Sermão de Santa Tereza
Nota Introdutória:
Informação Histórico-Epistemológica
O Sermão
de Santa Teresa foi pregado a Igreja do Colégio dos Jesuítas,
nos Açores, na Ilha de São Miguel, no dia 15 de outubro de
1654. Vieira aí chegou após terrível naufrágio
seguido de saque de piratas holandeses. Estes recolheram os 41 (quarenta
e um) náufragos e os deixaram na Ilha Graciosa, após tirar-lhes
tudo o que tinham: bagagens e roupas do corpo. Por isso disse o orador que
se lhe falta a eloqüência de São Paulo, é eloqüente
“chegar a esta ilha vomitado das ondas” (1).
O testemunho do acontecimento
prova como Deus protege quem se arrisca pela caridade, pelo seu próximo.
O fato de todos se terem
salvado da morte certa neste naufrágio foi tão extraordinário
que Vieira se declara eternamente grato ao seu Deus pelo “milagre”:
“muito ingrato seria eu, e serei a Deus se assim o não confessara,
e assim o não confessar toda a vida e toda a eternidade” (28).
Historicamente, o Sermão
de Santa Teresa situa-se num contexto muito difícil e tenso
para Vieira. Situa-se na sua fase missionária na Amazônia.
Vieira havia, pouco antes, no dia 13 de Julho de 1654, pronunciado um dos
seus mais vibrantes sermões: O Sermão de Santo Antônio
(aos Peixes) – O Sermão das Verdades, pregado em São
Luís do Maranhão. Produziu um abalo sísmico.
SERMÃO
DE
SANTA TERESA
Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudente.
(Mt. 25,2)
[Cinco eram néscias e cinco prudentes]
I
1. E quantas vezes, os que pareceram acasos
foram conselhos altíssimos da Providência Divina! Acaso parece
que estava Cristo encostado sobre o poço de Sicar, e era conselho
da Providência divina, porque havia de chegar ali uma mulher —
a Samaritana — que se havia de converter. Acaso parece que entrava
Cristo pela cidade de Naim, e era conselho da providência divina,
porque havia de sair dali um moço defunto, que havia de ressuscitar.
Acaso parece que passeava Cristo pelas praias do
Mar de Galiléia, e era conselho da Providência divina, porque
havia de chamar dali a dois pescadores, que, deixadas as redes e o mundo,
o haviam de seguir. Parece-me, senhores, que me tenho explicado.
Acaso, e bem acaso, aportei às
praias desta ilha; acaso e bem acaso entrei pelas portas desta cidade; acaso
e bem acaso me vejo hoje neste púlpito, que é verdadeiramente
o poço de Sicar, onde se bebem as águas da verdadeira doutrina.
E quem me disse a mim nem a vós se debaixo
destes acasos se oculta algum grande conselho da Providência divina?
Quem nos disse se haverá nesta Naim algum mancebo morto no seu pecado,
que por este meio haja de ressuscitar? Quem nos disse se haverá nesta
Samaria alguma mulher de vida perdida, que por este meio se haja de converter?
Quem nos disse se haverá nesta Galiléia algum Pedro ou algum
André, engolfados no mar deste mundo, que por este meio haja de deixar
as redes e os enredos?
Bem vejo que a força dos ventos e a violência
das tempestades foi a que me trouxe a estas ilhas, ou me lançou e
arremessou nelas. Mas quem pode tolher ao autor da graça e da natureza,
que obre os efeitos de uma pelos instrumentos da outra, e que com os mesmos
ventos e tempestades faça naufragar os remédios para socorrer
os perigos? Obrigado da tempestade e do naufrágio chegou S. Paulo
à Ilha de Malta, e do que ali então pregou o apóstolo,
tiveram princípio aquelas religiosas luzes com que hoje se alumia
e se defende a Igreja.
Bem conheço quão falto estou da eloqüência,
e muito mais do espírito de São Paulo; mas na ocasião
e nas circunstâncias presentes, ninguém me pudera negar uma
grande parte de pregador, que é chegar a esta ilha vomitado das ondas.
2. Uma das coisas mais admiráveis, ou
a mais admirável de todas as que se lêem em matéria
de pregação, é o grande e universal fruto que fez a
do profeta Jonas em Nínive. As maldades da cidade eram mais enormes,
o povo gentílico e sem fé, o pregador estrangeiro e não
conhecido, o sermão brevíssimo, desarmado e seco, sem prova
de razão nem de Escritura, e, contudo, que este sermão e este
pregador convertesse o rei e a corte, e a populosíssima cidade a
uma penitência tão geral, tão extraordinária,
tão pública?
Mas era Jonas um pregador vomitado pelas ondas.
Pregava nele a tempestade, pregava nele a baleia, pregava nele o perigo,
pregava nele o assombro, pregava nele a mesma morte, de que duas vezes escapara.
Por certo que não foi tão grande
a tempestade de Jonas como a em que eu e os companheiros nos vimos. O navio
virado no meio do mar, e nós fora dele, pegados ao costado, chamando
a gritos pela misericórdia de Deus e de sua Mãe.
Não apareceu ali baleia que nos tragasse, mas
apareceu — não menos prodigiosamente naquele ponto —
um desses monstros marinhos que andam infestando estes mares. Ele nos tragou,
e nos vomitou depois em terra.
Vomitado assim em terra Jonas, o tema que tomou
foi:
Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur (Jn. 3, 4):
Daqui
a quarenta dias se há de subverter Nínive.
— Em terra onde os terremotos são
tão contínuos e tão horrendos; em terra onde os montes
são vivos, e comem e se sustentam de suas próprias entranhas,
e estão lançando de si os incêndios a rios; em terra
onde o fogo é mais poderoso que o mesmo mar oceano, e levanta no
meio dele ilhas e desfaz ilhas; em terra onde povoações inteiras
em um momento se viram arruinadas e sovertidas, que tema mais a propósito
que o de Jonas: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur? Se Nínive
se sovertesse, seria milagre e castigo, mas, se se sovertesse — o
que Deus não permitirá — esta cidade, podia ser castigo
sem milagre.
Supostas todas estas circunstâncias, mui
a propósito vinha o tema ao pregador e ao lugar; mas é o dia
mui de festa para assunto tão triste e tão funesto.
3. Gloriosa Teresa, terra onde vós estais
e onde a devoção dos moradores tanto vos venera, segura pode
estar de ser subvertida. Convertida, sim; subvertida, não. Por meio
de Jonas converteu Deus a Nínive, e era Jonas tão imperfeito
naquele tempo, que desobedecia a Deus e fugia dele. Mas tanto pode a força
da graça! Quando vós, santa, vivíeis
na terra, o maior emprego de vossas orações era encomendar
os pregadores a Deus, para que convertessem e levassem a ele muitas almas,
como vós levastes tantas. Oh! quem merecera nesta hora um raio da
vossa luz e um assopro do vosso espírito! Não é menor
hoje a vossa caridade, nem menos poderosa a vossa valia. Intercedei, gloriosa
virgem, com a virgem e Mãe de vosso Esposo, para que me alcance do
seu esta graça.
Bem sabeis, santa, que graça é a
que eu desejo: não aquela graça que faz soar bem as palavras
nos ouvidos, não aquela graça que deleita e suspende os entendimentos,
senão aquela graça que acende as vontades, aquela graça
que abranda, que rende, que fere, que inflama os corações.
Desta graça nos alcançai da Virgem Santíssima quanta
ela vê que há mister a dureza de nossas almas e a frieza da
minha. Ave Maria.
II
Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes
(Mt. 25,2)
[Cinco eram néscias e cinco prudentes]
4. Com os olhos no céu, com os olhos na
terra e com os olhos no Evangelho determino pregar hoje, que é o
modo com que nas festas dos santos se deve pregar sempre. Deve-se pregar
com os olhos no céu, para que vejamos o que havemos de imitar nos
santos; deve-se pregar com os olhos na terra, para que saibamos o que havemos
de emendar em nós; e deve-se pregar com os olhos no Evangelho, para
que o Evangelho, como luz do céu na terra, nos encaminhe ao que havemos
de emendar na terra e ao que havemos de imitar no céu.
O que hoje nos põe diante dos olhos o Evangelho
são dez virgens, cinco néscias e cinco prudentes, e isto é
o que dizem as palavras que propus:
Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes.
[Cinco eram néscias e cinco
prudentes]
Mas quando olho — (coisa notável!)—
quando olho para as virgens prudentes com os olhos no céu, e quando
olho para as néscias com os olhos na terra, vejo-as com os apelidos
trocados. As prudentes, vistas com os olhos no céu, parecem-me néscias;
e as néscias, vistas com os olhos na terra, parecem-me prudentes.
Isto é o que se me afigura hoje, e esta será a matéria
do sermão: que as prudentes, vistas com os olhos no céu, foram
néscias, e que as néscias, vistas com os olhos na terra, foram
prudentes. Mais claro: que as virgens prudentes, comparadas com Santa Teresa,
foram néscias:
................Quinque ex eis erant fatuae
................[cinco delas
eram néscias],
e que as virgens néscias comparadas conosco, foram
prudentes:
................ Et quinque
prudentes.
................ [e cinco eram
prudentes].
III
5. A primeira coisa em que as virgens prudentes, comparadas com
Santa Teresa, foram néscias, é que as virgens prudentes
dormiram quando tinham obrigação de vigiar, e Santa Teresa
vigiou quando tinha segurança para dormir. A obrigação
que todas as virgens tinham de vigiar, declarou Cristo no fim do Evangelho,
quando disse:
................ Vigilate,
quia nescitis diem, neque horam (Mt. 25, 13):
................Vigiai, porque
não sabeis o dia nem a hora.
— Mas, poderá
alguém replicar, e não sem fundamento, que estas virgens,
ainda que não sabiam a hora, ao menos sabiam o dia, porque foram
convidadas para o dia das bodas. Contudo, é certo que não
sabiam nem o dia nem a hora: não sabiam a hora em que havia de
vir o Esposo, porque, havendo muito que esperavam, veio a meia-noite:
Media autem nocte (Mt. 25,6); e não sabiam o dia, porque
quem veio à meia-noite, se viera um pouco antes, vinha em um dia,
e se viera um pouco depois, vinha em outro. E como o Esposo veio ao ponto
da meia-noite, em que um dia natural acaba e o outro começa, ainda
depois de vir não se sabe em que dia veio. — Não
se sabe se foi no dia dantes ou no dia de depois; nem se sabe se foi
em ambos os dias ou em nenhum deles, porque o ponto da meia-noite é
instante, e aquele instante não é parte de nenhum dos dias,
porque não é tempo.
Sendo, pois, assim, que as virgens não
sabiam o dia nem a hora, que contudo se descuidassem e adormecessem todas,
néscias e prudentes:
................ Dormitaverunt
omnes, et dormierunt (Mt. 25, 5),
................ [todas cochilaram
e adormeceram]
não há dúvida que foi grande fraqueza: nas néscias
foi ser o que eram, nas prudentes foi serem néscias. No mesmo
Evangelho o temos.
