
      do seu Manassés.
           Em 
      ordem à conversão dos Judeus, admirado de ver que os padres 
      da Companhia ingleses escrevem contra as heresias da sua Inglaterra, e os 
      alemães contra as de Alemanha, os franceses contra as de França, 
      e que os portugueses não escrevem contra o Judaísmo (que é 
      a heresia de Portugal), determinei escrever contra eles o livro de que dei 
      conta nesta Mesa; mas porque me disseram em Lisboa pessoas inteligentes 
      que o Santo Ofício o não havia de deixar imprimir, desisti 
      desta obra e converti o zelo que Deus nela me tinha dado em a conversão 
      dos Gentios, despedindo-me totalmente da dos Judeus e dizendo com S. Paulo 
      e S. Barnabé:
      
                          — 
      Ecce convertimur ad gentes.
                          [Nós, 
      nos voltaremos para os gentios] (At, XIII,46)
      
           23. 
      Até dos Turcos (que só restavam entre os inimigos da Fé) 
      me não esqueci, querendo ao menos tirar de entre eles aos renegados 
      e aos que estavam em perigo de o ser, dando a El-rei D. João, que 
      Deus tem, os meios com que isto se podia conseguir, com pouco dispêndio 
      da fazenda e grande utilidade da navegação, pois o Reino está 
      tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há 
      mais cativos em Barberia.
           E posto que o alvitre e meios foram muito 
      aprovados de S. M., que lhes chamou inspirados pelo Espírito Santo, 
      impediu-se a execução por outros acidentes e porque com a 
      minha ausência não houve quem o intentasse ou instasse. Assim 
      que estes e outros semelhantes desserviços são os que tem 
      feito e procurado fazer à Fé de Cristo este, outra vez, indigno 
      religioso, que sobre este nome merece o de ímpio, de sacrílego, 
      blasfemo e outros mais feios e de maior horror.
      
           24. 
      Agora me lembra que não só no Maranhão, mas na ilha 
      Terceira, S. Miguel e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi 
      o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se 
      tem pegado esta devoção e quase todos os navios mercantes 
      e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles 
      mesmos mo disseram, que é novo argumento do ódio que tenho 
      a Cristo e aos mistérios da sua vida, paixão e glória, 
      e também a sua santíssima Mãe, minha única Advogada 
      e Senhora nossa.
            Contra tudo isto se me opõe o dizerem 
      que sou favorecedor dos Judeus, e se me prova com os dois papéis 
      que antigamente fiz, e com ir a Roma e Holanda e procurar-lhes sinagogas 
      e serem admitidos neste Reino, o que tudo é sem fundamento, e uma 
      mera fábula do vulgo, a quem eu não havia de dar satisfação, 
      escrevendo pelas esquinas de Lisboa os negócios a que era enviado 
      por El-rei.
     25. 
      Quais fossem os negócios de Roma, pode dizer o Snr. 
      Arcebispo eleito de Lisboa, a quem se deram as mesmas instruções, 
      quando no mesmo tempo esteve nomeado embaixador extraordinário de 
      França; e quais fossem os mesmos de Roma e Holanda, e todos os mais, 
      dirá o Secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva, por cuja 
      mão corriam todos.
      
      
     Mas 
      porque se poderá imaginar que este fingido negócio 
      dos Judeus fosse ainda mais secreto, o Dr. Pedro Fernandes Monteiro 
      pode dar notícia da verdade de tudo, porque ele era o secretário 
      de uma cifra particular que eu tinha com S. M. para algum segredo secretíssimo, 
      se acaso o houvesse.
           A verdade lisa é que, acerca de Cristãos-Novos, 
      além da perdição de suas almas, me doeram sempre duas 
      coisas:
           a 1ª, a mistura do sangue; 
           a 2ª, a destruição do comércio. 
      
