SERMÃO
DO
BOM LADRÃO
Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum:
Hodie mecum eris in Paradiso.(Lc. 23,42)
[Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino
- Hoje estarás comigo no Paraíso]
I
......1. Este sermão,
que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega
na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar, e não
aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. ......E
por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo
pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste.
......Uma das coisas que diz o texto é
que foram sentenciados em Jerusalém dois ladrões, e ambos
condenados, ambos executados, ambos crucificados e mortos, sem lhes valer
procurador nem embargos.
......Permite isto a misericórdia de
Lisboa? Não. A primeira diligência que faz é eleger
por procurador das cadeias um irmão de grande autoridade, poder e
indústria, e o primeiro timbre deste procurador é fazer honra
de que nenhum malfeitor seja justiçado em seu tempo.
......Logo esta parte da história não
pertence à Misericórdia de Lisboa.
......A outra parte (que é a que tomei
por tema) toda pertence ao Paço e à Capela Real. Nela se fala
com o rei: Domine [Senhor] nela se trata do seu reino:
........................cum veneris in
regnum tuum;
........................[Quando estiveres no
teu reino]
nela se lhe presentam memoriais:
........................memento mei
........................[lembra-te de mim]
e nela os despacha o mesmo rei logo, e sem remissão, a outros tribunais:
........................Hodie mecum eris
in Paradiso.
........................[Hoje estarás
comigo no Paraíso]
......O que me podia retrair de pregar sobre
esta matéria, era não dizer a doutrina com o lugar. Mas deste
escrúpulo, em que muitos pregadores não reparam, me livrou
a pregação de Jonas. Não pregou Jonas no paço,
senão pelas ruas de Nínive, cidade de mais longes que esta
nossa, e diz o texto sagrado que logo a sua pregação chegou
aos ouvidos do rei:
........................Pervenit verbum
ad regem (Jn. 3,6).
........................[A notícia chegou
ao rei]
......Bem quisera eu que o que hoje determino
pregar chegara a todos os reis, e mais ainda aos estrangeiros que aos nossos.
Todos devem imitar ao Rei dos reis, e todos têm muito que aprender
nesta última ação de sua vida. Pediu o Bom Ladrão
a Cristo que se lembrasse dele no seu reino:
........................Domine, memento
mei, cum veneris in regnum tuum.
........................[Senhor, lembra-te
de mim quando entrares no teu reino]
......E a lembrança que o Senhor teve
dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso:
........................Hodie mecum eris
in Paradiso.
........................[Hoje estarás
comigo no Paraíso]
......Esta é a lembrança que
devem ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são
ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões
ao Paraíso, senão de os levar consigo:
........................Mecum [comigo]
......Nem os reis podem ir ao paraíso
sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno
sem levar consigo os reis. Isto é o que hei de pregar. Ave Maria
II
......2. Levarem os reis consigo
ao Paraíso ladrões não só não é
companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente
real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado,
tanto que admitiu na cruz o título de rei.
......Mas o que vemos praticar em todos os
reinos do mundo é tanto pelo contrário que, em vez de os reis
levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são
os que levam consigo os reis ao inferno.
......E se isto é assim, como logo mostrarei
com evidência, ninguém me pode estranhar a clareza ou publicidade
com que falo e falarei, em matéria que envolve tão soberanos
respeitos, antes admirar o silêncio, e condenar a desatenção
com que os pregadores dissimulam uma tão necessária doutrina,
sendo a que devera ser mais ouvida e declamada nos púlpitos.
......Seja, pois, novo hoje o assunto, que
devera ser muito antigo e mui frequente, o qual eu prosseguirei tanto com
maior esperança de produzir algum fruto, quanto vejo enobrecido o
auditório presente com a autoridade de tantos ministros de todos
os maiores tribunais, sobre cujo conselho e consciência se costumam
descarregar as dos reis.
III
......3. E para que um discurso tão
importante e tão grave vá assentado sobre fundamentos sólidos
e irrefragáveis, suponho primeiramente que sem restituição
do alheio não pode haver salvação. ......Assim
o resolvem com Santo Tomás todos os teólogos, e assim está
definido, no capítulo
........................Si res aliena,[Se
o alheio]
com palavras tiradas de Santo Agostinho, que são estas:
........................Si res aliena propter
quam peccatum est, reddi potest,
........................et non redditur, poenitentia
non agitur sed simulatur.
........................Si autem veraciter
agitur non remittitur peccatum,
........................nisi restituatur ablatum,
si, ut dixi, restitui potest.
......Quer dizer:
........................Se o alheio, que
se tomou ou retém, se pode restituir, e não se restitui,
........................ a penitência
deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência,
........................ senão simulada
e fingida, porque se não perdoa o pecado sem se
........................restituir o roubado,
quando quem o roubou
........................tem possibilidade de
o restituir.
......Esta única exceção
da regra foi a felicidade do Bom Ladrão, e esta a razão por
que ele se salvou, e também o mau se pudera salvar sem restituírem.
Como ambos saíram do naufrágio desta vida despidos e pegados
a um pau, só esta sua extrema pobreza os podia absolver dos latrocínios
que tinham cometido, porque, impossibilitados à restituição,
ficavam desobrigados dela.
......Porém, se o Bom Ladrão
tivera bens com que restituir, ou em todo, ou em parte o que roubou, toda
a sua fé e toda a sua penitência, tão celebrada dos
santos, não bastara a o salvar, se não restituísse.
......Duas coisas lhe faltavam a este venturoso
homem para se salvar: uma como ladrão que tinha sido, outra como
cristão que começava a ser. Como ladrão que tinha sido,
faltava-lhe com que restituir; como cristão que começava a
ser, faltava-lhe o Batismo; mas assim como o sangue que derramou na cruz
lhe supriu o Batismo, assim a sua desnudez e a sua impossibilidade lhe supriu
a restituição, e por isso se salvou.
......Vejam agora, de caminho, os que roubaram
na vida, e nem na vida, nem na morte restituíram, antes na morte
testaram de muitos bens e deixaram grossas heranças a seus sucessores,
vejam onde irão ou terão ido suas almas, e se se podiam salvar.
......4. Era tão rigoroso
este preceito da restituição na lei velha, que, se o que furtou
não tinha com que restituir, mandava Deus que fosse vendido, e restituísse
com o preço de si mesmo:
........................Si non habuerit
quod pro furto reddat, ipse venundabitur (Êx. 22,3).
........................[Se não tiver
com que pagar, ele mesmo será vendido por seu furto]
......De modo que, enquanto um homem era seu,
e possuidor da sua liberdade, posto que não tivesse outra coisa,
até que não vendesse a própria pessoa, e restituísse
o que podia com o preço de si mesmo, não o julgava a lei por
impossibilitado à restituição, nem o desobrigava dela.
......Que uma tal lei fosse justa não
se pode duvidar, porque era lei de Deus, e posto que o mesmo Deus na lei
da graça derrogou esta circunstância de rigor, que era de direito
positivo; porém na lei natural, que é indispensável,
e manda restituir a quem pode e tem com quê, tão fora esteve
de variar ou moderar coisa alguma, que nem o mesmo Cristo na cruz prometeria
o Paraíso ao ladrão, em tal caso, sem que primeiro restituísse.
......Ponhamos outro ladrão à
vista deste, e vejamos admiravelmente no juízo do mesmo Cristo a
diferença de um caso a outro.
......5. Assim como Cristo,
Senhor nosso, disse a Dimas:
........................Hodie mecum eris
in Paradiso
........................[Hoje estarás
comigo no Paraíso]
......Hoje serás comigo no Paraíso
assim disse a Zaqueu:
........................Hodie salus domui
huic facta est (Lc. 19,9):
........................Hoje a salvação
entrou nesta tua casa.
......Mas o que muito se deve notar é
que a Dimas prometeu-lhe o Senhor a salvação logo, e a Zaqueu
não logo, senão muito depois. E por que, se ambos eram ladrões,
e ambos convertidos? ......Porque Dimas era
ladrão pobre, e não tinha com que restituir o que roubara;
Zaqueu era ladrão rico, e tinha muito com que restituir:
........................Zacheus princeps
erat publicanorum, et ipse dives,
........................ diz o evangelista
(Lc. 19,2).