6. Diz o Evangelho que saíram as dez virgens a receber o Esposo,
e que, tardando o Esposo, adormeceram todas. Mas notai: quando diz que
saíram, faz distinção de umas a outras, e diz que
umas eram néscias e outras prudentes:
................ Quinque autem
ex eis erant fatuae, et quinque prudentes.
................[Cinco
eram néscias e cinco prudentes].
Quando, porém, diz que adormeceram e dormiram, não faz
distinção alguma; de todas fala pela mesma linguagem:
................Dormitaverunt
omnes, et dormierunt.
................ [todas cochilaram
e dormiram]
Pois, se o Evangelho faz distinção
de prudentes a néscias quando saíram, por que não
faz a mesma distinção de prudentes a néscias quando
dormiram? Porque quando saíram foram diferentes no cuidado, e
quando dormiram foram iguais no descuido: quando saíram foram
diferentes no cuidado, porque cinco levaram óleo nas redomas,
e cinco não; quando dormiram foram iguais no descuido, porque
umas cinco e outras cinco, nenhuma resistiu ao sono, todas dormiram.
E como ao sair cinco foram cuidadosas e cinco descuidadas, por isso fala
delas com distinção o evangelista, e a cinco chama néscias,
e a cinco prudentes; porém, ao dormir, como todas foram descuidadas,
e nenhuma houve que vigiasse, por isso fala de todas sem distinção,
porque não houve entre elas néscias e prudentes: todas
foram néscias.
7. Todas as dez virgens foram néscias
neste caso, se bem as prudentes menos néscias que as néscias,
porque as néscias dormiram sem desculpa, as prudentes podiam dizer
que quem está prevenido não dorme. Nas néscias tudo
dormia, nas prudentes dormiam os olhos, mas vigiavam as redomas.
Enfim, as virgens prudentes comparadas com as néscias,
foram prudentes, porque tiveram mais prevenção, mas, comparadas
com Santa Teresa, foram néscias. Por quê? Porque elas dormiram
tendo obrigação de vigiar, pois não sabiam o dia nem
a hora, e Santa Teresa vigiou tendo segurança para dormir, porque
sabia o dia e a hora, e ainda mais.
IV
8. Um dos maiores favores que Santa Teresa recebeu
de Deus, e em que excedeu a todos ou quase todos os santos, foram dois secretos
que o mesmo Senhor lhe revelou, ocultos a todos os homens: o primeiro, quando
havia de morrer; o segundo, que se havia de salvar. Alguns santos tiveram
revelação de sua morte; Santa Teresa teve-a de sua morte e
de sua predestinação.
Por isso digo que Santa Teresa vigiou sabendo mais
que o dia e mais que a hora: soube o dia e a hora, porque soube quando havia
de morrer, e soube mais que o dia e mais que a hora, porque soube também
que, morrendo, se havia de salvar. E que sobre estas duas ciências,
sobre a ciência e certeza de quando havia de morrer, e sobre a ciência
e certeza de que se havia de salvar, vigiasse, contudo, Santa Teresa sem
adormecer nem se descuidar um momento, antes fazendo uma vida tão
rigorosa e tão maravilhosa, esta é a maior maravilha de toda
a sua.
9. Todos os homens neste mundo vivemos
com duas ignorâncias: a primeira da morte, a segunda da predestinação.
Todos sabemos que havemos de morrer, mas ninguém sabe o quando. Todos
sabemos que nos havemos de salvar ou condenar, mas ninguém sabe qual
destas há de ser. E por que ordenou Deus que a morte fosse incerta
e a predestinação duvidosa? Não pudera Deus fazer que
soubéssemos todos quando havíamos de morrer, e se éramos
ou não predestinados? Claro está que sim; mas ordenou com
suma providência que estivéssemos sempre incertos e duvidosos
da predestinação, para que a morte nos suspendesse sempre
o temor com a incerteza, e a predestinação nos sustentasse
a perseverança com a dúvida.
Se os homens souberam quanto haviam de viver
e quando haviam de morrer, que seria dos homens? Se eu, sabendo que posso
morrer hoje, me atrevo a ofender a Deus hoje, quem soubesse que havia de
viver quarenta anos, como não ofenderia confiadamente a Deus ao menos
os trinta e nove? Por esta causa ordenou Deus que a morte fosse incerta,
e pela mesma que a predestinação fosse duvidosa. Se os homens
soubessem que eram precitos, como desesperados haviam-se de precipitar mais
nas maldades; se soubessem que eram predestinados, como seguros haviam-se
de descuidar na virtude; pois, para que os maus sejam menos maus, e os bons
perseverem em ser bons, nem os maus saibam que são precitos, nem
os bons saibam que são predestinados.
Não saibam os maus que são precitos,
para que não se despenhem como desesperados, nem saibam os bons que
são predestinados, para que se não descuidem como seguros.
De maneira que estas duas ignorâncias, a ignorância da morte
e a ignorância da predestinação, são as bases
do temor da morte e do temor do inferno, e estes dois temores, as duas mais
fortes colunas sobre que todo o edifício da vida cristã se
sustenta, para que os homens não vivessem como néscios, mas
obrassem como prudentes.
Porém a Santa Teresa tratou-a Deus
com tal exceção, e fez da lealdade do seu amor tão
diferente confiança, que em lugar destas duas ignorâncias lhe
deu as duas ciências contrárias: a ciência de quando
havia de morrer, e a ciência de que se havia de salvar, porque sabia
que nem a ciência e certeza da hora da morte lhe havia de diminuir
a vigilância, nem a ciência e segurança da salvação
lhe havia de entibiar o cuidado. Saiba Teresa quando há de morrer,
e saiba que se há de salvar, para que, obrando sobre estas duas ciências,
saiba também o mundo quão fielmente me ama.
10. Tendo o evangelista São João escrito
as ações da vida de Cristo, e passando a escrever as da sua
morte e vésperas dela, diz assim:
Ante diem festum Paschae, sciens Jesus quia venit hora ejus:
Antes
do dia da Páscoa, sabendo Jesus que
era
chegada a hora de sua morte: (Jo. 23,1)
Cum dilexisse suos, qui erant in mundo, in finem dilexit
eos
Como
tivesse amado aos seus em todo o tempo da vida,
neste
fim os amou mais. (Ibid. 1)
— Vai por diante o evangelista:
Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit:
E
sabendo mais que ia para o céu e para Deus,
assim
como de lá tinha vindo: (Ibid. 3)
Ponit
vestimenta sua, et caepit lavare pedes discipulorum:
Tirou
o Senhor os vestidos, e, pondo-se em trajos de servo,
começou
a lavar os pés aos discípulos. (Ibid. 4)
— E assim vai continuando tudo o que o Senhor obrou naquelas horas
últimas e tão cheias.
De modo que, antes de São João descrever
as últimas e maiores ações de Cristo, o reparo que
fez e o prólogo de que usou, foi advertir e ponderar que tudo fizera
o Senhor com duas ciências particulares:
................ com ciência
da hora de sua morte:
................ Sciens quia venit
hora ejus
................ — e
com ciência de que ia para o céu:
................ ejus Sciens
quia ad Deum vadit.
— Mas, com que fundamento e com que energia
pondera o evangelista neste passo que obrava Cristo com estas duas ciências?
Para sabermos que Cristo, enquanto Deus e enquanto homem, tinha ciência
de todas as coisas presentes e de todas as futuras, não era necessário
que o Evangelista no-lo advertisse. Pois, por que nota e pondera tanto neste
passo que tinha Cristo ciência do dia e da hora da sua morte, e ciência
de que ia e havia de ir ao céu?
A razão foi porque Cristo, Senhor nosso,
viveu com tanta cautela e vigilância em toda a sua vida, como se não
tivera conhecimento da hora de sua morte, e preparou-se com tantas diligências
e tão grandes e heróicas obras para a morte, como se não
tivera conhecimento nem certeza de sua salvação. E que
tendo
Cristo ciência e certeza da salvação:
Sciens
quia ad Deum vadit,
— fizesse tantas diligências para a morte, e que
tendo ciência e certeza do dia e da hora da morte
Sciens
quia venit hora ejus
— se portasse com tanta cautela e vigilância na vida?
Foram umas circunstâncias de virtude e exemplo
tão relevantes estas, ainda na vida e na morte do mesmo Cristo, que
quis ele que as advertisse e ponderasse o evangelista, e que nós
reparássemos muito nelas:
Sciens
quia venit hora ejus, in finem dilexit eos:
Sciens
quia ad Deum vadit, ponit vestimenta sua.
[Sabendo
Jesus que chegou a sua hora, amou os seus até ao fim.
Sabendo
que voltava para Deus, tirou suas vestes...]
11. Ah! prudentíssima virgem Teresa,
que com este dobrado Sciens [sabendo], com estas mesmas
duas ciências fizestes néscias as que o Evangelho canoniza
de prudentes!
Vigilate, quia nescitis diem neque horam.
[Vigiai
porque não sabeis o dia nem a hora].
Elas, não sabendo o dia nem
a hora, dormiram; vós, sabendo mais que o dia e mais que a hora,
vigiastes. As duas ciências que Cristo tinha por natureza e por graça,
tinha Santa Teresa por revelação. Sabia por revelação
o dia e a hora de sua morte:
Sciens quia venit hora ejus
[sabendo
que chegou a sua hora]
sabia por revelação que se havia de salvar e gozar de Deus:
Sciens quia ad Deum vadit
[sabendo
que voltava para Deus]
e vivia com tanta vigilância sobre suas ações, como
se o não soubera, antes receara muito o contrário. Sabia que
lhe havia de durar ainda a vida muitos anos, e vivia com tanta cautela como
se temera morrer naquele dia. Sabia que era predestinada e que se havia
de salvar, e preparava-se com tão extraordinárias obras para
a morte como se duvidara muito de sua salvação.
Enfim, obraram em Teresa estas duas ciências
o que não chegam a obrar em nenhum homem aquelas duas ignorâncias,
não tendo a esposa de Cristo outro paralelo das finezas de seu amor
neste caso mais que as da próprio Esposo.
12. Se Cristo fora um homem como nós, e não
soubera quanto lhe havia de durar a vida nem se havia de ir ao céu
depois da morte, que na vida fizesse o que fez, e antes da morte se dispusesse
como se dispôs, menos admiração fora. Mas que tendo
os anos e dias da vida sabidos, e o céu certo e seguro, que desde
o princípio da vida se dedicasse a tais extremos de pobreza, de humildade,
de sujeição, de perseguições, de trabalhos,
e que antes da morte — com maior e mais estupendo exemplo —
dispa os vestidos, lave os pés aos discípulos, ore com tanta
eficácia no Horto, emudeça as injúrias, sofra os açoites
e espinhos, peça perdão pelos inimigos, e encomende sua alma
nas mãos do Pai com vozes e com lágrimas? Grande circunstância,
e de grande valor e admiração nas obras de Cristo!
