

NA VOZ DA CRÍTICA
JAMIL ALMANSUR
      HADDAD
      1. O BRASIL EM VIEIRA 
       Verdade é 
      que o Brasil está em Vieira. Há nele, inclusive, um comportamento 
      sentimental que teria sido outro, é claro, se o pregador não 
      tivesse vindo ao Brasil e vivido nele e nele morrido. Exclusivamente lusa, 
      antes de mais nada, é a linguagem de nosso orador sacro, (não 
      o estilo). 
             O papel de espelho da diferenciação 
      linguística entre Portugal e Brasil ficaria reservado a Gregório 
      de Matos. De qualquer maneira, o Brasil invade-lhe violentamente os períodos 
      das cartas e as apóstrofes dos sermões. Invade como assunto. 
      Invade como sentimento. Invade como drama. Invade como problemática. 
      Invade como realidade selvagem a determinar-lhe os matizes da atitude e 
      da conduta; sob forma de índio, sob forma de negro, sob forma de 
      guerra holandesa. Sob forma de conflito com bandeirante. Sob forma de psicologia 
      coletiva. E realizando esta função comum a toda a parenética: 
      a de ser espelho dos costumes de uma civilização, principalmente 
      nos momentos em que a condena ou nega.
             Como material para uma possível 
      interpretação do Brasil — interpretação 
      da história e interpretação do homem brasileiro — 
      o valor da obra de Vieira é enorme. Para aquilatar-se com justeza 
      deste valor, bastaria que houvesse historiador ou sociólogo disposto 
      a aplicar aos estudos de nosso drama nacional, o método do holandês 
      Groethuysen (1) em seu livro sobre a consciência burguesa. O material 
      que ele trabalha é fundamentalmente a oratória sagrada do 
      período da humanidade que lhe interessa. Tipo de oratória 
      que, não obstante o que possa apresentar de surto, de vôo, 
      de sobrenatural, vive como reflexo do cotidiano. Como repositório 
      dos problemas e das reações que marcam as vicissitudes da 
      criatura humana nos seus embates com a vida.
(1) GROETHUYSEN, Bernard – A Consciência Burguesa – Trd. José Gaos, F.C.Ec. – México. 1943
      HADDAD, Jamil Almansur 
      in Introdução - Os Sermões P. Antônio 
      Vieira.
      ed. Melhoramentos. São Paulo,1963.
2. FORÇA MATRICIAL 
      DO ESTILO DE VIEIRA
      Jamil Almansur Haddad
       É discutível 
      a existência do classicismo brasileiro, em parte, pelos mesmos motivos 
      porque seria a do correspondente fenômeno ibérico. Sérgio 
      Buarque de Holanda aponta de início um traço, que diferencia 
      portugueses e espanhóis dos outros europeus: a cultura da personalidade. 
             Pode dizer-se... que pela importância 
      particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à 
      autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes 
      no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito 
      de sua originalidade nacional... Daí resulta, conclui o ensaísta, 
      frouxidão da estrutura social e falta de hierarquia organizada, situação 
      a que se devem alguns dos episódios mais singulares da história 
      das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e 
      Brasil (1). Tudo isto é o anti-clássico. 
             Eugênio d'Ors chega até 
      a apontar em Portugal "o arquétipo do Barroco". A tal ponto 
      que o ensaísta espanhol considera: "Quem deseja possuir uma 
      das chaves principais que permitam esclarecer a arte espanhola e definir 
      o seu caráter, procure-a em Portugal. 
             De Portugal deriva, com efeito, 
      a metade do sentido secreto de nossa história espiritual. Que digo, 
      de nossa? De toda a história européia, provavelmente. Ouso 
      dizer que, no composto designado com o nome de cultura, a Europa não 
      apresenta, à análise rigorosa, senão dois corpos simples: 
      Grécia e Portugal. O resto talvez seja uma questão de dose 
      (2)."
             O elemento clássico em 
      Vieira é flor de cultura. Pode ele chamar-se equilíbrio, firmeza, 
      construção acabada, unidade. O elemento barroco (embora não 
      seja estranho aos impulsos de impactos derivados da estética do tempo) 
      é principalmente uma questão de alma, uma questão de 
      instinto, uma questão de raça ou nacionalidade. 
             Em como se entrosam e completam, 
      ou se anulam ou pelo menos se anarquizam, estes fatores na personalidade, 
      é assunto que deve constituir o fulcro de nossa meditação 
      inicial e básica sobre o caso de Vieira.