......Zaqueu, um dos principais entre os publicanos,
era um homem rico. E ainda que ele o não dissera, o estado de um
e outro ladrão o declarava assaz. Por quê? Porque Dimas era
ladrão condenado, e se ele fora rico, claro está que não
havia de chegar à forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado,
e a sua mesma riqueza era a imunidade que tinha para roubar sem castigo,
e ainda sem culpa. E como Dimas era ladrão pobre, e não tinha
com que restituir, também não tinha impedimento a sua salvação,
e por isso Cristo lha concedeu no mesmo momento. Pelo contrário,
Zaqueu, como era ladrão rico, e tinha muito com que restituir, não
lhe podia Cristo segurar a salvação antes que restituísse,
e por isso lhe dilatou a promessa. A mesma narração do Evangelho
é a melhor prova desta diferença.
......6. Conhecia Zaqueu a
Cristo só por fama, e desejava muito vê-lo. Passou o Senhor
pela sua terra, e como era pequeno de estatura, e o concurso muito, sem
reparar na autoridade da pessoa e do ofício:
........................Princeps publicanorum,(Lc.
19,2)
........................[um dos principais
dos publicanos]
subiu-se a uma árvore para o ver, e não só viu, mas
foi visto, e muito bem visto. Pôs nele o Senhor aqueles divinos olhos,
chamou-o por seu nome, e disse-lhe que se descesse logo da árvore,
porque lhe importava ser seu hóspede naquele dia:
........................Zachee, festinans
descende, quia hodie in domo
........................ tua oportet me manere.
(Lc. 19,5)
........................[Zaqueu, desce depressa,
pois convém que
........................eu fique hoje em tua
casa]
......Entrou, pois, o Salvador em casa de Zaqueu,
e aqui parece que cabia bem o dizer-lhe, que então entrara a salvação
em sua casa; mas nem isto, nem outra palavra disse o Senhor. Recebeu-o Zaqueu
e festejou a sua vinda com todas as demonstrações de alegria:
........................Excepit illum gaudens
(Lc. 19,6)
........................[Recebeu-o com alegria]
......E guardou o Senhor o mesmo silêncio.
Assentou-se à mesa abundante de iguarias, e muito mais de boa vontade,
que é o melhor prato para Cristo, e prosseguiu na mesma suspensão.
Sobretudo disse Zaqueu que ele dava aos pobres a metade de todos seus bens:
........................Ecce dimidium bonorum
meorum do pauperibus (Lc. 19,8)
........................[Senhor, resolvi dar
aos pobres a metade de meus bens]
......E sendo o Senhor aquele que no dia do
Juízo só aos merecimentos da esmola há de premiar com
o reino do céu, quem não havia de cuidar que a este grande
ato de liberalidade com os pobres responderia logo a promessa da salvação?
Mas nem aqui mereceu ouvir Zaqueu o que depois lhe disse Cristo.
......Pois, Senhor, se vossa piedade e verdade
tem dito tantas vezes que o que se faz aos pobres se faz a vós mesmo,
e este homem na vossa pessoa vos está servindo com tantos obséquios,
e na dos pobres com tantos empenhos, se vos convidastes a ser seu hóspede
para o salvar, e a sua salvação é a importância
que vos trouxe à sua casa, se o chamastes, e acudiu com tanta diligência,
se lhe dissestes que se apressasse:
........................Festinans descende
........................[desce depressa],
e ele se não deteve um momento, por que lhe dilatais tanto a mesma
graça que lhe desejais fazer, por que o não acabais de absolver,
por que lhe não segurais a salvação? Porque este mesmo
Zaqueu, como cabeça de publicanos:
........................Princeps publicanorum,
........................[um dos principais
publicanos]
tinha roubado a muitos, e como rico que era:
........................Et ipse dives
........................[Ele era um homem rico]
tinha com que restituir o que roubara, e enquanto estava devedor e não
restituía o alheio, por mais boas obras que fizesse, nem o mesmo
Cristo o podia absolver, e por mais fazenda que despendesse piamente, nem
o mesmo Cristo o podia salvar.
......Todas as outras obras, que depois daquela
venturosa visita, fazia Zaqueu, eram muito louváveis; mas enquanto
não chegava a fazer a da restituição, não estava
capaz da salvação. ......Restitua,
e logo será salvo: e assim foi. Acrescentou Zaqueu que tudo o que
tinha mal adquirido restituía em quatro dobros:
........................Et si aliquem defraudavi,
reddo quadruplum(Lc. 19,8)
........................[E se em alguma coisa
defraudei alguém restituo quatro vezes mais].
......E no mesmo ponto o Senhor, que até
ali tinha calado, desfechou os tesouros de sua graça e lhe anunciou
a salvação:
........................Hodie salus domui
huic facta est (Lc. 19,9)
........................[Hoje, a salvação
entrou nesta casa]
......De sorte que, ainda que entrou o Salvador
em casa de Zaqueu, a salvação ficou de fora, porque, enquanto
não saiu da mesma casa a restituição, não podia
entrar nela a salvação.
......A salvação não pode
entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem
se restituir o roubado:
........................Non dimittitur
peccatum, nisi restituatur ablatum.
........................[Não se perdoam
os pecados, sem a restituição do roubado]
IV
......7. Suposta esta primeira
verdade certa e infalível, a segunda coisa que suponho com a mesma
certeza é que a restituição do alheio, sob pena da
salvação, não só obriga aos súditos e
particulares, senão também aos cetros e às coroas.
......Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes
que, assim como são superiores a todos, assim são senhores
de tudo, e é engano.
......A lei da restituição é
lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a
natureza fez iguais a todos; e enquanto lei divina também os obriga,
porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.
......Esta verdade só tem contra si
a prática e o uso. Mas por parte deste mesmo uso argumenta assim
Santo Tomás, o qual é hoje o meu doutor, e nestas matérias
o de maior autoridade:
A rapina ou roubo é tomar o alheio violentamente
contra a vontade de seu dono;
os príncipes tomam muitas coisas a seus vassalos violentamente,
e contra sua vontade: logo, parece que o roubo é lícito em
alguns casos,
porque, se dissermos que os príncipes pecam nisto, todos eles,
ou quase todos se condenariam
........................Fere omnes principes
damnarentur.
........................[Quase todos os príncipes
se condenariam]
......Oh! que terrível e temerosa conseqüência,
e quão digna de que a considerem profundamente os príncipes,
e os que têm parte em suas resoluções e conselhos!
......Responde ao seu argumento o mesmo Doutor
Angélico. E, posto que não costumo molestar os ouvintes com
latins largos, hei de referir as suas próprias palavras:
Respondo, diz Santo Tomás, que se os príncipes tiram dos
súditos o que segundo justiça lhes é devido para conversação
do bem comum, ainda que o executem com violência, não é
rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência
o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde
se segue que estão obrigado à restituição, como
os ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões,
quanto é mais perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça
pública, de que eles estão postos por defensores.
......Até aqui acerca dos príncipes,
o Príncipe dos Teólogos. E por que a palavra rapina e latrocínio,
aplicada a sujeitos da suprema esfera, é tão alheia das lisonjas
que estão costumados a ouvir, que parece conter alguma dissonância,
escusa tacitamente o seu modo de falar, e prova a sua doutrina o santo Doutor,
com dois textos alheios, um divino, do profeta Ezequiel, e outro pouco menos
que divino, de Santo Agostinho.
......O texto de Ezequiel é parte do
relatório das culpas por que Deus castigou tão severamente
os dois reinos de Israel e Judá, um com o cativeiro dos assírios,
e outro com o dos babilônios; e a causa que dá, e muito pondera,
é que os seus príncipes, em vez de guardarem os povos como
pastores, os roubavam como lobos:
........................Principes ejus
in medio illius, quasi lupi rapientes praedam (Ez.22,27)
........................[Os príncipes,
em vez de guardarem os povos, como pastores,
........................ os roubam como lobos]
......Só dois reis elegeu Deus por si
mesmo, que foram Saul e Davi, e a ambos os tirou de pastores, para que,
pela experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam
de tratar os vassalos. Mas seus sucessores, por ambição e
cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado que, em vez
de os guardar e apascentar como ovelhas, os roubavam e comiam como lobos:
........................Quasi lupi rapientes
praedam. (Ez.22,27)
........................[como lobos atacando
a sua presa]
......8. O texto de Santo Agostinho
fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias
semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais
reinos e as covas dos ladrões, a que o santo chama latrocínios,
só há uma diferença. E qual é? Que os reinos
são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios,
ou ladroeiras, são reinos pequenos:
........................Sublata justitia,
quid sunt regna, nisi magna latrocinia?
........................Quia et latrocinia
quid sunt, nisi parva regna?
........................[Tirada a justiça,
o que são os reinos, senão um grande latrocínio
........................e os latrocínios
que são, senão pequenos reinos?]
......É o que disse o outro pirata a
Alexandre Magno.