13. Vede agora se será também grande nas de Teresa. Que comece Teresa desde menina, juntamente com o uso da razão o uso da penitência e das virtudes, e que, sabendo quando há de morrer e que lhe restam muitos anos de vida, não afrouxe um momento, antes acrescente rigores? Que comece Teresa a fazer por sua salvação mais que fizeram os maiores santos, e que, sabendo de certo que é predestinada e que se há de salvar, se ponha a retratar suas ações na melhor e maior idade da vida pelas que Cristo obrou nas vésperas da morte? Que, tendo o céu seguro, despisse os vestidos, não do mundo, mas da religião moderada, e descalçasse os pés, e se vestisse das primitivas asperezas de Elias? Que, tendo o céu seguro, se retirasse totalmente do trato humano, e gastasse não uma, não duas e três horas, senão toda a vida em oração e união com Deus tão alta? Que, tendo o céu seguro, se disciplinasse com cadeias de ferro, e dos espinhos de que seu Esposo formou a coroa, tecesse ela cilícios? Que, tendo o céu seguro, não falasse nem respondesse uma palavra contra os que tão gravemente a infamaram e perseguiram? Que, tendo o céu seguro, não só perdoasse a seus inimigos, mas orasse eficazmente por eles a Deus e lhes alcançasse mercês? E que, tendo o céu seguro, chorasse os pecados que não tinha, como se fosse a maior pecadora?
14. Até aqui, Teresa, as imitações
de vosso Esposo. Não sei se passe daqui, mas quero passar, pois ele
quis que vós passásseis. Que Tenha Teresa o céu seguro,
e que quando mais a apertavam as dores terríveis de suas enfermidades,
pedisse a Deus lhas dilatasse até o fim do mundo? Que tenha Teresa
o céu seguro, e que viva com tanto escrúpulo e delicadeza
de consciência, que não cometesse nem um pecado venial com
advertência? Que tenha Teresa o céu seguro, e que diga a Deus:
Aut pati, aut mori: Senhor, ou padecer ou morrer
— estimando mais a vida com tormentos que a mesma glória a
que havia de subir morrendo? Finalmente, que tenha Teresa o céu seguro,
e que se vá livremente a padecer as penas do inferno em vida, porque
as não havia de padecer depois da morte?
Esta circunstância é, gloriosa Teresa,
a que faz singulares vossas vitórias, ainda aquelas em que outros
santos se pareceram convosco. Eles obraram, e vós obrastes; mas eles,
como nós, incertos da morte; vós, como Cristo, com certeza
da vida. Eles, como nós, como céu duvidoso; vós, como
Cristo, com o céu seguro. Eles, como nós, entre o temor da
morte e do inferno; vós, como Cristo, livre e superior a todos os
temores.
V
15. Toda a santidade e toda a virtude deste mundo,
bem considerada, é temor. A maior e mais qualificada façanha
que neste mundo se fez Por Deus foi a de Abraão. Leva Abraão
seu filho Isac ao monte, ata-o sobre a lenha do sacrifício, tira
pela espada para lhe cortar a cabeça; manda-lhe Deus suspender o
golpe, e diz estas palavras:
Nunc cognovi quod times Deum (Gên. 22, 12):
Agora
conheço, Abraão, que temes a Deus.
— Que temes a Deus? Pois, como assim? Quando
Abraão por amor de Deus sacrifica seu próprio filho, quando
Abraão por amor de Deus corta as esperanças de sua casa, quando
Abraão por amor de Deus mata a seu mesmo amor, parece que então
havia de dizer Deus: Agora, Abraão, conheci que me amas. Mas: agora
conheci que me temes? Sim, porque, bem considerada aquela façanha
de Abraão, e vista por dentro, como Deus a via, teve mais de temor
que de amor. Bem via Abraão que matar a Isac era matar-se a si mesmo,
mas via também que se o não matava, desobedecia, que se desobedecia,
ofendia a Deus, que se ofendia a Deus, condenava-se, e este temor de se
não condenar o pai, foi o que pôs a espada na garganta ao filho.
Quando o pai e o filho iam caminhando para o sacrifício, diz o texto
que levava Abraão em uma mão a espada, e na outra o fogo:
Ipse vero
portabat in manibus ignem et gladium (Gên. 22,6)
[levava
nas mãos o fogo e a espada]
Oh! que bons dois espelhos para aquela ocasião!
Na mão da espada ia a morte do filho; na mão do fogo ia o
inferno do pai. Se obedeces, hás de matar; se desobedeces, hás
de arder. O amor via-se ao espelho da espada, o temor via-se ao espelho
do fogo. — É possível, pai, que hás de matar
o teu filho único e amado? E que a vida e o sangue que lhe deste
a hás de derramar com tuas próprias mãos?
Não há de ser assim: viva Isac, e
caia rendido o braço da espada. Mas, se não morrer Isac —
replicava o temor — se Isac sacrificado se não abrasa neste
fogo, há de ir Abraão, por desobediente, arder no do inferno.
Ou arder Abraão, ou morrer Isac. Oh! que cruel dilema para um pai!
Mas, passar a espada pela garganta de Isac, é um momento —
instava o temor — e arder Abraão no inferno, é uma eternidade:
pois, padeça um instante o filho, para que não pene eternamente
o pai. Torne-se a levantar o braço da espada; e já ia descarregando
resolutamente o golpe, mas acudiu Deus. E como toda esta resolução
de tirar Abraão a vida a seu filho foi por temor de não ofender
a Deus e se condenar, por isso Deus não disse: — Agora conheci,
Abraão, que me amas, senão,
agora conheci que me temes:
Nunc
cognovi quod times Deum.
16. Tal foi o sacrifício celebradíssimo
de Abraão, e tais são ordinariamente quase todos os sacrifícios
dos homens, ainda os mais celebrados. Chegadas aos olhos de Deus, as maiores
finezas vêm a ser temor. Não assim os sacrifícios de
Teresa. Como sabia de certo que era predestinada, como estava segura que
se não havia de condenar, era santa sem temor de Deus. E que, não
temendo a Deus, ou não tendo que temer em Deus, fosse tão
timorata que nem um pecado venial cometesse com advertência, e que
não temendo a Deus, ou não tendo que temer em Deus, fosse
tão temente a Deus que lhe pedisse muitas vezes antes o inferno que
ofendê-lo? Este foi o subir mais alto da perfeição,
este foi o adelgaçar mais fino do amor de Teresa.
17. Os outros grandes amadores de Deus amam a
Deus com todos seus atributos: Santa Teresa amou a Deus com um atributo
menos. Revelando Deus a Santa Teresa que era predestinada e que se havia
de salvar, ficou Deus para com Teresa como se não tiver a justiça,
porque, suposto o decreto da predestinação, nem a justiça
divina a havia de condenar, nem podia. E amar a Deus com o atributo da justiça
menos, é o mais a que podia chegar a fineza e fidalguia do amor.
Por todos seus atributos deve Deus ser amado. Deve
ser amado por sua onipotência, porque nos criou, e por sua bondade,
porque nos remiu; deve ser amado por sua sabedoria, porque nos governa,
e por sua providência, porque nos sustenta; deve ser amado por sua
liberalidade, porque nos há de premiar, e por sua formosura, porque
o havemos de ver. E com isto ser assim, por nenhum atributo é Deus
mais amado que pelo da sua justiça. Se em Deus não houver
a justiça, e se na outra vida não houvera inferno, que poucos
haveria que amassem a Deus?
Epicuro, aquele grande sectário da gentilidade,
fez dois cânones notáveis na sua seita. O primeiro, que a bem-aventurança
consistia nas delícias desta vida; o segundo, que em Deus não
havia justiça. Ambos estes cânones foram errados, e ambos são
heréticos. Mas, suposto o erro do primeiro, esteve posto com grande
juízo o segundo. Pôs a bem-aventurança nas delicias
deste mundo, e logo negou o atributo da justiça a Deus, porque mal
podia ter por glória os gostos desta vida quem tivesse por fé
que podia ser por eles condenado na outra.
Daqui infiro eu que há cristãos mais
que epicuros. Que tenha por glória as delícias desta vida
quem tem por fé que não há justiça que o condene
na outra, erro é, mas erro com alguma desculpa; porém, que
creia eu de fé que Deus tem justiça, e que me há de
castigar e condenar na outra vida, e que, contudo, tenha por glória
as delícias e os gostos desta?
Vede se pode ter alguma desculpa tão grande
cegueira e tão bárbara.
18. Ora, isto que Epicuro teve por fé,
teve Teresa por privilégio. Epicuro fingiu a Deus sem atributo de
justiça, e Deus, revelando a Teresa que a não havia de condenar,
pôs-se para com ela no mesmo estado, como se a não tivera.
Mas, que diferentes conseqüências foram as de Teresa? Epicuro,
tanto que considerou a Deus sem justiça, teve por delícias
e por glória ofender a Deus, e Teresa, tanto que viu a Deus sem justiça,
então teve por glória só amá-lo e querer antes
mil infernos que ofendê-lo. Oh! que grande documento se pode tirar
daqui para amar e para temer a Deus!
Quando quisermos temer a Deus, havemos de lhe tirar
um atributo, e quando o quisermos amar, havemos-lhe de tirar outro: temer
a Deus como se não tivera misericórdia, amar a Deus como se
não tivera justiça. Assim amava Teresa, mas não temia
assim, porque não tinha que temer.
Para Teresa amar mais perfeitamente a Deus, e para
Deus ser mais perfeitamente amado, Deus— digamo-lo assim — despiu-se
de um atributo, e Teresa de uma virtude. Deus pôs de parte o atributo
da justiça. Teresa pôs de parte a virtude do temor. E como
Deus esteve com menos este atributo, e Teresa com menos esta virtude, nestes
dois menos consistiu a perfeição de mais amar e de ser mais
amado: em Deus a perfeição de ser mais amado, porque foi amado
sem ser temido; em Teresa a perfeição de mais amar, porque
amou sem temer.
E que tendo Teresa tão longe de si as causas
de temer, se vissem nela tão em seu ponto os efeitos do temor? O
cuidado, a cautela, a vigilância; tão solícita, tão
ansiosa, tão diligente; sem divertir, sem afrouxar, sem adormecer.
Por isso disse e torno a dizer que as prudentes do Evangelho, em sua comparação
foram néscias: elas, tendo tanta obrigação de vigiar,
dormiram:
Dormitaverunt omnes, et dormierunt;
[cochilaram
todas e dormiram].
Teresa, tendo tanta segurança para dormir, sempre vigiou:
Vigilate, quia nescitis diem, neque horam.
[Vigiai
porque não sabeis o dia nem a hora].
