.II
O PREÇO DA OUSADIA
......1. Vieira
no topo do poder.
......Vieira foi um cidadão
sábio que na vida teve posicionamentos pouco costumeiros para o padrão
tradicional da vida clerical. Foi estimado por reis e rainhas, príncipes,
ministros e até Papas e cardeais. Foi estimado e prestigiado por
seus superiores e foi estimado e querido das pessoas mais simples deste
mundo e das pessoas perseguidas e maltratadas. Foi envolvido e atuou nos
meios políticos, empresariais e econômicos. Atuou no mundo
diplomático articulando apoios à restauração
da independência de Portugal, atacado pela Espanha e à integridade
do território do Brasil, invadido pelos holandeses. Sua ação
foi decisiva, embora, em alguns casos, tivesse sucesso minguado, como era
de esperar em questões tão controversas. Vieira foi também
um missionário ardoso e entusiasmado entre os índios da Amazônia
e do Grão-Pará. Foi um grande orador, um grande pensador e
um grande escritor.
......Viveu no topo do poder
de seu tempo, nos palácios reais, dos governadores, dos papas e dos
cardeais, sempre empenhado em altas missões. Viveu com o mesmo carinho
e a mesma intensidade, entre choupanas de brancos pobres, de índios
e negros; de livres e de escravos. A todos queria bem, a todos estimava,
a todos tratava como irmãos; a todos tratava as feridas; a todos
defendia. Defendia também os judeus discriminados e perseguidos.
......É sabido que
as pessoas que adquirem mais prestígio e notoriedade sempre atraem
ódios, invejas, intrigas e conseqüentes conspirações
de quem gostaria de estar naquele lugar privilegiado. Com Vieira não
foi diferente. E mesmo: é melhor ter inimigos por ter algo do que
não os ter por nada ter.
......2. Estatura moral de Vieira.
......É
tal a estatura moral de Vieira e tão ampla a diversidade de sua atuação;
foi tão profunda e decisiva sua interferência nos rumos da
história, que pode, com plena justiça, ser colocado ao lado
dos grandes líderes e guias da humanidade.
......Num grande painel em
que se homenageassem as 500 pessoas mais influentes e decisivas na condução
dos destinos da humanidade, certamente lá estaria o nosso P. Antônio
Vieira, com seu porte discreto e nobre e seu olhar vivo e perspicaz com
sua sotaina surrada. Estaria ao lado dos grandes profetas e patriarcas e
dos grandes escritores e pensadores, com o livro dos Sermões em uma
das mãos e uma espada na outra, representando a força de sua
Palavra que ele sempre soube empunhar com grande versatilidade.
......Talvez estivesse bem
perto do batalhão dos mártires que não hesitaram em
dar a vida por seus irmãos.
......3. Vieira, defensor dos Direitos Humanos.
......Dissemos
que Vieira viveu no topo do poder. Dissemos que era muito estimado e querido
por pessoas de todas as classes; nobres e plebeus acorriam entusiasmados
aos seus Sermões. Dissemos que Vieira defendia os brancos empobrecidos,
os índios, os negros e os judeus perseguidos. É que ele não
era uma pessoa acomodada ao bem-estar e aos mimos da corte e das pessoas
detentoras do poder; não era um homem escravo de fúteis vaidades.
......Efetivamente Vieira
agia como os profetas: defendia incondicionalmente a verdade contra a falsidade;
a justiça contra a injustiça; a liberdade contra a injusta
opressão e contra a escravidão; a solidariedade contra o individualismo;
a dignidade humana contra a hipocrisia, a dissimulação e as
máscaras sociais.
......Vieira arguia, do púlpito,
as pessoas que agrediam a justiça, a liberdade ou a dignidade humana.
Arguia reis, príncipes, ministros, governadores, papas, cardeais,
bispos, padres e até os empresários. Argüia também
os políticos e os pregadores.
4. Quem Vieira defendia?
......Vieira fazia a defesa
incondicional do respeito aos negros e aos índios.