......Navegava Alexandre em uma poderosa armada
pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia. E como fosse trazido à
sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores,
repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício. Porém,
ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim:
......Basta, senhor, que eu, porque roubo em
uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada,
sois imperador?
......Assim é: O roubar pouco é
culpa, o roubar muito é grandeza. O roubar com pouco poder faz os
piratas, o roubar com muito, os Alexandres.
......Mas Sêneca, que sabia bem distinguir
as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros
definiu com o mesmo nome:
........................Eodem loco pone
latronem et piratam,
........................quo regem animum latronis
et piratae habentem.
........................[Põe no mesmo
lugar o ladrão e o pirata pois
........................o ânimo do pirata
e do ladrão é o mesmo]
......Se o Rei de Macedônia, ou qualquer
outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata
e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
......9. Quando li isto em
Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estóico
se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero;
o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos,
em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda,
ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.
......Saibam estes eloquentes mudos que mais
ofendem os reis com o que calam, que com o que disserem, porque a confiança
com que isto se diz é sinal que lhes não toca e que se não
podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se
ofenderão, porque lhes pode tocar.
......Mas passemos brevemente à terceira
e última suposição, que todas três são
necessárias para chegarmos ao ponto.
V
......10. Suponho finalmente
que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis,
a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de
vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado,
como diz Salomão:
........................Non grandis est
culpa, cum quis furatus fuerit:
........................furatur enim ut esurientem
impleat animam (Pr. 6,30)
........................[O ladrão não
fica difamado quando rouba para matar a fome]
......O ladrão que furta para comer,
não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão,
mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre
e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento,
distingue muito bem S. Basílio Magno:
“Não são só ladrões, diz o santo,
os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar,
para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente
merecem este título
são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões,
ou o governo das províncias,
ou a administração das cidades, os quais já com manha,
já com força, roubam e despojam
os povos.”
......Os outros ladrões roubam um homem:
estes roubam cidades e reinos;
os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo;
os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.
......Diógenes, que tudo via com mais
aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros
de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou
a bradar:
Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos.
......Ditosa Grécia, que tinha tal pregador!
E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera
a justiça as mesmas afrontas!
......Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar
um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado
em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província.
......E quantos ladrões teriam enforcado
estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse
com discreta contraposição Sidônio Apolinar:
........................Non cessat simul
furta, vel punire, vel facere:
......Seronato está sempre ocupado em
duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não
era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões
do mundo, para roubar ele só.
VI
......11. Declarado assim por palavras não
minhas, senão de muito bons Autores, quão honrados e autorizados
sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse e digo
que levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós,
e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois assim o
querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que se não
pode sofrer, e por isso nem calar.
......Mas se os reis tão fora estão
de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados
de todos, como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes
bons reis? Não por um só, senão por muitos modos, os
quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e
manifestos.
......O primeiro, porque os reis lhes dão
os ofícios e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os
conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros
maiores; e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação,
a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem. E
quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás.
......Faz questão Santo Tomás,
se a pessoa que não furtou, nem recebeu ou possui coisa alguma do
furto, pode ter obrigação de o restituir. E não só
resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe
o exemplo nos reis. Vai o texto:
“Aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se
o não impediu, fica obrigado a restituir o
que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem
crescer os ladrões, são obrigados à
restituição, porquanto as rendas, com que os povos os servem
e assistem, são como estipêndios
instituídos e consignados por eles, para que os príncipes
os guardem e mantenham em justiça.”
......É tão natural e tão
clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu,
quando disse:
........................Qui non vetat peccare,
cum osit, jubet.
........................[Quem não impede
de proceder mal, podendo impedir, autoriza]
......12. E se nesta obrigação
de restituir incorrem os príncipes, pelos furtos que cometem os ladrões
casuais e involuntários, que será pelos que eles mesmos, e
por própria eleição, armaram de jurisdições
e poderes, com que roubam os mesmos povos?
......A tenção dos príncipes
não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou
de Guerra, ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os roubos, sejam
eleições e feituras suas, para que os príncipes hajam
de pagar o que eles fizeram.
......Ponhamos o exemplo da culpa, onde a não
pode haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição
e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas
criadas, exceto somente uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a
Adão para ladrão, e ao fruto para furto não lhe faltava
nenhuma. Enfim, ele e sua mulher, (que muitas vezes são as terceiras)
aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa
roubaram.
......Já temos a Adão eleito,
já o temos com ofício, já o temos ladrão. E
quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o
furto quem elegeu e quem deu o ofício ao ladrão.
......Quem elegeu e quem deu o ofício
a Adão foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua
custa, como sabemos. O mesmo Deus o disse assim, referindo o muito que lhe
custara a satisfação do furto e dos danos dele:
........................Quae non rapui,
tunc exolvebam .(Sl. 69,4)
........................[Paguei o que não
furtei]
......Vistes o corpo humano de que me vesti,
sendo Deus; vistes o muito que padeci; vistes o sangue que derramei; vistes
a morte a que fui condenado, entre ladrões. Pois, então, e
com tudo isso, pagava o que não furtei. Adão foi o que furtou,
e eu o que paguei:
........................Quae non rapui,
tunc exolvebam.
........................[Paguei o que não
furtei]
......Pois, Senhor meu, que culpa teve vossa
divina Majestade, no furto de Adão? Nenhuma culpa tive, nem a tivera,
ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele
homem, e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a circunspecção,
prudência e providência com que o devera e deve fazer o príncipe
mais atento a suas obrigações, mais considerado e mais justo.
......Primeiramente, quando o fiz, não
foi com império despótico, como as outras criaturas, senão
com maduro conselho, e por consulta de pessoas não humanas, senão
divinas:
........................Faciamus hominem
ad imaginem et similitudinem nostram, et praesit
........................[Façamos o homem
a nossa imagem e semelhança e presida] (Gn. 1,26)
......As partes e qualidades que concorriam
no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar
nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem
vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas paixões,
as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só lhe
faltava a experiência; nem houve concurso de outros sujeitos na sua
eleição, mas ambas estas coisas não as podia então
haver, porque era o primeiro homem, e o único.
......Pois, se a vossa eleição,
Senhor, foi tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa
para o ser, por que haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo
toda a culpa sua?
......Porque quero dar este exemplo e documento
aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo
tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se
os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados
a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem.
VII
......13. Mas estou vendo que
com este mesmo exemplo de Deus se desculpam ou podem desculpar os reis,
porque, se a Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo
muito bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que suceda o mesmo
aos reis, com os homens que elegem para os ofícios, se eles não
sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é aparente,
mas tão falsa como mal fundada, porque Deus não faz eleição
dos homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de
presente são.
......Bem sabia Cristo que Judas havia de ser
ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que o foi, não
só não era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o
cuidado de guardar e distribuir as esmolas dos pobres.
......Elejam assim os reis as pessoas, e provejam
assim os ofícios, e Deus os desobrigará nesta parte da restituição.
Porém as eleições e provimentos que se usam não
se fazem assim.
......Querem saber os reis se os que provêem
nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra
de Cristo:
........................Qui non intrat
per ostium, fur est et latro (Jo. 10,1)
........................[O que não entra
pela porta é ladrão e salteador]
......A porta por onde legitimamente se entra
ao ofício, é só o merecimento. E todo o que não
entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão,
senão ladrão é ladrão: Fur est
latro.
......E por que é duas vezes ladrão?
Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar
com ele.
......O que entra pela porta poderá
vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já
o são.
......Uns entram pelo parentesco, outros pela
amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação.
E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe
que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas
depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo,
a diferença de fur a latro. [ladrão e salteador]
......14. Coisa é certo
maravilhosa ver a alguns tão introduzidos e tão entrados,
não entrando pela porta, nem podendo entrar por ela. Se entraram
pelas janelas, como aqueles ladrões de que faz menção
Joel:
........................Per fenestras intrabunt
quasi fur(Jl. 2,9)
........................[Entrarão pelas
janelas como o ladrão]
grande desgraça é que, sendo as janelas feitas para entrar
a luz e o ar, entrem por elas as trevas e os desares. Se entraram minando
a casa do Pai de famílias, como o ladrão da parábola
de Cristo:
........................Si sciret pater
familias qua hora fur veniret,
........................non sineret perfodi
domum suam (Lc. 12,39).
........................[Se o pai de família
soubesse a que hora viria o ladrão,
........................ não permitiria
que ele entrasse em sua casa]
ainda seria maior desgraça que o sono, ou letargo do dono da casa
fosse tão pesado que, minando-se-lhe as paredes, não o espertassem
os golpes.