VI
19. A segunda coisa em que as virgens prudentes,
comparadas com Santa Teresa, foram néscias, é que as prudentes
em matéria de salvação quiseram só o que basta,
e Santa Teresa quis mais do que sobeja. Achando as virgens néscias
que se lhes apagavam as lâmpadas, chegaram-se às prudentes
a pedir que lhe quisessem dar o óleo que traziam prevenido:
Date nobis de oleo vestro.
[Para
que não suceda faltar a nós e a vós].
Responderam as prudentes que o fossem antes comprar, que podia suceder que
não bastasse para umas e mais para as outras:
Ne forte non suficiat nobis et vobis
[Dai-nos
do vosso azeite] (Mt. 25,8).
Isto responderam as prudentes, e nisto digo
eu que se mostraram néscias. Néscias? Antes parece que prudentes,
e prudentíssimas.
Se eu dissera que se mostraram avarentas, se eu
dissera que se mostraram ruins amigas, se eu dissera que se mostraram cruéis,
ou, quando menos, pouco piedosas, censura é esta que outros dão
às prudentes neste caso. Mas néscias, quando em matéria
tão importante não querem dar o que duvidam se lhes bastaria
ou não bastaria? Sim, e por isso mesmo, porque duvidaram se bastaria
ou não bastaria, quando haviam de duvidar se sobejaria ou não
sobejaria, porque em matéria de salvação, só
o que sobeja é bastante: o que basta não basta.
Bem vejo que haveis de ter esta minha proposição
por paradoxa, e tomara eu muito que não fora tão verdadeira
como é. Torno a dizer, cristãos, que, em matéria de
salvação, só o que sobeja é bastante: o que
basta não basta. Vá em todo o rigor da Teologia. É
certo que ninguém se pode salvar sem auxilio de Deus; é certo
que os auxílios de Deus uns são suficientes, outros eficazes;
é certo que só com os auxílios suficientes, enquanto
se lhes não ajunta a eficácia, ninguém se salvou nunca,
nem se há de salvar.
Argumento agora assim: os auxílios suficientes
chamam-se suficientes porque bastam para um homem obrar bem, e se salvar.
Pois, se são suficientes, se são bastantes, se bastam, como
se não salva nem há de salvar ninguém com eles, enquanto
somente tais? Por isso mesmo. Porque são somente bastantes, e em
matéria de salvação o que basta não basta. Há
de ser mais que bastante para bastar, porque só basta o que sobeja.
20. Nas obras é o mesmo que nos auxílios
— que são as duas coisas da parte de Deus e da nossa, sem as
quais não pode haver salvação. — E se não,
respondei-me e dai-me a razão por que se perde e se condena tanto
mundo, sendo tantos os que têm a verdadeira fé de Deus, e o
conhecem e a professam? A razão é — e julgue-o cada
um em si — porque na matéria da nossa salvação
nos contentamos só com o que basta, e nesta matéria o que
basta não é bastante.
Para um homem se salvar basta morrer bem. E para
morrer bem é necessário mais alguma coisa? É necessário
viver bem. Logo, para um homem em matéria de salvação
ter o que basta, é-lhe necessário muito mais do que basta,
porque para se salvar é-lhe necessário morrer bem, que é
muito, e para morrer bem é-lhe necessário viver bem, que é
muito mais. Mas porque nós queremos o morrer bem sem o viver bem,
porque queremos o que basta sem o que o faz bastar, por isso nos perdemos
e nos condenamos.
Desejamos os cristãos salvar-nos assim,
nem mais nem menos como o desejava o profeta Balaão:
Moriatur anima mea morte justorum (Núm. 23, 10):
Oh! morra a minha
alma — dizia Balaão — como morrem as dos justos
— Cala, néscio, diz Santo Agostinho.
Não hás de dizer: Morra a minha alma como a dos justos, senão:
Viva a minha alma como as dos justos, porque a regra da morte é a
vida. Quem vive bem, morre bem; quem vive mal, morre mal. E viver mal, como
tu vives, e depois morrer bem, como tu queres, é impossível.
Donde se segue que o morrer bem, que é o que basta para a salvação,
não basta: basta, porque quem morre bem salva-se; não basta,
porque para morrer bem é necessário viver bem. Tudo temos
na parábola do Evangelho.
21. Perderam-se as cinco virgens néscias,
e ficaram fora das bodas porque lhes faltou o óleo. E por que lhes
faltou? Porque o óleo que Bastava não bastou. Ora, vede se
está bem argüido. Quando à meia-noite se deu rebate às
virgens que vinha o Esposo, acordaram todas e acharam as néscias
que as suas lâmpadas se iam apagando:
Quia lampades nostre extinguuntur;
e
iam-se apagando as lâmpadas
porque estiveram ardendo até a meia-noite, enquanto elas dormiram.
Pois, vinde cá, mulheres: assim vós, que de néscias
tendes o nome, como vós que o tendes de prudentes, por que deixastes
gastar o vosso óleo debalde tantas horas? Enquanto não vinha
o Esposo, bastava que estivesse acesa uma lâmpada, donde depois se
acendessem as demais. Assim como nos olhos de uma sentinela vigia todo o
exército, assim na brasa de um morrão estão acesas
todas as armas. Isto mesmo me parece a mim que deviam fazer as virgens enquanto
esperavam pelo Esposo, principalmente tendo elas sentinela ao largo, ou
trazendo ele corredores diante, que foram os que bradaram:
Clamor factus est: Ecce sponsus venit
[Ouviu-se
um anúncio: Chegou o esposo].
Podiam ter uma lâmpada acesa e as nove apagadas,
com que se poupava muito óleo. E quando o não fizessem as
cinco, que o tinham de sobejo nas redomas, deviam-no fazer as outras cinco,
que não tinham essa prevenção, porque depois ninguém
lhes podia negar o fogo para acender as lâmpadas apagadas, assim como
lhes negaram o óleo para prover as vazias. Pois, se por esta via
se poupava o óleo e se escusavam todas as outras prevenções,
por que o não fizeram assim nem as néscias nem as prudentes,
antes tiveram as lâmpadas acesas toda a noite? Sabeis por quê?
Porque o lume daquelas lâmpadas, como dizem
todos os doutores, é a graça de Deus, e o óleo são
as obras nossas, com que nos havemos de salvar, e as lâmpadas de nossa
salvação, se não estão acesas antes de vir o
Esposo, quando vem o Esposo não se podem acender. As lâmpadas
do fogo material podem-se acender umas com o fogo das outras, e podem-se
acender naquele ponto, estando apagadas até então; porém,
as lâmpadas da graça e da salvação não
ardem com o fogo alheio, senão com o próprio, e se não
estão e perseveram acesas de antes, não se podem acender depois.
Cuidar alguém que há de ter a lâmpada
apagada toda a noite, e que a há de acender quando vier o Esposo;
cuidar alguém que há de estar em pecado toda a vida, e que
se há de pôr em graça na hora da morte, é engano
do demônio, e injúria que se faz à justiça e
à misericórdia de Deus. É verdade que para um homem
se salvar basta que Deus o ache em graça na hora da morte; mas para
estar em graça na hora da morte não basta buscá-la
naquela hora; é necessário tê-la na vida. De maneira
que para a salvação basta a graça da morte e sobeja
a graça da vida: mas para a graça da morte, que basta, é
necessário a da vida, que sobeja.
O óleo que tinham as virgens, segundo a
conta que nós lhes fazíamos e a que elas deviam de fazer,
bem bastava; mas, porque somente bastava, não bastou. Era necessário
que sobejasse para bastar, porque só no que sobeja se segura o que
basta.
22. Desafiava o gigante Golias, e afrontava
arrogante os esquadrões de Israel. E, querendo Davi sair ao desafio,
vai-se ao rio, toma cinco pedras, deita quatro no surrão, mete uma
na funda, faz tiro, e derruba o gigante. Pois, Davi, tirador famoso, se
para derrubar o gigante basta uma pedra, para que levais cinco? Porque quis
Davi segurar o tiro, e o que sobeja é o que segura o que basta. A
pedra que se tirou, derrubou o gigante; as que ficavam no surrão
seguraram o tiro.
Quem tem muitas balas segura o ponto, porque tira
com confiança; quem não tem mais que uma bala, e nela leva
ou a morte do inimigo ou a sua, treme-lhe o braço, porque tira com
receio. Por isso Davi levou cinco pedras, para que o tiro, com quatro fiadores,
fosse seguro. Donde eu infiro que mais se deve a vitória às
quatro do surrão que à da funda, porque o sucesso não
esteve no tiro, senão no acerto, e a da funda executou o golpe, as
do surrão, seguraram o braço. Uma pedra bastou, quatro sobejaram,
e as quatro que sobejaram fizeram que bastasse uma.
Assim que a pedra da funda, se bem se considera,
era bastante e não era bastante: era bastante porque bastou, e não
era bastante porque pudera não bastar. E como nas matérias
de duvidosa execução não basta o que só basta,
e só basta o que sobeja.
Por isso digo que as prudentes, na resposta que
deram às néscias, foram também néscias, porque
puseram a dúvida no bastar ou não bastar do óleo, quando
a deveram pôr no sobejar ou não sobejar. Comparadas as prudentes
com as néscias, foram prudentes porque as néscias não
tiveram cuidado de que sobejasse o óleo, nem ainda de que bastasse;
mas, comparadas com Santa Teresa, por mais que se chamem prudentes, foram
néscias, porque elas, em matéria de salvação,
contentaram-se com o que basta, e Teresa não se contentou nem com
o que basta, nem com o que sobeja.
Dai-me atenção.
VII
23. Para um homem se salvar basta não
fazer pecado mortal, e se também não fizer pecado venial,
sobeja; e Santa Teresa não se contentou com não cometer pecado
mortal, que é o que basta, nem se contentou com não cometer
pecado venial advertidamente, que é o que sobeja, senão que
fez voto a Deus de em todas as suas ações buscar sempre o
que fosse maior perfeição.
Valentia de espírito e de resolução
prodigiosa, e que de nenhum outro santo se lê semelhante. Mais. Para
uma alma se salvar basta obedecer a Deus, e se se conformar em tudo com
sua vontade, sobeja; e Teresa não só se contentou com obedecer,
que é o que basta, nem só com se conformar, que é o
que sobeja, senão que passou de conformidade a transformação,
e se transformou de tal modo na vontade divina, que ela e Cristo viviam
e amavam com um só coração. E em sinal disto lhe abriu
um serafim o lado esquerdo com uma seta de fogo, e lhe tirou nas farpas
dela o cadáver do coração que tivera, e lhe ficara
no peito sepultado.
Mais. Para uma alma se salvar, basta tratar da
salvação própria, e se tratar também da salvação
e reformação das almas alheias, dentro dos limites de seu
estado, sobeja; e Teresa não só se contentou com tratar da
salvação própria tão exatamente, que é
o que basta, nem com tratar da reformação e perfeição
das almas alheias dentro de seu estado, que é o que sobeja, mas,
excedendo os limites de mulher, passou a ser doutora da Igreja, e a escrever
livros de perfeição, e a ensinar e alumiar o mundo em pontos
de espírito e de contemplação altíssimos, a
que nenhuma pena antes da sua tinha chegado.