      
      
      A 
      este fim disse por muitas vezes a S. M. que, ou pusesse o comércio 
      todo em Cristãos-Velhos ou buscasse remédio a que os interesses 
      dele fossem de Portugal e não de Holanda, Veneza, Inglaterra e França, 
      para onde os Cristãos-Novos traziam divertidos os seus cabedais; 
      e sobretudo que mandasse estudar meios com que os Cristãos-Novos 
      não casassem com os Cristãos-Velhos, sob pena de todo o Reino 
      em cem anos ser judeu, assim como em cento e quarenta o era já metade 
      dele. E que os ditos meios os comunicasse S. M. com os Snrs. Inquisidores 
      e os resolvesse com eles, e os aprovasse pelo Sumo Pontífice, que 
      é a maior comprovação de que não pretendi 
      coisa que não fosse 
mui 
      justa, justificada e pia, quanto mais contra a Fé. Nem em 
      mim se pode ou podia considerar razão alguma pela qual houvesse de 
      favorecer os judeus; porque, pela graça divina, sou cristão-velho, 
      e três cunhados e seus filhos, que são os parentes que só 
      tenho, são também cristãos-velhos.
      
           26. 
      Não tenho nem tive jamais amizade com cristão-novo algum, 
      exceto 
somente 
      Manuel da Gama de Pádua, por ser o mercador a quem meu irmão 
      remetia do Brasil os haveres do seu negócio e açúcares, 
      e por ser prebendeiro da capela que me pagava os meus ordenados de pregador 
      de El-rei. 
      
      
     Nem 
      os Cristãos-Novos me deram nunca coisa alguma, nem eu havia 
      mister que eles me dessem, porque, além de não ser 
      curioso nem cobiçoso de ter (como é bem sabido na minha Religião), 
      para tudo que eu quisesse tinha parentes muito ricos que me davam o que 
      eu não queria aceitar, e sobretudo tinha a liberalidade de 
      El-rei, que sem limite punha em meu alvedrio a inteira disposição 
      da sua fazenda a qualquer parte onde me enviava, não usando eu jamais 
      desta largueza, antes restituindo aos ministros da Fazenda Real, até 
      o que dos viáticos me sobejava, como de tudo pode ser boa testemunha 
      Pedro Vieira da Silva.
     27. 
      Nem acrescenta nada a sobredita suspeita ou presunção, o haver 
      eu comentado ou seguido as Trovas do Bandarra, porque o tive sempre por 
      cristão-velho, sem raça de mouro ou judeu, como ele mesmo 
      afirma, onde, perguntado se é dos Judeus ou dos Agarenos, diz:
      
                          Senhor, 
      não sou dessa gente 
                          nem 
      conheço esses tais;
      
      e por me parecer que as ditas Trovas combinam grandemente com as profecias 
      dos santos e opinião dos doutores acima referidos, de cuja fé 
      ninguém duvida; e finalmente, além das razões apontadas 
      neste e em outros papéis, porque tão longe estava de ter o 
      Bandarra por favorecedor dos Judeus, que antes entendi sempre sentia ele 
      também muito o ver ou prever quão grande dano havia de fazer 
      à fé e limpeza do sangue dos Portugueses a mistura dos casamentos 
      destes, e ainda a dos fidalgos com os Judeus, pelo dinheiro dos dotes. Este 
      é, ou cuidaria eu que era, o sentido daquela sua trova:
      
                          A 
      linhagem dos fidalgos
                          Por 
      dinheiro é trocada;
                          Vejo 
      tanta misturada,
                          Sem 
      haver chefe que mande! 
                          Como 
      quereis que a cura ande, 
                          Se 
      a ferida está danada?,
      