......Mas o que excede toda a admiração
é que haja quem, achando a porta fechada, empreenda entrar por cima
dos telhados, e o consiga, e mais sem ter pés, nem mãos, quanto
mais asas.
......Estava Cristo, Senhor nosso, curando
milagrosamente os enfermos dentro em uma casa, e era tanto o concurso que,
não podendo os que levavam um paralítico entrar pela porta,
subiram-se com ele ao telhado, e por cima do telhado o introduziram. Ainda
e mais admirável a consideração do sujeito, que o modo
e lugar da introdução. Um homem que entrasse por cima dos
telhados, quem não havia de julgar que era caído do céu:
........................Tertius e caelo cecidit
Cato?
........................[Caiu do céu
um terceiro Catão]
......E o tal homem era um paralítico
que não tinha pés, nem mãos, nem sentido, nem movimento,
mas teve com que pagar a quatro homens, que o tomaram às costas,
e o subiram tão alto.
......E como os que trazem às costas
semelhantes sujeitos estão tão pagos deles, que muito é
que digam e informem (posto que sejam tão incapazes) que lhes sobejam
merecimentos por cima dos telhados. Como não podem alegar façanhas
de quem não tem mãos, dizem virtudes e bondades.
......Dizem que, com seus procedimentos, cativa
a todos. E como não havia de cativar, se os comprou? Dizem que, fazendo
sua obrigação, todos lhe ficam devendo dinheiro: e como lho
não hão de dever, se lho tomaram?
......Deixo os que sobem aos postos pelos cabelos,
e não com as forças de Sansão, senão com os
favores de Dalila.
......Deixo os que, com voz conhecida de Jacó,
levam a bênção de Esaú, e não com as luvas
calçadas, senão dadas ou prometidas.
......Deixo os que, sendo mais leprosos que
Naamã Siro, se alimparam da lepra, e não com as águas
do Jordão, senão com as do Rio da Prata.
......É isto, e o mais que se podia
dizer, entrar pela porta? Claro está que não. Pois se nada
disto se faz:
........................Sicut fur in nocte
(I Ts. 5,2)
........................[como um ladrão
de noite]
senão na face do sol, e na luz do meio-dia, como se pode escusar
quem ao menos firma os provimentos de que não conhecia serem ladrões
os que por estes meios foram providos? ......Finalmente,
ou os conhecia, ou não: se os não conhecia, como os proveu
sem os conhecer? E se os conhecia, como os proveu conhecendo-os? Mas vamos
aos providos com expresso conhecimento de suas qualidades.
VIII
......15. Dom Fulano, diz a piedade bem-intencionada,
é um fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo. ......E
quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contém nesta
piedade?
......Se é pobre, dêem-lhe uma
esmola honestada com o nome de tença, e tenha com que viver.
......Mas por que é pobre, um governo,
para que vá desempobrecer à custa dos que governar? E para
que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico? Isto
quer quem o elege por este motivo.
......Vamos aos do prêmio, e também
aos do castigo.
......Certo capitão mais antigo tem
muitos anos de serviço: dêem-lhe uma fortaleza nas conquistas.
......Mas se estes anos de serviço assentam
sobre um sujeito que os primeiros despojos que tomava na guerra, eram a
farda e a ração dos seus próprios soldados, despidos
e mortos de fome, que há de fazer em Sofala ou em Mascate?
......Tal graduado em leis leu com grande aplauso
no Paço; porém, em duas judicaturas e uma correição
não deu boa conta de si: pois vá degradado para a Índia
com uma beca. E se na Beira e Além-Tejo, onde não há
diamantes nem rubis, se lhe pegavam as mãos a este doutor, que será
na relação de Goa?
......16. Encomendou el-rei
D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado
da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe;
e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas,
foi que o verbo rapio [roubar] na Índia se conjugava por todos os
modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério,
mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo.
......Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras
de Daniel:
........................Nabucodonosor rex
misit ad congregandos satrapas,
........................magistratus et judices
(Dn. 3,2)
........................[O rei Nabucodonozor
mandou juntar os sátrapas,
........................os magistrados e os
juízes]
declarando a etimologia de sátrapas, que eram os governadores das
províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio:
........................Dicuntur satrapae
quasi satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere:
........................Chamam-se sátrapas,
porque costumam roubar assaz.
......E este assaz é o que especificou
melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio[roubar]
por todos os modos.
......O que eu posso acrescentar, pela experiência
que tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança
para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente
a mesma conjugação.
......Conjugam por todos os modos o verbo
rapio [roubar] porque furtam por todos os modos da arte, não
falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem
Despautério.
......Tanto que lá chegam, começam
a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação
que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos
por onde podem abarcar tudo.
......Furtam pelo modo imperativo, porque,
como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente
às execuções da rapina.
......Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam
quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não
são aceitos.
......Furtam pelo modo optativo, porque desejam
quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por
cortesia, sem vontade, as fazem suas.
......Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam
o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só
que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância.
......Furtam pelo modo potencial, porque, sem
pretexto nem cerimônia, usam de potência.
......Furtam pelo modo permissivo, porque permitem
que outros furtem, e estes compram as permissões.
......Furtam pelo modo infinitivo, porque não
tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes
em que se vão continuando os furtos.
......Estes mesmos modos conjugam por todas
as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas
os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria
e consciência.
......Furtam juntamente por todos os tempos,
porque do presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de
si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito
e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões,
e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham
as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não
caído lhes vem a cair nas mãos.
......Finalmente, nos mesmos tempos, não
lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e
quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam
de furtar mais, se mais houvesse.
......Em suma, que o resumo de toda esta rapante
conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para
furtar.
......E quando eles têm conjugado assim
toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda
a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados
de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.
......17. É certo que
os reis não querem isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário;
mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações,
tão peritos ou tão cadimos nelas, que outros efeitos se podem
esperar dos seus governos? Cada patente destas, em própria significação,
vem a ser uma licença geral in scriptis [por escrito] ou
um passaporte para furtar.
......Em Holanda, onde há tantos armadores
de corsários, repartem-se as costas da África, da Ásia
e da América com tempo limitado, e nenhum pode sair a roubar sem
passaporte, a que chamam carta de marca.
......Isto mesmo valem as provisões,
quando se dão aos que eram mais dignos da marca que da carta.
......Por mar padecem os moradores das conquistas
a pirataria dos corsários estrangeiros, que é contingente;
na terra suportam a dos naturais, que é certa e infalível.
......E se alguém duvida qual seja maior,
note a diferença de uns a outros.
O pirata do mar não rouba aos da sua república;
os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos juraram
homenagem;
do corsário do mar posso me defender:
aos da terra não posso resistir;
do corsário do mar posso fugir:
dos da terra não me posso esconder;
o corsário do mar depende dos ventos;
os da terra sempre têm por si a monção.
......Enfim, o corsário do mar pode
o que pode: os da terra podem o que querem, e por isso nenhuma presa lhes
escapa. Se houvesse um ladrão onipotente, que vos parece que faria
a cobiça junta com a onipotência? Pois isso é o que
fazem estes corsários.
IX
......18. Dos que obram o contrário
com singular inteireza de justiça e limpeza de interesse, alguns
exemplos temos, posto que poucos. Mas folgara eu saber quantos exemplos
há, não digo já dos que fossem justiçados como
tão insignes ladrões, mas dos que fossem privados do governo
por estes roubos.
......Pois, se eles furtam com os ofícios,
e os consentem e conservam nos mesmos ofícios, como não hão
de levar consigo ao inferno os que os consentem?
......O meu Santo Tomás o diz, e alega
com o texto de São Paulo:
........................Digni sunt morte,
non solum qui faciunt,
........................sed etiam qui consentiunt
facientibus.(Rm. 1,32)
........................[Merecem a morte, não
só os que fazem (malvadezas),
........................mas também os
que aprovam quem assim se comporta]
......E porque o rigor deste texto se entende
não de qualquer consentidor, senão daqueles que, por razão
de seu ofício ou estado, tem obrigação de impedir,
faz logo a mesma limitação o santo Doutor, e põe o
exemplo nomeadamente nos príncipes:
........................Sed solum quando
incumbit alicui ex officio,
........................sicut principibus terrae.
........................“Mas somente
quando obriga a alguém, exoffício,
........................como os principes da
terra”
......Verdadeiramente não sei como não
reparam muito os príncipes em matéria de tanta importância,
e como os não fazem reparar os que, no foro exterior, ou no da alma,
têm cargo de descarregar suas consciências.