Mais. Para se salvar uma alma, basta sofrer os
trabalhos com paciência, e se chegar a tanta perfeição
que os sofra com alegria, sobeja; e Santa Teresa, sendo tantas as perseguições
e trabalho de sua vida, não só os sofria com paciência,
que é o que basta, nem só com alegria, que é o que
sobeja, senão que chegou a os receber e aceitar por prêmio
dos serviços que fazia a Deus. E assim, dizia de si: Nunca
hize a Dios algun servicio,
que
no me lo pagasse con algun trabajo.
[nunca
fiz a Deus algum serviço,
que não mo pagasse com algum trabalho]
Mais. Para uma alma se salvar basta amar aos inimigos,
e se chegar a lhes fazer boas obras, sobeja; e Santa Teresa, tendo tantos
inimigos e perseguidores, e ainda aqueles que por hábito e profissão
o não deveram ser, não só os amava, que é o
que basta, nem só lhes fazia bem, que é o que sobeja, senão
que tomava sobre si os seus males, e se oferecia a fazer a penitência
dos mesmos agravos que lhe faziam, sendo ela a que recebia a injúria
e a que a pagava mais.
Para uma alma se salvar; basta guardar a continência
e se guardar; e se votar virgindade perpétua, não só
basta, mas sobeja; e Santa Teresa, não só se contentou com
ser continente, que é o que basta, nem só com ser virgem,
que é o que sobeja, mas, competindo em certo modo com a Mãe
de Deus, passou a ser virgem e mãe juntamente. Digam-no tantos conventos
de anjos humanos, uns com nome de mulheres, outros com nome de homens, que
todos reconhecem a Santa Teresa por mãe. E para que esta eternidade
de Teresa se parecesse em tudo com a da Virgem Maria, assim como Cristo
teve duas gerações, uma eterna, em que nasceu de Pai sem mãe,
e outra temporal, em que nasceu de Mãe sem pai, assim a regra e religião
carmelitana regenerada teve duas gerações e dois nascimentos,
um antiqüíssimo, de pai sem mãe, quando nasceu de Elias,
e outro moderno, de mãe sem pai, quando nasceu de Teresa.
Finalmente, para uma alma se salvar basta
guardar os mandamentos de Deus, e se guardar também os conselhos
de Cristo, não só basta, mas sobeja; e Santa Teresa não
só guardou os mandamentos de Deus, que é o que basta, nem
só os conselhos, que é o que sobeja, mas fez muitas coisas
que não caem debaixo de preceito nem de conselho. Chorar os pecados
alheios e fazer penitência por eles, antepor o padecer por Deus ao
ver a Deus, jejuar sete meses no ano, e passar muitas vezes muitos dias
sem comer totalmente, querer estar no inferno até o dia do juízo,
só pela salvação de uma alma, isto não há
preceito que o mande, nem conselho particular que o persuada, e isto fez
Teresa.
Assim se não contentava aquele eminentíssimo
espírito, aquele imenso coração, aquela alma superior
a tudo e maior que tudo, assim senão contentava com o que basta,
assim se não contentava com o que sobeja, assim anelava sempre a
mais e mais. Mas baste ao nosso discurso quanto tem corrido em seguimento
deste glorioso não bastar, e descansemos um pouco na ponderação
ou na vista dele.
24. Ungiu a Madalena os pés e a cabeça
de Cristo, e disse o Senhor que aqueles ungüentos que admitia, eram
a unção antecipada de seu corpo para quando o levassem à
sepultura:
Mittens haec unguentum hoc in corpus meum,
ad
sepeliendum me fecit. (Mt. 26,12).
[Derramando
este bálsamo sobre o meu corpo
ungis-te-me
para a sepultura]
Morre Cristo na cruz, e diz o texto que veio José
e Nicodemos, e que ungiram o sagrado corpo com cem libras de ungüentos.
E a esta segunda unção estava presente a Madalena, que fizera
a primeira, e São João, que ouvira as palavras de Cristo e
as refere (Jo. 12,7 s). Pois se o corpo de Cristo já estava ungido
pela Madalena, e ungido para a sepultura: (ad sepeliendum me) —
por que o tornam a ungir agora José e Nicodemos?
Dir-me-eis que ungiram ao Senhor sobre estar ungido,
porque nas obras do serviço de Deus não nos havemos de contentar
com o que basta, senão com o que sobeja. Aceito a resposta. Mas ainda
tem outra maior instância. Ungido Cristo, levam-no à sepultura,
passa o sábado, em que não era lícito comprar nem vender,
amanhece o domingo, e ainda não era bem descoberta a manhã,
quando partem as Marias a comprar ungüentos, e vêm com eles para
ungirem outra vez ao Senhor:
Emerunt
aromata, ut venientes ungerent Jesus (Mc. 16,1)
[Compraram
aromas para irem embalsamar Jesus]
Há tal teimar a ungir como este? Não está
o corpo de Cristo ungido pela Madalena? Não está ungido por
José e por Nicodemos? Pois, se já está ungido uma vez
e outra vez, por que vêm as Marias a ungi-lo ainda? Porque o amor
acredita-se no supérfluo: quem ama pouco contenta-se com o que basta,
quem ama muito contenta-se com o que sobeja, e quem ama mais que muito,
nem com o que basta, nem com o que sobeja se contenta: ainda sobe mais acima,
ainda passa mais adiante.
Os ungüentos da Madalena bastavam, os ungüentos
de José e Nicodemos sobejavam, os ungüentos das Marias ficaram
superiores a todos, porque foram sobre os que bastavam e sobre os que sobejavam.
Isto fizeram aquelas santas mulheres, criadas na escola e na familiaridade
de Cristo, e isto fez a nossa Santa Teresa, criada na mesma escola e na
mesma familiaridade.
Por esta ação mereceram as Marias
ver os anjos e ver a Cristo ressuscitado primeiro que os apóstolos.
E ao merecimento destas ações se devem atribuir as grandes
e extraordinárias visões com que Deus favoreceu e honrou a
Santa Teresa, quase sobre todos os santos.
As visões das Marias meteram medo aos apóstolos
e discípulos, que era o pequeno rebanho de que então contava
a Igreja:
Mulieres
ex nostris terruerunt nos (Lc. 24,22)
[Algumas
mulheres que conosco estavam
nos
surpreenderam]
E as visões de Santa Teresa puseram
em medo e cuidado a mesma Igreja de Deus na sua maior grandeza, que por
isso foram tão examinadas e tão duvidadas, até que
se aprovaram de todo.
Mas as Marias viram uma só vez os
anjos; Santa Teresa viu anjos muitas vezes. As Marias viram só duas
vezes a Cristo, uma no dia da Ressurreição, outra no dia da
Ascensão; Santa Teresa via a Cristo em diferentes figuras, já
de glorioso, já de passível, quase todos os dias. Das Marias
não sabemos que tivessem visões da divindade, e de Santa Teresa
lemos em sua vida que viu como as criaturas estão eminentemente em
Deus; que viu como se distinguem as três pessoas divinas, sendo uma
só essência; que viu como está o Filho no peito do Padre,
e outros segredos da divindade altíssimos que cá se crêem
e não se entendem, e só se hão de ver e entender na
Pátria.
De sorte que, parece, andava Deus em amorosa
emulação e liberal competência com Teresa: ela em servir
e amar, e Deus em pagar e se comunicar; ela não se contentando com
o que basta, nem se satisfazendo com o que sobeja, e Deus excedendo sem
nenhum limite o supérfluo naquilo que de nenhum modo é necessário.
Visões, revelações, êxtases,
raptos, não são necessários nem para a salvação
nem para a perfeição. E nestas amorosas e divinas superfluidades
pagava Deus a Teresa o não se contentar seu espírito com o
necessário, nem ainda com o supérfluo, o não se contentar
com o que basta, nem ainda com o que sobeja.
25. Assim pagava Deus
a Teresa, mas eu não me pago tanto de ver como Deus paga, quanto
de ver como os santos servem. E o que muito noto naquelas grandes ações
do espírito de Santa Teresa, é que, bem consideradas elas,
o seu servir a Deus foi pagar a Deus.
Notai. Para Deus remir suficientemente o mundo, bastava
querer; para o remir por modo mas alto, bastava encarnar; mas andou Deus
tão fino conosco na Redenção, que não se
contentou de remir só com o querer, que bastava, nem de remir
só com o encarnar, que sobejava, senão passou excessivamente
muito avante, e quis remir morrendo e padecendo.
Esta fineza fez Deus pelos homens, e esta lhe estivemos
devendo, até que Teresa nos desempenhou e pagou por nós.
Deus com a redenção pagou nossos pecados, e Teresa com
os seus extremos pagou a nossa redenção. Porque só
Deus no remir os homens se não contentou com o que bastava nem
com o que sobejava; Teresa no servir a Deus não se contenta com
o que basta nem como que sobeja. Oh! como se parecem nos passos a esposa
e o esposo! Ainda que Teresa fora das virgens que hoje foram comprar
o óleo, eu fio que se encontrara com ele.
Diz o texto:
Dum autem irent emere, venit sponsus (Mt. 25,10)
[Enquanto
elas foram comprar o óleo, chegou o esposo]
Que indo as virgens,
veio o Esposo. Pois, se elas iam e o Esposo vinha, por que se não
encontraram? Porque iam por diferente caminho. Não assim a nossa
Teresa: caminha tanto pelo mesmo caminho e pelos mesmos passos do Esposo,
que porque ele se não contentou com o que bastava nem com o que
sobejava em nos amar, também ela se não contenta com o
que basta nem com o que sobeja em o servir. Vede agora, em comparação
deste saber, se foram néscias as virgens prudentes: ela não
se contenta nem ainda com o que sobeja, e elas punham em dúvida
só se bastaria:
Ne forte non sufficiat nobis et vobis (Mt. 25,8).
[para
que não suceda faltar o óleo a nós e a vós]
VIII
26. A terceira coisa
em que as virgens prudentes comparadas com Santa Teresa foram néscias
é que as prudentes cuidaram que, arriscando-se por socorrer as companheiras,
corriam perigo, e Santa Teresa entendeu que tudo o que se arrisca pela caridade,
quando mais se arrisca, então está mais seguro. Bem quiseram
as virgens prudentes socorrer e suprir a falta das companheiras, quando
não por companheiras e por amigas, ao menos por autoridade e majestade
da festa, e pelo que a elas mesmas lhes tocava, porque, sem as outras cinco,
diminuíam-se muito as luzes, descompunham-se as parelhas, e ficava
desairoso o acompanhamento. Contudo, por se não arriscarem a ficar
fora das bodas, quiseram antes entrar sós que porem-se a perigo de
não entrar:
Ne forte non sufficiat
[Para
que não suceda faltar...]