             Vieira tem do classicismo a clareza 
      e a força, tem o poderoso sentido de unidade. É ele próprio 
      que diz: "O sermão deve ter um só assunto e uma só 
      matéria (3)." E aponta a multiplicidade caótica em muitos 
      pregadores coevos, recriminando-a: "Usa-se hoje o modo que chamam de 
      apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos 
      assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não 
      é muito que se recolha com as mãos vazias (5)." Condena 
      a desagregação heterogênea e a sua voz em língua 
      portuguesa é eco da lição inicial que nos dá 
      a "Arte Poética" de Horácio (4). De resto, lugar-comum 
      de toda a poética antiga, como seria supérfluo demonstrar.
             Neste passo, a importância 
      do conselho de Vieira reside em que ele encontra execução 
      plena em sua obra. Numa coerência total. Aqui o problema que aparece 
      à consideração é o de como Vieira conseguia 
      este ideal: a técnica da unidade. "Um só assunto" 
      como que preconizando a unidade de fundo que deve ter o sermão. Mas 
      o colimar-se deste objetivo é inseparável da unidade de forma, 
      não havendo porque estabelecer-se aqui uma bifurcação 
      artificial.
             O problema estilístico 
      em Vieira é fundamentalmente uma questão de ritmo. A idéia 
      de recorrência no tempo que a concepção de ritmo envólucra, 
      é, no que tange às artes literárias, mais sensível 
      na poesia que, em termos de "Gestalt", apresenta, deste ponto 
      de vista, uma configuração mais acabada e completa ou, usando 
      o jargão técnico, mais "pregnante". O ritmo da prosa 
      é necessariamente mais "flou", mais aberto, mais incerto. 
      
             Isso, é claro, dependendo 
      ainda do tipo de poesia e do tipo de prosa considerados. Excepcional o poeta 
      moderno, por exemplo, capaz de entremostrar em seus poemas um ritmo de longe 
      comparável a uma página de prosa de Vieira.
             E o rítmico 
      problema estilístico de Vieira, reconduz-se ao da unidade. O ritmo 
      fundamentalmente é o grande unificador. Já foi definido de 
      miríades de modos. Baste-nos uma definição: ritmo é 
      "periodicidade percebida". A seção do contexto em 
      fragmentos perceptíveis, é função de figuras 
      sintáticas ou estilísticas que são sempre por sua vez 
      figuras de pensamento. 
             O estilo de Vieira é condicionado 
      por todo um sistema orgânico de repetições. É 
      de ritmicidade absoluta. Desde que o estilo flua, sucessivo, 
      sem nenhuma espécie de retorno, o ritmo perece. A condição 
      rítmica traduz-se pela presença de figuras muito conhecidas 
      dos retóricos, (a anáfora, a conversão, o trocadilho, 
      as várias formas de utilização dos parônimos 
      e outras), de uma aparatosa nomenclatura e de técnica para nós 
      hoje quase rançosa.
             O problema da análise da 
      prosa — em que o sub-problema da análise do ritmo assume posição 
      de primeira plana — vem suscitando modernamente numerosa bibliografia. 
      E nela é fundamental a contribuição de Dâmaso 
      Alonso (6).
              Contribui ele com uma teoria 
      dos conjuntos semelhantes na expressão literária. Por um lado, 
      o caso de Vieira pode aparentar-se ao de Calderón em que o estilo 
      não passaria de um problema tático de ordenação 
      de conjuntos semelhantes. (No caso de nosso pregador teríamos a igual 
      título a tática dos conjuntos contrastantes ou antitéticos, 
      de resto com o mesmo sentido).
(1) HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes 
      do Brasil.Livraria José Olímpio, Rio de Janeiro
      (2) D’ORS, Eugênio. Del Barroco. Rosa 
      e Baelo. Milão,1945
      (3) VIEIRA, Antônio. Sermões. Vol. 
      I, Lello e Irmãos. Porto, 1945. p. 19
      (4) Id. Ib.
      (5) FIGUEIREDO, Fidelino. História da Literatura Clássica. 
      ed. Anchieta. São Paulo, 1946
      (6) ALONSO, Dâmaso, e BONSANÕ, Carlos. Seis Calas 
      en la Expression Literaria Españhola. Gedos. Madri, 
      1957 
 HADDAD, Jamil Almansur
      in Introdução - Os Sermões P. Antônio 
      Vieira. 
      ed. Melhoramentos. São Paulo,1963.