......Vejam uns e outros como a todos ensinou
Cristo, que o ladrão que furta com o oficio, nem um momento se há
de consentir ou conservar nele.
......19. Havia um senhor rico,
diz o divino Mestre, o qual tinha um criado, que com ofício de ecônomo
ou administrador, governava as suas herdades (tal é o nome no original
grego, que responde ao Villico da Vulgata) (Administrador de uma propriedade).
Infamado pois o administrador de que se aproveitava da administração
e roubava, tanto que chegou a primeira notícia ao Senhor, mandou-o
logo vir diante de si, e disse-lhe que desse contas, porque já não
havia de exercitar o ofício. Ainda a resolução foi
mais apertada, porque não só disse que não havia, senão
que não podia:
........................Jam enim non poteris
villicare (Lc. 16,2)
........................[Já não
poderás ser meu administrador]
......Não tem palavra esta parábola
que não esteja cheia de notáveis doutrinas a nosso propósito.
......Primeiramente diz que este senhor era
um homem rico:
........................Homo quidem erat
dives (Lc. 16,1)
........................[Um certo homem rico]
porque não será homem quem não tiver resolução,
nem será rico, por mais herdades que tenha, quem não tiver
cuidado, e grande cuidado, de não consentir que lhas governem ladrões.
......Diz mais que, para privar a este ladrão
do ofício, bastou somente a fama, sem outras inquirições:
........................Et hic diffamatus
est apud illum(Lc. 16,1)
........................[E este foi acusado
diante dele]
porque se em tais casos houverem de mandar buscar informações
à Índia ou ao Brasil, primeiro que elas cheguem, e se lhes
ponha remédio, não haverá Brasil nem Índia.
......Não se diz, porém, nem
se sabe quem fossem os autores ou delatores desta fama, porque a estes há-lhes
de guardar segredo o senhor inviolavelmente, sob pena de não haver
quem se atreva a o avisar, temendo justamente a ira dos poderosos.
......Diz mais, que mandou vir o delatado diante
de si:
........................Et vocavit eum
........................[Então o chamou]
porque semelhantes averiguações, se se cometem a outros, e
não as faz o mesmo senhor por sua própria pessoa, com dar
o ladrão parte do que roubou, prova que está inocente.
......Finalmente, desengana-o e notifica-lhe
que não há de exercitar jamais o ofício, nem pode:
........................Jam enim non poteris
villicare
........................[Já não
poderás ser meu administrador],
porque, nem o ladrão conhecido deve continuar o ofício em
que foi ladrão, nem o senhor, ainda que quisesse, o pode consentir
e conservar nele, se não se quer condenar.
......20. Com tudo isto ser
assim, eu ainda tenho uns embargos que alegar, por parte deste ladrão,
diante do Senhor e autor da mesma parábola, que é Cristo.
......Provará que nem o furto, por sua
quantidade, nem a pessoa, por seu talento, parecem merecedores de privação
do ofício para sempre.
......Este homem, Senhor, posto que cometesse
este erro, é um sujeito de grande talento, de grande indústria,
de grande entendimento e prudência, como vós mesmo confessastes,
e ainda louvastes, que é mais:
........................Laudavit Dominus
villicum iniquitatis,
........................quia prudenter fecisset
(Lc. 16,8).
........................[O proprietário
louvou o administrador infiel,
........................ porque agiu com esperteza]
pois, se é homem de tanto préstimo, e tem capacidade e talentos
para vos tornardes a servir dele, por que o haveis de privar para sempre
do vosso serviço:
........................Jam enim non poteris
villicare?
........................[Já não
poderás administrar minha fazenda]
......Suspendei-o agora por alguns meses, como
se usa, e depois o tomareis a restituir, para que nem vós o percais,
nem ele fique perdido. Não, diz Cristo.
......Uma vez que é ladrão conhecido,
não só há de ser suspenso ou privado do ofício
ad tempus [temporariamente], senão para sempre e para nunca
jamais entrar ou poder entrar: Jam enim non poteris [Já não
poderás], porque o uso ou abuso dessas restituições,
ainda que parece piedade, é manifesta injustiça.
......De maneira que, em vez de o ladrão
restituir o que furtou no ofício, restitui-se o ladrão ao
ofício, para que furte ainda mais? Não são essas as
restituições pelas quais se perdoa o pecado, senão
aquelas por que se condenam os restituídos, e também quem
os restitui.
......Perca-se embora um homem já perdido,
e não se percam os muitos que se podem perder e perdem na confiança
de semelhantes exemplos.
......21. Suposto que este
primeiro artigo dos meus embargos não pegou, passemos a outro.
......Os furtos deste homem foram tão
leves, e a quantidade tão limitada, que o mesmo texto lhes não
dá nome de furtos absolutamente, senão de quase furtos:
........................Quasi dissipasset bona
ipsius (Lc. 16,1)
........................[Parecia estar esbanjando
seus bens]
......Pois em um mundo, Senhor, e em um tempo
em que se vêm tolerados nos ofícios tantos ladrões,
e premiados, que é mais, os plus quam [mais que] ladrões,
será bem que seja privado do seu ofício, e privado para sempre,
um homem que só chegou a ser quase ladrão? Sim, torna a dizer
Cristo, para emenda dos mesmos tempos, e para que conheça o mesmo
mundo quão errado vai.
......Assim como nas matérias do sexto
Mandamento, teologicamente, não há mínimos, assim os
deve não haver politicamente, nas matérias do sétimo,
porque quem furtou e se desonrou no pouco, muito mais facilmente o fará
no muito. E se não, vede-o nesse mesmo quase ladrão.
......Tanto que se viu notificado para não
servir o ofício, ainda teve traça para se servir dele e furtar
mais do que tinha furtado. Manda chamar muito à pressa os rendeiros,
rompe os escritos das dívidas, faz outros de novo com antedatas,
a uns diminui a metade, a outros a quinta parte, e por este modo, roubando
ao tempo os dias, às escrituras a verdade, e ao amo o dinheiro, aquele
que só tinha sido quase ladrão, enquanto encartado no ofício,
com a opinião que só tinha de o ter, foi mais que ladrão
depois.
......Aqui acabei de entender a ênfase
com que disse a pastora dos Cantares:
........................Tulerunt pallium
meum mihi (Cânt. 5,7)
........................[Tomaram-me a minha
capa]
porque se pode roubar a capa a um homem, tomando-a não a ele, senão
a outrem.
......Assim o fez a astúcia deste ladrão,
que roubou o dinheiro a seu amo, tomando-o não a ele senão
aos que lho deviam. De sorte que o que dantes era um ladrão, depois
foi muitos ladrões, não se contentando de o ser ele só,
senão de fazer a outros.
......Mas vá ele muito embora ao inferno,
e vão os outros com ele, e os príncipes imitem ao Senhor,
que se livrou de ir também, com o privar do ofício tão
prontamente.
X
......22. Esta doutrina em
geral, pois é de Cristo, nenhum entendimento cristão haverá
que a não venere.
......Haverá, porém, algum político
tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de sujeitos,
e que funde as exceções no mesmo texto. O sujeito em que se
fez esta execução, chama-lhe o Texto, Villico[administrador
de fazenda] logo, em pessoas vis, ou de inferior condição,
será bem que se executem estes e semelhantes rigores, e não
em outras de diferente suposição, com as quais, por sua qualidade
e outras dependências, é lícito e conveniente que os
reis dissimulem.
......Oh! como está o inferno cheio
dos que com estas e outras interpretações, por adularem os
grandes e os supremos, não reparam em os condenar!
......Mas, para que não creiam a aduladores,
creiam a Deus, e ouçam: Revelou Deus a Josué que se tinha
cometido um furto nos despojos de Jericó, depois de lho ter bem custosamente
significado, com o infeliz sucesso do seu exército. E mandou-lhe
que, descoberto o ladrão, fosse queimado.
......Fez-se diligência exata, e achou-se
que um, chamado Acã. Tinha furtado uma capa de grã, uma regra
de ouro, e algumas moedas de prata, que tudo não valia cem cruzados.
Mas quem era este Acã? Era porventura algum homem vil, ou algum soldadinho
da fortuna, desconhecido e nascido das ervas? Não era menos que do
sangue real de Judá, e por linha masculina, quarto neto seu.
......Pois, uma pessoa de tão alta qualidade,
que ninguém era ilustre em todo Israel, senão pelo parentesco
que tinha com ele, há de morrer queimado por ladrão? E por
um furto, que hoje seria venial, há de ficar afrontada para sempre
uma casa tão ilustre?