Aquele ne forte [não suceda]
foi o ponto em que tocou o fraco a sua prudência. Imaginaram que arriscando-se
pela caridade podiam correr perigo, e foi errado pensamento, porque ninguém
melhor se assegura a si e as suas coisas, que quem pela caridade as arrisca
e se arrisca.
Ouvi o maior caso que se lê em todas
as histórias sagradas e humanas:
27. Sitiada pelo exército de Holofernes
a cidade de Betúlia, tomados e quebrados os canais, e divertidas
as fontes de que bebiam, estavam já desmaiados todos e determinados
a se entregar ao inimigo, por não perecer a sede, quando Judite,
não podendo sofrer a entrega e cativeiro da sua pátria, se
deliberou ao mais raro pensamento que pudera caber em um homem atrevido
e denodado, quando mais em uma mulher, e santa. Despe o ci1ício de
que estava toda coberta, enxuga os olhos das lágrimas com que orava
ao céu, mandava vir cheiros, jóias, galas, espelhos; veste,
compõe, enriquece, esmalta os cabelos, a garganta, o peito, as mãos,
os braços e até os pés, não de todo cobertos
— que assim o nota a Escritura — e feita Judite um tesouro da
cobiça, um pasmo da formosura, e mil laços do apetite, sai
confiada pelas portas da cidade, salta o fosso, passa as sentinelas, entra
pelo exército inimigo, e vai direita à mesma tenda de Holofernes.
Bravas ações de mulher, mas mais bravos ainda os pensamentos!
Os seus intentos eram —
como refere a mesma Judite no texto — que Holofernes com seus próprios
olhos se cativasse de sua formosura, e que ela com palavras discretas e
amorosas o prendesse mais, para que, assim preso e cativo, lhe metesse a
ocasião os cabelos do tirano em uma mão e a espada na outra,
com que lhe cortasse a vida. Valentes intentos Judite, mas arriscados muito.
Reparai, senhora, como mulher,
reparai como nobre, e reparai também, e muito mais, como santa. Se
como mulher mais que mulher não reparais nos riscos da vida entre
esquadrões armados de bárbaros, como nobre por que não
reparais na opinião, e como santa por que não reparais na
honestidade? Os mesmos laços que armais a Holofernes, como podeis
vós escapar deles? As prisões, quando prendem, também
se prendem.
Antes parece que Judite primeiro se
prendeu a si do que a Holofernes, e que, antes de Holofernes cair, já
Judite estava caída porque a obrigação e pureza da
lei de Deus não só proíbe o pecado, senão o
perigo, e quem se deliberou a perigar já caiu, porque se expôs
a cair.
Qui amat periculum in illo peribit (Ecl. 3,27)
[Quem
ama o perigo, nele perecerá]
diz a mesma lei divina. Pois, se Judite era tão santa e tão
observante da lei de Deus, como põe a tão manifesto risco
a sua honestidade, e com ela a consciência?
Que arrisque
a vida, seja valor, que arrisque também o crédito, seja excesso
de amor da pátria, mas a honestidade e a consciência, que por
nenhum preço se há de arriscar, nem pela vida, nem pela honra,
nem pela liberdade, nem por uma cidade, nem por um reino, nem por todo o
mundo, que a arriscasse Judite, e que a arriscasse sendo santa? Sim e não.
Sim, porque tudo isso arriscou Judite pela caridade; e não, porque
tudo o que se arrisca pela caridade então se segura mais.
Arriscou a vida, arriscou a opinião,
arriscou a honestidade, mas segurou a honestidade, segurou a opinião
e segurou a vida, porque tudo arriscou pela caridade e por livrar sua pátria
de cativeiro. E como Judite sabia que Deus é o assegurador dos riscos
que se empreendem por seu amor e dos próximos, por isso, fiada no
seguro de Deus, não incorreu no crime dos que se põem a perigo,
porque quem arrisca com seguro não corre risco.
Nem o texto da lei divina,
se bem se pondera, quer dizer outra coisa. Notai: Qui
amat periculum, in illo peribit:
quem
ama o perigo perecerá nele.
— Uma coisa é entrar no
perigo amando o perigo, outra coisa é entrar no perigo amando a Deus:
quem entra no perigo por amor do perigo perece nele, porque o mesmo perigo,
a quem ama e por quem se arrisca, o perde; mas quem entra no perigo por
amor de Deus, não perece nem pode perecer, porque o mesmo Deus, a
quem ama e por quem se arrisca, o guarda.
Se vós entrais no perigo por
amor da cobiça, quem vos há de guardar? A cobiça? Se
vós entrais no perigo por amor da soberba, quem vos há de
guardar? A soberba? Se vós entrais no perigo por amor do amor, quem
vos há de guardar? O amor profano e cego?
Entrai vós nos perigos por amor
de Deus e do próximo, e vereis como Deus vos livra e vos segura neles.
28. Ah! Senhor, bendita seja e infinitamente
bendita vossa bondade! Falta-nos neste passo o exemplo do Evangelho, porque
faltaram as virgens prudentes no conhecimento desta verdade e no exercício
desta confiança.
Mas a prova que não temos no
Evangelho, temo-la no pregador. Mui ingrato seria eu, e serei a Deus, se
assim o não confessara e assim o não confessar toda a vida
e toda a eternidade.
A quem aconteceu jamais depois de virado
o navio e depois de estarem todos fora dele sobre o costado, ficar assim
parado e imóvel por espaço de um quarto de hora, sem a fúria
dos ventos descompor, sem o ímpeto das ondas o soçobrar, sem
o peso da carga e da água, de que estava até o meio alagado,
o levar a pique, e depois dar outra volta para a parte contrária,
e pôr-se outra vez direito, e admitir dentro em si os que se tinham
tirado fora?
Testemunhas são os anjos do céu,
cujo auxílio invoquei naquela hora, e não o de todos, senão
daqueles somente que têm à sua conta as almas da gentilidade
do Maranhão:
— Anjos da guarda das almas do Maranhão,
lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação
delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o
não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas que
tendes a vosso cargo. Olhai que aqui se perdem também conosco.
— Assim o disse a vozes
altas, que ouviram todos os presentes, e supriu o merecimento da causa a
indignidade do orador. Obraram os anjos, porque ouviu Deus a oração.
E não podia Deus deixar de a ouvir, porque orava nela o mesmo perigo.
Sabe o mesmo Senhor que por nenhum
interesse do mundo, depois de eu o ter tão conhecido e tão
deixado, me tornara a meter no mar, senão pela salvação
daqueles pobres tesouros, cada um dos quais vale mais que infinitos mundos.
E como o perigo era tomado por amor de Deus e dos próximos, como
podia faltar a segurança no mesmo perigo?
O mesmo perigo nos livrou,
ou se livrou a si mesmo. Os perigos da caridade são riscos seguros,
e nos riscos seguros não pode haver perigo. —Assim que, Senhor,
mudo o estilo, e não vos dou já as graças por me livrardes
do perigo, senão me meterdes nele. Quando por tal causa me metestes
no perigo, então me livrastes.
Grandes são os perigos
que ainda me restam e me ameaçam neste tão temeroso golfo,
e mais em inverno tão verde e em ano tão tormentoso! Mas,
como há de temer os perigos quem neles leva a mesma salvação
que vai buscar por meio deles?
29. Quem cuidais que tirou do perigo
a Jonas e quem cuidais que o meteu no perigo? O não querer ir buscar
a salvação dos próximos o meteu no perigo, e o meter-se
no perigo pela salvação dos próximos o tirou dele.
Mandou Deus a Jonas que fosse pregar
aos gentios de Nínive; não quis Jonas, e para fugir da missão,
e ainda do mesmo Deus que lha encomendava, embarca-se de Jope para Társis.
E que lhe sucedeu a Jonas nesta viagem ou nesta fugida?
O que lhe sucedeu foi que, indo todos os navios
com vento a popa e mar bonança, só contra o de Jonas se levantou
uma tempestade tão terrível, que não bastando amainar
velas e calar mastros, não bastando alijar ao mar a carga, não
bastando tudo o mais que sabe e pode a arte em semelhantes trabalhos, deixado
já o leme e o navio à mercê dos mares e dos ventos,
e, desconfiados até do socorro do céu, o piloto e marinheiros,
que eram gentios, desceram ao porão onde vinha Jonas a pedir-lhe
que fizesse oração ao seu Deus, pois os seus deuses não
lhes valiam. Tal era a tempestade, tal o perigo, tal a desesperação
de todos.
E bem, profeta Jonas, e vós não
quereis ir pregar e salvar as almas dos gentios a que Deus vos manda, pois,
quando cuidáveis que fugíeis do trabalho, incorrereis no maior
perigo, e perecereis onde vós quisestes, porque não quisestes
salvar os próximos onde Deus queria.
De maneira que o não querer ir buscar a
salvação dos próximos foi o que meteu no perigo a Jonas.
E que fez Jonas para sair daquele perigo? Notável caso! Para Jonas
sair daquele perigo, mete-se noutro perigo maior pela salvação
dos próximos. E este segundo perigo o salvou e livrou do primeiro.
Ora vede.
30. Subido Jonas ao convés do navio,
reconheceu que ele era a causa da tempestade, e para que os demais se salvassem
e ele só perecesse, pediu que o lançassem ao mar. De sorte
que aquele mesmo Jonas, que pouco há se embarcou neste navio por
não ir salvar os gentios de Nínive, esse mesmo pede agora
que o lancem do navio ao mar para que se salvem os gentios do navio. Fazem-no
assim por último remédio os marinheiros.
Vai Jonas ao mar, traga-o
uma baleia, mergulha para o fundo o monstro, somem-se e desaparecem ambos.
Pode haver maior perigo? Pode-se imaginar maior? Não pode. No mar
podia-o salvar ou entreter uma tábua; no ventre da baleia a morte
e a sepultura tudo foi junto.
Mas Jonas não se arrojou a este
perigo por salvar os mareantes do seu navio, próximos, ainda que
gentios? Sim. Pois, tende mão, que ainda não desconfio de
sua vida.
Perigo tomado pela salvação
dos próximos, não pode ser perigo em que se perigue. Arrojado
do navio, e naufragante, sim; tragado e engolido do monstro-marinho, sim;
metido no profundo do mar e sepultado nos mais escuros abismos, sim; mas
afogado, mas morto, mas digerido ou mastigado da baleia quem se lançou
ao mar pela salvação dos próximos, não pode
ser. Torno a dizer que não pode ser; e já o vejo. Olhai para
as praias de Nínive.
Passados três
dias e três noites, aparece ao romper da alva diante do porto de Nínive
uma galé de forma nunca vista à vela e só com dois
remos. A vela era a nuvem de água que respirava a baleia, e umas
vezes parece que subia, outras que se amainava; os remos eram as duas grandes
barbatanas com que, batendo a compasso, ia vogando. Abica à praia
o desconhecido baixel, levanta aberto pelo meio o castelo de proa, que então
se conheceu que era boca, estende a língua como prancha sobre a areia,
e sai de dentro vivo e sepultado Jonas.
