NA VOZ DA CRÍTICA
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1. ESCULPINDO UMA PERSONALIDADE IMPAR
Antônio Lopes, SJ
ESTUDO, MAGISTÉRIO, MISSÃO
Feitos os
votos, os superiores não o libertaram do longo período dos
estudos. No entanto, continuou a deslocar-se, nos tempos livres, às
aldeias dos seus queridos escravos.
E é na perspectiva
da sua incipiente "utopia" sobre a construção
do Reino de Deus que empreende os seus estudos
de Humanidades, primeiro como aluno e logo a seguir como professor de Retórica
em Olinda.
[BARROS,
André de, ibidem, pp. 12-15]
É certamente deste
tempo que datam os seus trabalhos sobre Séneca
"De
idade de dezoito anos me fizeram mestre de Primeira, aonde ditei, comentei,
as tragédias de Sêneca, de que até então não
havia comento",
[Obras Inéditas, I (Lisboa, 1856), p. 43]
e sobre as Metamorfoses de Ovídio, as referências que mais
tarde fará a Heráclito, Demócrito, Vergílio,
às Sibilas, Horácio, Tito Lívio, Suetónio, Plutarco,
Salústio, Cícero, aos dois Plínio, Platão, Heródoto,
Homero, Sófocles, Eurípedes, Pitágoras, Estrabão,
Tácito, Xenofonte e a tantos outros, quando falar do Quinto Império.
Talvez tenham já,
nesta altura, começado a chegar-lhe às mãos livros
sobre as utopias; pois é sabido que os séculos XVI e XVII
são, por excelência o período das utopias. À
exceção das de Thomas More (1516) Tomás Campanella
(1602) e Francis Bacon (1627), são quase todas de origem protestante,
como por exemplo a de Martin Bucer (1550), a de Johann Eberlin (1520), a
de Kaepar Stibilin (1555), a de Johann Valentin Andreae (1612), a de Joseph
Hall (1604), a de Robert Burton (1621), a de Sir Philip Sidney (1590) ou
as do século XIX, inspiradas no chamado socialismo utópico,
como a de Saint-Simon, a de Fourier, a de Owen etc.
É sabido que, quando
Vieira teve de entregar na Inquisição o que tinha preparado
sobre a sua Apologia, a 14 de Setembro de 1665, apenas atirou para a Mesa
um enorme molho de folhas de papel em total desordem, que foram depois anexadas
em apêndice ao Processo. Vários especialistas, que consultaram
essas folhas com minúcia, testemunham que algumas delas eram de papel
muito amarelecido pelo tempo e pare¬ciam notas tiradas por ocasião
dos seus primeiros estudos na Companhia
[
Processo, I Pasta, II Pane, fls. 75-75v (anexos 27 e 34)].
Uma passagem da Sentença
tem estas palavras textuais:
"... apresentou
trinta e tantos cadernos de folhas de papel, que mostravam serem já
escritos há muitos anos, e outros depois de principiada a causa
"
[Sentença,
Ed. Sá da Costa, IV, p. 200]
Seguiram-se, depois, os
seus estudos de Filosofia e de Teologia. Estando já nos cárceres
da Inquisição, Vieira evoca estes tempos, quando responde
aos Inquisidores que o acusam de se meter "em cavalarias
mais altas do que permitiam o seu saber e talento".
Vieira responde modestamente
que a culpa:
"foi dos meus Prelados, pela formação em
que me orientaram...; indo estudar, da idade de 20 anos, no mesmo tempo
compus uma filosofia própria; e passando a teologia me consentiram
os meus Prelados que não tomasse postila e que eu compusesse por
mim as matérias"
[Obras
Inéditas, Lisboa, 1856,I, p. 43].
ANTÔNIO LOPES,
SJ
Vieira, o Encoberto.Cascais, Princípia, 1999.
2. GÊNESE DO SEU FORTE IDEÁRIO
A razão
que deu aos superiores foi que não conseguia adaptar-se ao método
tradicional das "postilas". Ao ver a sua extraordinária
capacidade e o seu sentido de responsabilidade, logo lho permitiram os superiores.
Mas, porventura, talvez não fosse esta a única razão
que lhe tirava a liberdade de investigação e lhe afogava a
criatividade. Podemos supor na linha da nossa hipótese que continuava
a seduzi-lo e, cada vez mais, à medida que consultava novos livros,
o tema do Reino de Deus, a que se sentira chamado de modo muito especial
nos Exercícios Espirituais.
Podemos supor ainda, na
linha da nossa hipótese, e com muito maior fundamento que, ao ler
agora assiduamente as Constituições da sua ordem se sentia
cada vez mais confirmado pelo método de evangelizar do próprio
fundador, que sobretudo na Parte VII, expõe um rigoroso método
para ser enviado, pelo Papa ou pelos Superiores, para a vinha do Rei Eterno,
método que aliás já vem esboçado, nos próprios
Exercícios Espirituais, nas duas exposições sobre "O
Discernimento dos Espíritos"
[Ibid.
pp. 313-327; pp. 328-336].
Mas agora, nas Constituições,
numa perspectiva diferente: não tanto para eleição
do estado de vida, mas para discernir os meios mais eficazes, a empregar
pelos superiores e pelos súbditos, para transformar o mundo no Reino
de Cristo. A intencionalidade do fundador é que o jesuíta
não caia na tentação de se pôr a construir "o
seu reino pessoal" e "à sua maneira", mas sim o Reino
de Deus, à maneira de Jesus e para os homens. É à volta
deste princípio essencial que se vão desenvolver todas as
linhas de força e todos os pormenores das Constituições.
Vieira, talvez por ver aquilo
em que caíram quase todas as utopias, a construção
de uma cidade terrestre à imagem e semelhança das ambições
humanas acres¬centa um meio de discernimento importante: a meditação
e o estudo das profecias que nos revelam o mistério do Reino, que
há de tornar o homem feliz já na Terra. São riquíssimas
e abundantes essas passagens do Antigo e do Novo Testamento.
No que diz respeito a estudos
bíblicos, Vieira refere-se aos comentários de Josué
e aos cantares de Salomão: "...e nos dois anos seguintes,
comecei um comentário literal e moral sobre Josué, e outro
sobre os Cantares de Salomão em cinco sentidos"
[Obras
Inéditas, I, p. 43. Não há até agora qualquer
indício de
terem chegado até nós qualquer destes comentários].
Logo desde os primeiros
sermões, podemos tirar a prova real de que Vieira dedicou a maior
parte dos seus estudos à Bíblia e à leitura de todos
os comentadores, precisamente para não cair numa ficção
puramente humana do Reino. É que tem plena consciência de que
não é profeta e de que o conhecimento dos segredos do Reino
é dom que não se alcança com estudo e esforço:
“Eu conheço
e confesso que a não tenho (a luz da profecia), nem basta estudo
ou diligência alguma para a alcançar porque só Deus
a pode dar e dá, quando e a quem é servido”
[História
do Futuro, I, p. 124, em Obras Escolhidas,
Ed. Sá da Costa].
ANTÔNIO LOPES,
SJ
Vieira, o Encoberto.Cascais, Princípia, 1999.