......Vós direis que era bem se dissimulasse;
mas Deus, que o entende melhor que vós, julgou que não. Em
matéria de furtar não há exceção de pessoas,
e quem se abateu a tais vilezas, perdeu todos os foros.
......Executou-se com efeito a lei: foi justiçado
e queimado Acã; ficou o povo ensinado com o exemplo; e ele foi venturoso
no mesmo castigo, porque, como notam graves autores, comutou-lhe Deus aquele
fogo temporal pelo que havia de padecer no inferno, felicidade que impedem
aos ladrões os que dissimulam com eles.
......23. E quanto à
dissimulação que se diz devem ter os reis com pessoas de grande
suposição, de quem talvez depende a conservação
do bem público, e são mui necessárias a seu serviço,
respondo com distinção. Quando o delito é digno de
morte, pode-se dissimular o castigo e conceder-se às tais pessoas
a vida; mas quando o caso é de furto, não se lhes pode dissimular
a ocasião, mas logo devem ser privadas do posto.
......Ambas estas circunstâncias concorreram
no crime de Adão. Pôs-lhe Deus preceito que não comesse
da árvore vedada, sob pena de que morreria no mesmo dia:
........................In quocumque die
comederis, morte morieris (Gn. 2,17)
........................[no dia em que comeres
do (fruto proibido), morrerás]
......Não guardou Adão o preceito,
roubou o fruto, e ficou sujeito, ipso facto, à pena de morte. ......Mas,
que fez Deus neste caso?
......Lançou-o logo do Paraíso,
e concedeu-lhe a vida por muitos anos. Pois, se Deus o lançou do
Paraíso pelo furto que tinha cometido, por que não executou
também nele a pena de morte a que ficou sujeito?
......Porque da vida de Adão dependia
a conservação e propagação do mundo, e quando
as pessoas são de tanta importância, e tão necessárias
ao bem público, justo é que, ainda que mereçam a morte,
se lhes permita e conceda a vida.
......Porém, se juntamente são
ladrões, de nenhum modo se pode consentir nem dissimular que continuem
no posto e lugar onde o foram, para que não continuem a o ser.
......Assim o fez Deus, e assim o disse. Pôs
um querubim com uma espada de fogo à porta do Paraíso, com
ordem que de nenhum modo deixasse entrar a Adão. E por quê?
Porque assim como tinha furtado da árvore da ciência, não
furtasse também da árvore da vida:
........................Ne forte mittat
manum suam, et sumat etiam de ligno vitae (Gn.3,22)
........................[Para que não
estenda a sua mão e se apodere também da árvore da
vida]
......Quem foi mau uma vez, presume o Direito
que o será outras, e que o será sempre.
......Saia pois Adão do lugar onde furtou,
e não torne a entrar nele, para que não tenha ocasião
de fazer outros furtos, como fez o primeiro.
......E notai que Adão, depois de ser
privado do Paraíso, viveu novecentos e trinta anos.
......Pois, a um homem castigado e arrependido,
não lhe bastaram cem anos de privação do posto, não
lhe bastarão duzentos ou trezentos? Não.
......Ainda que haja de viver novecentos anos,
e houvesse de viver nove mil, uma vez que roubou, e é conhecido por
ladrão, nunca mais deve ser restituído, nem há de entrar
no mesmo posto.
XI
......24. Assim o fez Deus
com o primeiro homem do mundo, e assim o devem executar com todos os que
estão em lugar de Deus.
......Mas que seria se não só
víssemos os ladrões conservados nos lugares onde roubam, senão,
depois de roubarem, promovidos a outros maiores?
......Acabaram-se-me aqui as Escrituras, porque
não há nelas exemplo semelhante. De reis que mandassem conquistar
inimigos, sim, mas de reis que mandassem governar vassalos, não se
lê tal coisa.
......Os Assueros, os Nabucos, os Ciros, que
dilatavam por armas os seus impérios, desta maneira premiavam os
capitães, acrescentando em postos os que mais se sinalavam em destruir
cidades e acumular despojos, e daqui se faziam os Nabusardões, os
Holofernes, e os outros flagelos do mundo.
......Porém os reis, que tratam os vassalos
como seus, e os Estados, posto que distantes, como fazenda própria,
e não alheia, lede o Evangelho, e vereis quais são os sujeitos,
e quão úteis a quem encomendam o governo deles.
......25. Um rei, diz Cristo, Senhor nosso,
fazendo ausência do seu reino à conquista de outro, encomendou
a administração da sua fazenda a três criados.
......O primeiro acrescentou-a dez vezes mais
do que era, e o ri, depois de o louvar, o promoveu ao governo de dez cidades:
........................Euge bone serve,
quia in modico fuisti fidelis,
........................eris potestatem habens
super decem civitates(Lc. 19,17)
........................[Muito bem meu bom
servo, porque foste fiel no pouco,
........................serás governador
de dez cidades]
......O segundo também acrescentou à
parte que lhe coube cinco vezes mais, e com a mesma proporção
o fez o rei governador de cinco cidades:
........................Et tu esto super
quinque civitates (Lc. 19,19)
........................[E tu recebe o governo
de cinco cidades]
......De sorte que os que o rei acrescenta
e deve acrescentar nos governos, segundo a doutrina de Cristo, são
os que acrescentam a fazenda do mesmo rei, e não a sua. Mas vamos
ao terceiro criado. Este tornou a entregar quanto o rei lhe tinha encomendado,
sem diminuição alguma, mas também sem melhoramento,
e no mesmo ponto, sem mais réplica, foi privado da administração:
........................Auferte ab illo
mnam (Lc. 19,24)
........................[Tirem dele a moeda
de prata]
......Oh! que ditosos foram os nossos tempos,
se as culpas por que este criado foi privado do ofício foram os serviços
e merecimentos por que os dagora são acrescentados! Se o que não
tomou um real para si, e deixou as coisas no estado em que lhas entregaram,
merece privação do cargo, os que as deixam destruídas
e perdidas, e tão diminuídas e desbaratadas, que já
não têm semelhança do que foram, que merecem? Merecem
que os despachem, que os acrescentem e que lhes encarreguem outras maiores,
para que também as consumam e tudo se acabe? Eu cuidava que, assim
como Cristo introduziu na sua parábola dois criados que acrescentaram
a fazenda do rei, e um que a não acrescentou, assim havia de introduzir
outro que a roubasse, com que ficava a divisão inteira. Mas não
introduziu o divino Mestre tal criado, porque falava de um rei prudente
e justo, e os que têm estas qualidades (como devem ter, sob pena de
não serem reis) nem admitem em seu serviço, nem fiam a sua
fazenda a sujeitos que lha possam roubar: a algum que não lha acrescente,
poderá ser, mas um só; porém a quem lhe roube, ou a
sua, ou a dos seus vassalos (que não deve distinguir da sua) não
é justo, nem rei quem tal consente. E que seria se estes, depois
de roubarem uma cidade, fossem promovidos ao governo de cinco, e, depois
de roubarem cinco, ao governo de dez?
......26. Que mais havia de
fazer um príncipe cristão, se fora como aqueles príncipes
infiéis, de quem diz Isaías:
........................Principes tui infideles,
socii furum (Is. 1, 23)
........................[os teus príncipes
são bandidos e cúmplices dos ladrões]
......Os príncipes de Jerusalém
não são fiéis, senão infiéis, porque
são companheiros dos ladrões. Pois saiba o profeta que há
príncipes fiéis e cristãos, que ainda são mais
miseráveis e mais infelizes que estes, porque um príncipe
que entrasse em companhia com os ladrões: Socii furum, havia
de ter também a sua parte no que se roubasse; mas estes estão
tão fora de ter parte no que se rouba, que eles são os primeiros,
os mais roubados.
......Pois, se são os roubados estes
príncipes, como são ou podem ser companheiros dos mesmos ladrões:
........................Principes tui socii
furum?
........................[os teus príncipes
são cúmplices dos ladrões]
......Será porventura porque talvez
os que acompanham e assistem aos príncipes são ladrões?
Se assim fosse, não seria coisa nova.
......Antigamente os que assistiam ao lado
dos príncipes, chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este
vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria
se assim, como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também
os que o mesmo vocábulo significa? Mas eu nem digo nem cuido tal
coisa.
......O que só digo e sei, por ser teologia
certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías
diz dos príncipes de Jerusalém:
........................Principes tui socii
furum (Is. 1,23)
........................[os teus príncipes
são cúmplices dos ladrões]
......Os teus príncipes são companheiros
dos ladrões. E por quê? São companheiros dos ladrões,
porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque
os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão
os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões porque
talvez os defendem, e são, finalmente, seus companheiros, porque
os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões
os levam consigo.