Pasmais do caso? Não
pasmeis. Não vos dizia eu que não podia perigar quem por salvação
dos próximos se entregou ao mar e aos perigos? Pois, assim lhe aconteceu
ao felicíssimo Jonas. Levado de um perigo em outro perigo, uns o
livraram dos outros. No navio perigava dos ventos, no mar perigava das ondas,
na baleia perigava do aperto da respiração e de tudo, mas
como o primeiro perigo foi tomado por caridade, todos os outros perigos
eram remédios. O perigo do mar livrou-o do perigo do navio, o perigo
da baleia livrou-o do perigo do mar, e este perigo, como era o último
e o maior de todos, livrou-o de si mesmo. Há mais seguro perigar?
Há menos perigosa segurança? Com razão disse São
Zeno Veronense que foi Jonas mais venturoso no sepulcro que no navio:
Felix magis in sepulchro quam navi
[mais
feliz no ventre da baleia do que no navio]
porque, uma vez que a baleia lhe guardou a vida, muito mais seguro navegava
nela que no navio. O navio podia perigar, nos mares e nos ventos, a baleia
era embarcação segura das tempestades.
31. Maior tempestade padeceram as
virgens no óleo das suas redomas do que Jonas em tanto mar. Todas
naufragaram, porque todas deram em seco: as néscias no das suas lâmpadas,
e as prudentes no da sua avareza. Forte ne forte [não
suceda] foi aquele!
Perderam-se cinco, quando
se puderam salvar todas, porque não tiveram caridade as outras cinco
para se arriscarem com elas. Tanto perigaram as néscias no seu perigo,
como na demasiada segurança as prudentes. Se as prudentes se quiseram
arriscar por elas socorrendo-as, nesse mesmo risco se salvariam umas e outras:
as néscias, pelo socorro que recebiam, e as prudentes, pelo socorro
que davam, ou, para o dizer com mais certeza, as néscias pelo risco
de que se tiravam, e as prudentes pelo risco em que se metiam, que quem
se arrisca pela caridade não pode correr risco.
Nenhuma comunidade esteve
jamais tão arriscada como o povo de Israel, quando Deus o quis acabar
no deserto; e o que fez Moisés para o livrar daquele risco foi arriscar-se
também com ele:
Aut dimitte eis hanc noxam, aut dele me de libro tuo Senhor,
ou haveis de perdoar ao
povo, ou riscai-me do vosso livro(Êx. 32,31 s)
— É certo que Moisés
não podia licitamente querer ser riscado dos livros de Deus, e foi
este o mais arriscado lanço em que se meteu nenhum homem. Contudo,
pediu este risco, e meteu-se nestes riscos Moisés, seguro de que
Deus o não riscaria por ele se arriscar, quando o fazia pela caridade
dos próximos, porque os riscos da caridade nem riscam nem arriscam.
Tão longe
esteve Moisés de ser riscado dos livros de Deus por esta causa, que
antes mandou Deus que se escrevesse em seus livros que chegara Moisés
por caridade a pedir que o riscassem deles. Se Moisés se não
arriscara, salvara-se ele e perecera o povo; mas porque se quis arriscar
pelo povo, ele e o povo, todos se salvaram.
O mesmo havia de suceder
às nossas prudentes se elas o souberam ser e se souberam arriscar;
mas, porque lhes faltou esta ciência e esta prudência, em que
Santa Teresa foi tão eminente, por isso eu em comparação
dela digo que foram néscias.
Em comparação das néscias
do Evangelho foram prudentes as prudentes, porque as néscias cuidaram
que havia outrem de fazer por elas o que elas não fizeram por amor
de si, e as prudentes não quiseram fazer por amor de outrem o que
outrem não havia de fazer por elas. Mas estas mesmas prudentes, comparadas
com Santa Teresa, foram néscias, porque elas cuidaram que, arriscando-se
por amor de Deus e dos próximos, corriam perigo, e Santa Teresa entendia
e sabia por experiência que tudo o que se arrisca pela caridade, quando
mais se arrisca, então se segura mais.
32. Tudo quanto teve e quanto
podia ter arriscou Teresa por amor de Deus e dos próximos. E estes
mesmos riscos foram uma prudente indústria com que tudo acrescentou
e segurou mais. Arriscou a vida, arriscou a honra, arriscou a mesma perfeição
de sua alma, e do primeiro perigo saiu com mais saúde, do segundo
com mais crédito, do terceiro com maior santidade.
Era Santa Teresa
tão enferma, como lemos em sua vida, e o que mais sentia nesta fraqueza
natural era o impedimento que as enfermidades lhe faziam aos exercícios
da oração e da penitência. Veio, finalmente, a resolver-se
consigo e contra si, a orar com toda a continuação, e a tratar
seu corpo com todo rigor, ainda que perdesse totalmente a vida. E que tirou
a santa desta resolução?
Coisa maravilhosa!
A saúde que lhe não puderam dar nenhuns remédios lhe
deram os mesmos riscos em que a punha. Com a penitência, com que mais
havia de enfermar, lhe crescia a saúde, e com o trabalho, com que
mais havia de enfraquecer, se lhe aumentavam as forças.
33 As perseguições
a que Santa Teresa se expôs quando empreendeu reduzir a regra carmelitana
moderada ao antigo rigor e inteireza de seu primeiro instituto foram maiores
do que se podem imaginar e do que parece se podiam sofrer.
Armou-se contra ela a religião, e armou-se o mundo, e, o que mais
é, que os bons do mundo e os melhores da religião —
posto que com bom zelo— eram os que mais a perseguiam. Raros eram
os que defendiam seu espírito, todos o tinham por ilusão e
enredo do demônio, muitos por fingimento e hipocrisia, e não
faltava quem lhe desse ainda mais escandalosas censuras.
Tudo
ocasionavam os tempos, que com as novas heresias de Lutero andavam mui perigosos
e cheios de temores. Mas, como a santa se arriscava a todos estes descréditos
pela salvação e perfeição dos próximos,
em que veio a parar tudo?
Os descréditos
pararam em maior estimação, as injúrias em maior honra,
as perseguições em maiores aplausos, e os mesmos religiosos
que tinham a Teresa por indigna filha, a receberam depois por digníssima
mãe, e como de tal se honram e a veneram.
34. Finalmente, houve muitas pessoas timoratas
e doutas que aconselhavam a Santa Teresa que se retirasse do magistério
espiritual das almas, e que na vida particular e solitária, a que
a mesma doçura da contemplação a inclinava, vacando
somente a Deus e a si, seria maior o aproveitamento de seu espírito.
Foi esta a maior prova, por lhe não chamar a mais apertada tentação,
que podia ter a alma de Teresa, cujos mais prezados interesses, cujas mais
amadas delícias, cujos regalos, cujas ânsias, cujos suspiros,
era aquela íntima união com Deus, quieta e suavíssima,
em que, elevada sobre todas as coisas da terra, tão celestialmente
o gozava. Continuou,
contudo, a santa prosseguindo na mesma empresa começada, sem reparar
nestes riscos de sua maior perfeição, e noutros ainda maiores
que lhe ameaçavam; e, como todos eram tomados pela caridade, quanto
mais parece que arriscava os dons do céu, tanto mais se achava rica
e favorecida deles. Era muito o que arriscava, mas muito mais o que recebia.
Mercês sobre mercês, favores sobre favores, glórias sobre
glórias, como se os mesmos riscos fossem degraus para mais subir
e crescer.
Em suma, que
arriscando Teresa por amor de Deus e dos próximos saúde, honra
e perfeição, dos perigos da saúde saia mais forte,
dos perigos da honra mais acreditada, dos perigos da perfeição
mais santa.
Oh! quantos e quão seguros
louvores se puderam agora discorrer sobre todos estes perigos, e muito mais
sobre o terceiro. Parece que pugnava nele o espírito contra o espírito,
a virtude contra a virtude, a santidade contra a santidade, mas necessária
era tão gloriosa peleja para tão excelente vitória.
Corto o fio, e não sem dor, ao que quisera dizer. Peço-vos,
contudo, licença, para concluir o sermão na forma em que o
propus ao princípio: suposto que vos não hei de cansar outra
vez, perdoai-me esta.
IX
35. A quarta e última coisa
em que as virgens prudentes, comparadas com Santa Teresa, foram néscias,
é que as prudentes, podendo rogar ao Esposo que esperasse pelas companheiras,
ou, quando menos que lhes não fechasse as portas, não intercederam
por elas, e Santa Teresa intercede sempre eficazmente por seus devotos e
por todos os que lhes pedem favor e a ela se encomendam.
Esta foi a quarta e última
imprudência das prudentes, nas quais, se bem reparastes, achareis
que as notamos de imprudentes nas obras, imprudentes nas palavras, imprudentes
nos pensamentos e imprudentes nas omissões, que são os quatro
modos gerais por que só se pode pecar contra uma virtude.
No primeiro, foram imprudentes
de obra, porque dormiram quando haviam de vigiar. No segundo, foram imprudentes
de palavra, porque disseram não baste, quando haviam de dizer não
sobeje. No terceiro, foram imprudentes de pensamento, porque cuidaram que,
arriscando-se pela caridade, podiam correr perigo. No quarto foram imprudentes
de omissão, porque ao menos não pediram por quem lhes pedia.
Elas não pediram nem intercederam por quem lhes pediu, e Santa Teresa,
como dizia, pede e intercede eficazmente por todos os que lhe pedem e se
valem de seu favor.
Mas este ponto não
o hei de provar eu, porque na mesma instituição desta festa
está provado.
36. Bem pudera a Companhia
de Jesus festejar em todas as suas casas a santa Madre Teresa de Jesus,
como santa muito sua, porque a mesma santa em muitos lugares de seus livros
confessa que dos religiosos da Companhia de Jesus recebeu grandes aumentos
e grandes luzes o seu espírito, por sinal que ordinariamente lhes
chama:
Aquellos benditos Padres.
[Aqueles
Padres abençoados]
Contudo, a festa de hoje não se celebra por esta causa, senão
pela que eu dizia.
— Estava um enfermo como
todos sabeis e vistes — na última desesperação
da natureza e na última de confiança da arte, enfim, no último
estado em que estavam as lâmpadas das cinco virgens:
Quia
lampades nostrae extinguuntur
[As
nossas lâmpadas se apagam] (Mt. 25,8)
não lhe restava mais que meterem-lhe na mão a candeia da fé,
tanto por momentos se lhe ia apagando a vida. Assim, menos vivo que morto,
recorreu a Santa Teresa, invocando seu favor naquele extremo perigo, e obrigando-se
com voto ao público reconhecimento dele por toda a vida, se de sua
mão a recebesse.