      onde se queixa o Bandarra que o sangue limpo (até o dos fidalgos) 
      dos Portugueses, pelo interesse do ouro, se mistura com o dos Judeus, e 
      que não haja chefe ou cabeça que mande e que impeça 
      esta misturada, advertindo que a cura que o Santo Ofício aplica a 
      esta ferida não é suficiente a evitar todo o dano dela, e 
      vão lavrando e corrompendo todo o corpo do Reino. E importa pouco 
      que cada ano pelo Santo Ofício se queimem dez judeus, se pelos casamentos 
      crescem dez mil. E estes os favores que, entendia eu, fazia Bandarra aos 
      Judeus e estes os remédios que lhes procurava.
Conclusão: Defesa Final
     28. 
      Finalmente, seja a última prova da minha fé, o rendimento 
      do 
juízo 
      e cega obediência dela, ainda contra as evidências certíssimas 
      da própria consciência; pois, sendo assim verdadeira e indubitavelmente, 
      e conhecendo com toda a interior certeza, que o sentido e disposição 
      em que as minhas suposições foram interpretadas e censuradas, 
      é totalmente diverso daquele em que as proferi e 
do 
      que supus nelas, e do que pretendi significar por elas, entendo e creio, 
      contudo, que as ditas censuras são muito justas, e as ditas interpretações 
      muito verdadeiras, e as aceitei, venero e sigo muito de meu coração, 
      sem embargo de se julgarem antes de ser eu perguntado nem ouvido. 
......E se dilatei tanto tempo 
      este inteiro e total rendimento, foi, não quanto à 
aceitação 
      das censuras, que desde o primeiro dia foram aceitadas por mim, senão 
      quanto à desistência das razões da minha inocência 
      e pureza da tenção em que tinha proferido as proposições 
      censuradas; foi, como tudo consta do processo, pela razão do escrúpulo 
      em que não tive 
quem 
      me segurasse a consciência, como procurei por todas as vias que me 
      foram possíveis; conformando-me, finalmente, com o ditame do confessor, 
      que foi a única pessoa com quem me pude aconselhar, o qual, depois 
      de encomendar o negócio a Deus, resolveu que tinha obrigação 
      de dar razão de mim e evitar o escândalo.
      
           29. E 
      quão pronto estivesse o meu juízo e o meu ânimo para 
      o dito rendimento 
e 
      desistência total, bem se viu no mesmo ponto em que tive suficiente 
      razão para depor o escrúpulo com a noticia de Sua Santidade 
      haver aprovadas as ditas censuras; 
      sendo certo que, se na dita hora se me tivesse dado esta notícia, 
      fora ela também a última de todas as 
dilações 
      da minha causa, e se tivera evitado o escândalo da Cristandade e do 
      Mundo, a cujas partes mais remotas sem dúvida terá chegado 
      a notícia em dois anos, assim pela religião ser a mais conhecida 
      e dilatada em todo ele, como também pelo nome da pessoa não 
      ser o mais ignorado, principalmente entre aqueles a quem preguei a mesma 
      Fé, de cujo juízo sou réu e preso, os quais 
terão 
      justa razão de duvidar se acaso lhes ensinei alguns erros contra 
      ela, e se se poderão fiar certa e seguramente da doutrina dos outros 
      padres da Companhia, pois o que entre eles tinha o maior nome era tal qual 
      tinha espalhado a fama e confirmado a prisão.
      
           30. 
      Mas estou confiado na misericórdia divina daquele Senhor 
      
                          qui 
      mortificat et vivificat, deducit ad inferos et reduxit, 
                          [O 
      que tira e dá a vida, leva à sepultura e tira dela] 
      (I Reis II,6)
      
      que, assim como a justiça do Santo Ofício achou motivos em 
      mim, que conheço por mui justificados, para uma tão extraordinária 
      demonstração, assim a piedade do mesmo sagrado  
      Tribunal acha motivos em si mesmo para restaurar o perdido e satisfazer 
      ao dito escândalo.
      
 
           O Espírito Santo, que tão pontualmente 
      assiste às resoluções desta Mesa, seja servido de guiar 
      na decisão desta causa os juízos e ânimos 
      de Vossas Senhorias ao que for de maior serviço de Deus e glória 
      de seu divino beneplácito, que é a única lição 
      em que estudo há mais de dezoito anos, e nestes 
      dois últimos me quis Deus examinar e tomar conta dela, posto que 
      eu lha não tenha dado tão boa como devia.
     31. 
      Mas sabe o mesmo Senhor que, se em mim não houvera mais que eu, sem 
      
os respeitos 
      do hábito que tenho vestido, nem uma só palavra havia de ter 
      falado em meu descargo, pondo toda a causa aos pés de Cristo crucificado, 
      deixando-a toda à disposição da sua divina Providência, 
      desejando e tendo por melhor e mais favorável despacho o que fosse 
      de mais descrédito e afronta, e de maior matéria de padecer, 
      para em algum modo seguir as pisadas do mesmo Cristo e participar dos opróbrios 
      da sua cruz.