......27. Ouvi a ameaça
e sentença de Deus contra estes tais:
........................Si videbas furem,
currebas cum eo (Sl.50,18)
........................[Se vires um ladrão,
tu o acompanhas]
........................o hebreu lê concurrebas
[concorrias],
e tudo é, porque há príncipes que correm com os ladrões
e concorrem com eles. Correm com eles, porque os admitem à sua familiaridade
e graça, e concorrem com eles, porque, dando-lhes autoridade e jurisdições,
concorrem para o que eles furtam.
......E a maior circunstância desta gravíssima
culpa consiste no Si videbas [Se vês...]. Se estes ladrões
foram ocultos, e o que corre e concorre com eles não os conhecera,
alguma desculpa tinha; mas se eles são ladrões públicos
e conhecidos, se roubam sem rebuço e à cara descoberta, se
todos os vêem roubar, e o mesmo que os consente e apóia o está
vendo:
........................Si videbas furem
[se vês um ladrão...],
que desculpa pode ter diante de Deus e do mundo?
........................Existimasti inique
quod ero tui similis (Sl. 50, 21):
........................[Pensaste, maliciosamente,
que eu era semelhante a ti]
......Cuidas tu, ó injusto, diz Deus,
que hei de ser semelhante a ti e que, assim como tu dissimulas com estes
ladrões, hei eu de dissimular contigo? Enganas-te.
........................Arguam te, et statuam
contra faciam tuam
........................[Eu te acuso e coloco
tudo diante de teus olhos]
......Dessas mesmas ladroíces, que tu
vês e consentes, hei de fazer um espelho em que te vejas e quando
vires que és tão réu de todos esses furtos, como os
mesmos ladrões, porque os não impedes, e mais que os mesmos
ladrões, porque tens obrigação jurada de os impedir,
então conhecerás que tanto, e mais justamente que a eles,
te condeno ao inferno.
......Assim o declara com última e temerosa
sentença a paráfrase caldaica do mesmo Texto:
........................Arguam te in hoc
saeculo, et ordinabo judicium Gehennae in futuro coram te
........................[Eu te acuso nesta
geração e no futuro ordenarei a tua
........................ condenação
ao inferno]
......Neste mundo argüirei a tua consciência,
como agora a estou argüindo, e no outro mundo condenarei a tua alma
ao inferno, como se verá no dia do Juízo.
XII
......28. Grande lástima será
naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam consigo muitos reis
ao inferno; e para que esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora
como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões
ao Paraíso.
......Parecerá a alguém, pelo
que fica dito, que será coisa muito dificultosa, e que se não
pode conseguir sem grandes despesas, mas eu vos afirmo, e mostrarei brevemente,
que é coisa muito fácil, e que sem nenhuma despesa de sua
fazenda, antes com muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que
modo? Com uma palavra, mas palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões,
os quais não costumam restituir, restituam efetivamente tudo o que
roubaram.
......Executando-o assim, salvar-se-ão
os ladrões e salvar-se-ão os reis. Os ladrões salvar-se-ão,
porque restituirão o que têm roubado, e os reis salvar-se-ão
também, porque restituindo os ladrões, não terão
eles obrigação de restituir. Pode haver ação
mais justa, mais útil e mais necessária a todos? Só
quem não tiver fé, nem consciência, nem juízo,
o pode negar.
......29. E porque os mesmos
ladrões se não sintam de haverem de perder por este modo o
fruto das suas indústrias, considerem que, ainda que sejam tão
maus como o mau ladrão, não só deviam abraçar
e desejar esta execução, mas pedi-la aos mesmos reis.
......O bom ladrão pediu a Cristo, como
a rei, que se lembrasse dele no seu reino, e o mau ladrão, que lhe
pediu?
........................Si tu es Christus,
salvum fac temetipsum et nos (Lc. 23,39)
........................[Se tu és o
Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós]
......Se sois o rei prometido, como crê
meu companheiro, salvai-vos a vós e a nós. Isto pediu o mau
ladrão a Cristo, e o mesmo devem pedir todos os ladrões a
seu rei, posto que sejam tão maus como o mau ladrão.
......Nem Vossa Majestade, Senhor, se pode
salvar, nem nós nos podemos salvar sem restituir. Nós não
temos ânimo nem valor para fazer a restituição, como
nenhum a faz, nem na vida, nem na morte; mande-a, pois, fazer executivamente
Vossa Majestade, e, por este modo, posto que para nós seja violento,
salvar-se-á Vossa Majestade a si, e mais a nós:
........................Salvum fac temetipsum
et nos.
........................[Salva-te a ti mesmo
e a nós]
......Creio que nenhuma consciência haverá
cristã, que não aprove este meio. E para que não fique
em generalidade, que é o mesmo que no ar, desçamos à
prática dele, e vejamos como se há de fazer. Queira Deus que
se faça!
......30. O que costumam furtar nestes ofícios
e governos os ladrões de que falamos, ou é a fazenda real,
ou a dos particulares, e uma e outra têm obrigação de
restituir depois de roubada, não só os ladrões que
a roubaram, senão também os reis, ou seja porque dissimularam
e consentiram os furtos quando se faziam, ou somente (que isto basta) por
serem sabedores deles depois de feitos.
......E aqui se deve advertir uma notável
diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis
e a dos particulares.
......Os particulares, se lhes roubam a sua
fazenda, não só não são obrigados à restituição,
antes terão nisso grande merecimento, se o levarem com paciência,
e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior
condição nesta parte, porque, depois de roubados, têm
eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada,
nem a podem dimitir ou perdoar aos que a roubaram.
......A razão da diferença é
porque a fazenda do particular é sua: a do rei não é
sua, senão da República. E assim como o depositário,
ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada
e teria obrigação de a restituir,assim tem a mesma obrigação
o rei, que é tutor e como depositário dos bens e erário
da República, a qual seria obrigado a gravar com novos tributos,
se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
......31. O modo pois com que
as restituições da fazenda real se podem fazer facilmente,
ensinou aos reis um monge, o qual, assim como soube furtar, soube também
restituir. Refere o caso Mayolo, Crantzio e outros.
......Chamava-se o monge frei Teodorico, e
porque era homem de grande inteligência e indústria, cometeu-lhe
o imperador Carlos Quinto algumas negociações de importância,
em que ele se aproveitou de maneira que competia em riquezas com os grandes
senhores. Advertido o imperador, mandou-o chamar à sua presença,
e disse-lhe que se aparelhasse para dar contas. Que faria o pobre, ou rico
monge?
......Respondeu sem se assustar que já
estava aparelhado, que naquele mesmo ponto as daria, e disse assim:
......Eu, César, entrei no serviço
de Vossa Majestade com este hábito, e dez ou doze tostões
na bolsa, da esmola das minhas Missas; deixe-me Vossa Majestade o meu hábito
e os meus tostões, e tudo o mais que possuo, mande-o Vossa Majestade
receber, que é seu, e tenho dado contas.
......Com tanta facilidade como isto fez a
sua restituição o monge, e ele ficou guardando os seus votos,
e o imperador a sua fazenda.
......Reis e príncipes mal servidos,
se quereis salvar a alma e recuperar a fazenda, introduzi, sem exceção
de pessoas, as restituições de frei Teodorico.
......Saiba-se com que entrou cada um; o de
mais torne para donde saiu, e salvem-se todos.
XIII
......32. A restituição que igualmente
se deve fazer aos particulares parece que não pode ser tão
pronta nem tão exata, porque se tomou a fazenda a muitos e a províncias
inteiras. Mas como estes pescadores do alto usaram de redes varredouras,
use-se também com eles das mesmas.
......Se trazem muito, como ordinariamente
trazem, já se sabe que foi adquirido contra a lei de Deus, ou contra
as leis e regimentos reais, e por qualquer destas cabeças, ou por
ambas, injustamente.
......Assim se tiram da Índia quinhentos
mil cruzados, de Angola duzentos, do Brasil trezentos, e até do pobre
Maranhão mais do que vale todo ele. E que se há de fazer desta
fazenda? Aplicá-la o rei à sua alma e às dos que a
roubaram, para que umas e outras se salvem.
......Dos governadores que mandava a diversas
províncias o Imperador Maximino, se dizia com galante e bem apropriada
semelhança, que eram esponjas.
......A traça ou astúcia com
que usava destes instrumentos era toda encaminhada a fartar a sede da sua
cobiça, porque eles, como esponjas, chupavam das províncias
que governavam tudo quanto podiam, e o imperador, quando tornavam, espremia
as esponjas, e tomava para o fisco real quanto tinham roubado, com que ele
ficava rico, e eles castigados.