Não foi
a virgem prudentíssima como as prudentes que negaram o óleo
a quem lho pedia, porque logo o concedeu invisivelmente, mas com efeito
visível e manifesto. No mesmo ponto reviveu a lâmpada que se
ia apagando, e ressuscitou a vida já quase morta. E este é
o segundo ano em que com esta demonstração pública
se dá cumprimento ao voto. Óleo chamei à virtude milagrosa
deste benefício, e não é só propriedade da metáfora,
senão realidade vista e conhecida.
37. Do sepulcro de Santa Teresa mana um óleo
suavíssimo, de que recebem saúde muitos enfermos. E é
muito para notar que do lugar onde está Santa Teresa morta saia óleo
que dá vida, como se com este óleo dera em rosto a caridade
de Santa Teresa à pouca que tiveram as virgens do Evangelho. Elas
deixaram apagar as lâmpadas alheias por mais conservar o lume das
suas, e Santa Teresa apagou a sua para acender as alheias. Isso quer dizer
sair o óleo da sua sepultura, e o remédio da vida donde ela
está morta. Com toda a verdade assim foi, porque esta foi a fineza
donde nasceu a eficácia da sua intercessão.
Um dia em que estava a santa mais favorecida
de Cristo, disse-lhe o Senhor que pedisse o que quisesse. E que vos parece
que pediria Teresa? Se fora alguma das prudentes do Evangelho, havia de
pedir para si, e, quando menos, para si primeiro: o nobis [a
nós] havia de ir diante: nobis et vobis [a nós
e a vós] (Mt. 29,9).
Mas foi tanta a prudência de Teresa
e tanta a sua caridade que, não pedindo nada para si, tudo pediu
para nós: pediu que todas as vezes que rogasse por seus devotos,
lhe concedesse o Senhor o que pedisse, e assim lhe foi outorgado. As prudentes
do Evangelho nem deram o que lhes pediam, nem pediram por quem lhes pedia;
Santa Teresa pediu por todos os que lhe pedissem, para poder dar tudo o
que lhe pedirem.
Eis aqui, cristãos, o grande e inestimável
tesouro que tendes depositado naquelas mãos santas. Em todas vossas
necessidades, em todos vossos trabalhos, em todos vossos perigos, em todas
vossas enfermidades do corpo, e muito mais da alma, recorrei ao amparo,
ao patrocínio e à caridade desta piedosa virgem que tanto
pode com Deus, e vereis como vos socorre.
X
38. E para que conheçamos todos quanta necessidade
temos dos socorros e auxílios superiores, voltemos um pouco sobre
nós os olhos que até agora tivemos postos em Santa Teresa,
e veremos para maior glória sua e maior confusão nossa que,
se as prudentes, comparadas com ela, foram néscias, comparadas conosco,
foram prudentes, tão néscios e tão imprudentes somos
nas matérias de nossa salvação.
As prudentes, como vimos, em comparação
de Santa Teresa foram quatro vezes néscias; as néscias, em
nossa comparação, foram oito vezes prudentes.
Primeiramente as néscias, para
se salvarem, escolheram o estado de virgens, que é tão alto
e tão parecido ao do céu;
Simile est regnum caelorum decem virginibus (Mt. 25,1)
[O
reino do céu é semelhante a dez virgens...]
— E muitos cristãos, que estado tomam?
O da torpeza, o da sensualidade, o dos adultérios, o das afeições
sacrílegas com almas dedicadas a Deus, e outras abominações
ainda de piores nomes, e nisto passam um ano e outro ano, e toda a vida,
vede se sois mais néscias que as néscias.
39. As néscias — e é a segunda
prudência — saíram de suas casas, mas
saíram
a acompanhar o Esposo e a Esposa:
Exierunt
obviam sponso et sponsae (Mt. 25,1)
E os homens ordinariamente a que saem? Uns saem
só a sair, que é perder tempo, outros saem a ver e ser vistos,
que é perder as almas próprias e as alheias; outros saem a
jogar, a pleitear, a murmurar, que é perder o dinheiro, a fama e
a consciência; e ainda quando saem à igreja, que é as
menos vezes saem a ofender e injuriar a Deus em sua própria casa.
Vede se somos nós os néscios mais que as néscias!
40. As néscias —e vai a terceira prudência
— é verdade que adormeceram e dormiram, mas tanto que ouviram
a primeira voz ou o primeiro clamor de que vinha o Esposo:
Tunc surrexenunt omnes virgines illae
no
mesmo ponto se levantaram. (Mt. 25,7):
Quantas vezes clamam os pregadores nos púlpitos,
quantas vezes clamam dentro nos peitos as próprias consciências,
quantas vezes clama o mesmo Deus com as vozes e com os brados de todas as
criaturas como nesta ilha já com a terra tremendo, já com
o fogo rebentando, já com as cinzas chovendo e os homens com elas
sobre a cabeça, sepultados no sono do pecado e da ocasião,
sem abrir os olhos, nem espertar, continuando a dormir cegos como dantes.
Vede se somos nós mais néscios
que as néscias!
41. As néscias — e é a quarta
prudência —
ornaram as suas lâmpadas:
Ornaverunt
lampades suas (Ibid. 7),
e o mundo, onde tanto se trata hoje do ornato, de que ornato é que
trata? Galas e mais galas para o corpo; sedas e mais sedas para o corpo,
ouro e mais ouro; jóias e mais jóias, vaidades e mais vaidades
para o corpo; e a pobre alma, desprezada, rota, despida, envergonhada, sem
ter com que cobrir a fealdade e ignomínia em que os pecados trocaram
a sua natural formosura?
Vede se somos néscios
mais que as néscias!
42. As néscias — e foi a quinta
prudência — vendo que se lhes apagavam as lâmpadas, com
ser coisa de tanta repugnância o pedir aos iguais, não duvidaram
nem repararam em pedir às companheiras
Date
nobis de oleo vestro
[Dai-nos
do vosso óleo]
Quantos há que querem antes roubar
que pedir? Quantos que querem antes vender a alma, e ainda o corpo, que
pedir? Quantos e quantas que querem antes dar-se ao demônio que pedir,
nem ao mesmo Deus? E não só não pedem a Deus o remédio
para a necessidade, nem o socorro para a tentação, mas nem
ainda depois do pecado lhe querem pedir o perdão dele!
Vede se somos nós os néscios
mais que as néscias!
43. As néscias — e vai a
sexta prudência — ainda que as prudentes lhes não quiseram
dar o óleo, tomaram, contudo, o conselho que lhes deram, de que o
fossem comprar:
Ite
potius ad vendentes
[ide
antes à loja, comprá-lo].
Quantas vezes nos dão bons
conselhos os confessores? Quantas vezes nos dão bons conselhos os
pais? Quantas vezes nos dão bons conselhos os amigos? Quantas vezes
nos dão bons conselhos os livros? Quantas vezes nos dão bons
conselhos os anjos da guarda, por meio das inspirações? Quantas
vezes nos dão bons conselhos os exemplos, os castigos e os casos
tão raros e portentosos que vemos suceder no mundo, para que escarmentemos
em cabeça alheia, e nós, contudo, tão loucos e tão
desaconselhados? Vede se somos mais néscios que as néscias!
44. As néscias — e foi a sétima
prudência — sem reparar no trabalho, nem no dinheiro, nem na
autoridade, foram comprar o óleo às tendas:
Dum autem irent emere
[enquanto
iam comprar o óleo].
E nós,
sendo que tudo nos custa e tudo compramos, e a tão caros preços,
só o céu não queremos comprar. Há dinheiro para
o apetite, há dinheiro para a vaidade, há dinheiro para a
vingança, há dinheiro para o jogo, há dinheiro para
a peita, mas não há dinheiro para a restituição,
não há dinheiro para a esmola, não há dinheiro
para as capelas e obrigação do morgado, não há
dinheiro para os legados e satisfação do testamento, e quando
não queremos o céu de graça, para comprarmos a peso
de ouro o inferno não falta dinheiro.
Vede se somos nós os néscios
muito mais que as néscias!
45. As néscias, finalmente — e
é a oitava e última prudência — vieram, ainda
que tarde, bateram à porta do céu, e chamaram muitas vezes
pelo Esposo:
Novissime vero veniunt et reliquae virgines, dicentes:
Domine,
Domine aperi nobis
[mais
tarde chegaram as virgens néscias, chamando:
Senhor,
senhor abre-nos a porta].
Elas vieram, bateram e chamaram;
nós nem viemos, nem batemos, nem chamamos, antes, está a representação
e a tragédia tão trocada em tudo, que Deus é o que
vem, e nós fugimos, Deus é o que chama, e nós não
respondemos, Deus é o que bate, e nós não abrimos.
Vem Deus, e está batendo e chamando às portas do nosso coração:
Ego sto ad ostium, et pulso
[eu
estou à porta e bato]
e nós respondemos às três Pessoas da Santíssima
Trindade:
Nescio vos [Não vos conheço].
Dizei-me ou diga cada um a si mesmo:
Quanto tempo há que Deus vos anda batendo à alma — e
pode ser que a última vez fosse neste mesmo sermão: Filho,
eu criei-te. Filho, eu remi-te com o meu sangue. Filho, tu hás de
morrer. — Filho, eu não te hei de salvar, nem posso, sem boas
obras. Pois, que é o que determinas? — Isto nos diz Deus, e
isto vos digo eu em seu nome. — Que determinamos, cristãos,
que determinamos? Esperamos que se nos feche a porta do céu? Esperamos
que se nos diga para sempre:
Clausa est janua
[A
porta está fechada].
As virgens que tiveram as lâmpadas
acesas com boas obras entraram. As que as tiveram apagadas ficaram de fora.
Respondei-me, por reverência de Deus, a duas
perguntas muito breves. Pergunto: credes e tendes por fé que sem
boas obras ninguém se pode salvar? Se sois cristão e católico,
haveis de dizer que sim. Pergunto mais: e essas boas obras, sem as quais
vos não podeis salvar, tendes-las vós ou não?
Muitos há que, se hão
de falar verdade, devem dizer que as não têm. Pois, se não
tendes boas obras, e sem boas obras não vos podeis salvar, essa esperança
que tendes de vossa salvação, em que a fundais? Há
Deus de faltar à sua justiça? Há de mudar suas leis
por amor de vós? Dir-me-eis que ainda que não tendes agora
as boas obras; que tendes propósitos de as fazer depois. E se antes
desse depois vier o Esposo:
Dum autem irent emere,
venit sponsus?
[Enquanto
iam comprar o óleo, chegou o esposo].
Se antes desse depois
vier a morte? Se antes desse depois vos pedirem conta? Atreveis-vos a estar
no inferno para sempre? Torno a dizer: Atreveis-vos a estar no inferno,
a arder naquelas chamas para sempre? Este para sempre repetia muitas
vezes Santa Teresa, ainda sendo muito menina, e este para sempre foi o princípio
da sua oração e o primeiro fundamento da sua santidade. Com
este para sempre me quero despedir de vós. E que este para sempre
vos fique soando nos ouvidos e imprimindo-se nas memórias: para sempre,
para sempre, para sempre.