......Uma coisa fazia mal este imperador, outra
bem, e faltava-lhe a melhor. Em mandar governadores às províncias
homens que fossem esponjas fazia mal; em espremer as esponjas quando tornavam,
e lhes confiscar o que traziam, fazia bem, e justamente. Mas faltava-lhe
a melhor, como injusto e tirano que era, porque tudo o que espremia das
esponjas não o havia de tomar para si, senão restituí-lo
às mesmas províncias donde se tinha roubado.
......Isto é o que são obrigados
a fazer, em consciência, os reis que se desejam salvar, e não
cuidar que satisfazem ao zelo e obrigação da justiça,
com mandar prender em um castelo o que roubou a cidade, a província,
o estado.
......Que importa que por alguns dias ou meses
se lhe dê esta sombra de castigo, se passados eles se vai lograr do
que trouxe roubado, e os que padeceram os danos não são restituídos.
......33. Há nesta,
que parece justiça, um engano gravíssimo, com que nem o castigado,
nem o que castiga se livram da condenação eterna; e para que
se entenda ou queira entender este engano, é necessário que
se declare.
......Quem tomou o alheio fica sujeito a duas
satisfações: à pena da lei e à restituição
do que tomou.
......Na pena, pode dispensar o rei como legislador;
na restituição não pode, porque é indispensável.
......E obra-se tanto pelo contrário,
ainda quando se faz ou se cuida que se faz justiça, que só
se executa a pena, ou alguma parte da pena, e a restituição
não lembra, nem se faz dela caso.
......Acabemos com Santo Tomás. Põe
o Santo doutor em questão:
........................Utrum sufficiat
restituere simplim quod injuste ablatum est
........................[Se basta restituir
apenas tanto quanto se tomou injustamente]
......Se, para satisfazer à restituição,
basta restituir outro tanto quanto foi o que se tomou? E depois de resolver
que basta, porque a restituição é ato de justiça,
e a justiça consiste em igualdade, argumenta contra a mesma resolução,
com a lei do capítulo vinte e dois do Êxodo, em que Deus mandava
que quem furtasse um boi restituísse cinco; logo, ou não basta
restituir tanto por tanto, senão muito mais do que se furtou; ou,
se basta, como está resoluto, de que modo se há de entender
esta lei?
......Há-se de entender, diz o santo,
distinguindo na mesma lei duas partes: uma enquanto lei natural, pelo que
pertence à restituição, e outra enquanto lei positiva,
pelo que pertence à pena.
......A lei natural, para guardar a igualdade
do dano, só manda que se restitua tanto por tanto; a lei positiva,
para castigar o crime do furto, acrescentou em pena mais quatro anos, e
por isso manda pagar cinco por um.
......Há-se porém de advertir,
acrescenta o santo Doutor, que entre a restituição e a pena
há uma grande diferença, porque à satisfação
da pena não está obrigado o criminoso antes da sentença,
porém à restituição do que roubou, ainda que
o não sentenciem nem obriguem, sempre está obrigado.
......Daqui se vê claramente o manifesto
engano ainda dessa pouca justiça, que poucas vezes se usa. Prende-se
o que roubou, e mete-se em livramento. Mas que se segue daí?
......O preso, tanto que se livrou da pena
do crime, fica muito contente; o rei cuida que satisfez à obrigação
da justiça, e ainda se não tem feito nada, porque ambos ficam
obrigados à inteira restituição dos mesmos roubos,
sob pena de se não poderem salvar. O réu porque não
restitui, e o rei porque o não faz restituir.
......Tire, pois, o rei executivamente a fazenda
a todos os que a roubaram, e faça as restituições por
si mesmo, pois eles as não fazem, nem hão de fazer, e deste
modo que não há, nem pode haver outro em vez de os ladrões
levarem os reis ao inferno, como fazem, os reis levarão os ladrões
ao Paraíso, como fez Cristo:
........................Hodie mecum eris
in Paradiso. [Hoje estarás comigo no Paraíso]
XIV
......34. Tenho acabado, senhores,
o meu discurso, e parece-me que demonstrado o que prometi, de que não
estou arrependido. Se a alguém pareceu que me atrevi a dizer o que
fora mais reverência calar, respondo com Santo Hilário:
........................Quae loqui non
audemus, silere non possumus
........................[Não podemos
silenciar o que não ousamos dizer]
......O que se não pode calar com boa
consciência, ainda que seja com repugnância, é força
que se diga. Ouvinte coroado era aquele a quem o Batista disse:
........................Non licet tibi
(Mc.6,18)
........................[Não te é
licito]
e coroado também, posto que não ouvinte, aquele a quem Cristo
mandou dizer:
........................Dicite vulpi illi
(Lc. 13,32)
........................[Dizei àquela
raposa]
......Assim o fez animosamente Jeremias, porque
era mandado por pregador
........................ Regibus
Juda, et Principibus ejus (Jr. 1,18)
........................ [Aos reis de Judá
e aos seus príncipes]
......E se Isaías o tivera feito assim,
não se arrependera depois, quando disse:
........................Vae mihi, quia
tacui [Ai de mim, porque me calei]
......Os médicos dos reis com tanta
e maior liberdade lhes devem receitar a eles o que importa à sua
saúde e vida, como aos que curam nos hospitais. Nos particulares,
cura-se um homem; nos reis, toda a República.
......35. Resumindo pois o
que tenho dito, nem os reis, nem os ladrões, nem os roubados se podem
molestar da doutrina que preguei, porque a todos está bem.
......Está bem aos roubados, porque
ficarão restituídos do que tinham perdido; está bem
aos reis, porque sem perda, antes com aumento da sua fazenda, desencarregarão
suas almas.
......E, finalmente, os mesmos ladrões,
que parecem os mais prejudicados, são os que mais interessam.
......Ou roubaram com tenção
de restituir, ou não: se com tenção de restituir, isso
é o que eu lhes digo, e que o façam a tempo. Se o fizeram
sem essa tenção, fizeram logo conta de ir ao inferno, e não
podem estar tão cegos que não tenham por melhor ir ao Paraíso.
......Só lhes pode fazer medo haverem
de ser despojados do que despojaram aos outros, mas, assim como estes tiveram
paciência por força, tenham-na eles com merecimento.
......Se os esmoleres compram o céu
com o próprio, por que se não contentarão os ladrões
de o comprar com o alheio?
......A fazenda alheia e a própria toda
se alija ao mar, sem dor, no tempo da tempestade. E quem há que,
salvando-se do naufrágio a nado e despido, não mande pintar
a sua boa fortuna, e a dedique aos altares com ação de graças?
......Toda a sua fazenda dará o homem
de boa vontade por salvar a vida, diz o Espírito Santo, e quanto
de melhor vontade deve dar a fazenda, que não é sua, por salvar,
não a vida temporal, senão a eterna?
......O que está sentenciado à
morte e à fogueira, não se teria por muito venturoso, se lhe
aceitassem por partido a confiscação só dos bens?
......Considere-se cada um na hora da morte,
e com o fogo do inferno à vista, e verá se é bom partido
o que lhe persuado.
......Se as vossas mãos e os vossos
pés são causa de vossa condenação, cortai-os,
e se os vossos olhos, arrancai-os, diz Cristo, porque melhor vos está
ir ao Paraíso manco, aleijado e cego, que com todos os membros inteiros
ao inferno. É isto verdade, ou não? Acabemos de ter fé,
acabemos de crer que há inferno, acabemos de entender que sem restituir
ninguém se pode salvar.
......Vede, vede, ainda humanamente, o que
perdeis, e por quê. Nesta restituição, ou forçosa,
ou forçada, que não quereis fazer, que é o que dais
e o que deixais? O que dais, é o que não tínheis; o
que deixais é o que não podeis levar convosco, e por isso
vos perdeis.
......Nu entrei neste mundo, e nu hei de sair
dele, dizia Jó, e assim saíram o bom e o mau ladrão.
......Pois, se assim há de ser, queirais
ou não queirais, despido por despido, não é melhor
ir com o bom ladrão ao Paraíso, que com o mau ao inferno?
......36. Rei dos reis e Senhor
dos senhores, que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro
ladrão (e o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro
ladrão) para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com
vosso exemplo, e inspirai com vossa graça a todos os reis, que, não
elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões,
de tal maneira impidam os furtos futuros, e façam restituir os passados,
que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno,
levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós
fizestes hoje:
........................Hodie mecum eris in
Paradiso.
........................ [Hoje estarás
comigo no Paraíso]