......Defendia os brancos
também explorados pelos detentores do poder.
......Defendia os judeus que
eram perseguidos e expulsos apenas por motivos de sua crença religiosa.
......Defendia com a mesma
veemência o direito de Portugal à independência, contra
as pretensões da Espanha, que queria dominar o seu país.
......Defendia o Brasil contra
os holandeses que invadiram e conquistaram pela força, diversos pontos
chave no Norte e Nordeste do país, com sérias incursões
no Sudoeste, até São Paulo.
......Nessa defesa tão
ampla dos direitos humanos e das nações, Vieira pronunciou
alguns dos seus mais veementes e energéticos Sermões.
......Podemos destacar alguns
Sermões paradigmáticos:
......- O segundo Sermão
que Vieira pregou e redigiu foi dirigido aos pretos, em Salvador, argüindo
a escravidão. (1633)
......- O “Sermão
pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”,
durante a invasão à Bahia. (1641)
......- O “Sermão
de Santo Antônio dos Peixes”, pregado em São
Luis do Maranhão (1654), argüindo a elite social através
de alegorias.
......- O “Sermão
das Tentações” ou “Sermão
dos Escravos”, pregado em São Luis do Maranhão.
(1653)
......- O “Sermão
da Epifania” pregado em Lisboa, em 1662, após a expulsão
dos religiosos das Missões do Maranhão, por defenderem os
índios do injusto cativeiro. É o chamado “Sermão
das Missões”.
......Além destes,
muitos outros sermões argüiam esta grave problemática.
Também é tratado o assunto em profundidade em muitas cartas
e em muitos, densos e graves documentos escritos e assinados por Vieira.
......Enfim, o P. Vieira não
exercia uma atividade apenas religiosa. Assumia e defendia com grande energia
questões sociais do seu povo, principalmente dos mais desprotegidos,
dos perseguidos e dos escravos.
......Vieira lutava por um
mundo de justiça, de paz, de liberdade e de fraternidade. Não
pensava apenas em questões escatológicas., dos fins das pessoas
e do destino final. Queria o Reino de Cristo, na terra consumada.
Aliás, este é o tema do livro “Chave dos Profetas”
(Clavis Prophetarum).
......5.
O Preço da Ousadia.
......Pelos necessitados e pela verdade.
......Vieira
pagou caro pela luta em defesa dos índios, dos negros e dos judeus.
......Pagou caro pela defesa
da independência de seu país.
......Pagou caro por seu ardor
profético ao exigir dos políticos mais honestidade e respeito
pelo bem público.
......Pagou caro por desmascarar
a atitude de muitos pregadores que, em vez de pregar a palavra de Deus,
como o semeador, usavam o púlpito para encantar o povo com efeitos
especiais da linguagem, esquecendo o conteúdo para educar o povo.
......Pagou caro por acreditar
que o Reino de Cristo deve ser implantado na terra e não se reduz
ao reino dos céus.
......Pagou caro por acreditar
que as pessoas podem ser inspiradas pelo Espírito e profetizar; e
que Bandarra, o profeta de Trancoso, era um verdadeiro profeta apesar de
ser um simples sapateiro.
......Pagou caro por ter posições
religiosas semelhantes à dos Templários que
tinham todo o respeito por pessoas de outras religiões, acreditando
na necessidade do diálogo inter-religioso como fez com o presidente
do rabinato de Amsterdã, o grande sábio, Manassés ben
Israel.
......Pagou caro por seu profundo
conhecimento das Escrituras, que sempre foram a base de seus Sermões.
......Pagou caro por seu respeito
aos clássicos, com destaque para Sênica, filósofo romano,
cuja obra comentou em suas aulas e em livro que fez publicar no começo
de sua carreira, sendo que Sêneca era pagão.
......Pagou caro por seus
lúcidos e energéticos documentos que redigiu, em favor dos
índios e dos judeus.
......Pagou caro por sua argüição
aos empresários desonestos que se serviam dos índios e os
escravizavam contra as leis vigentes.
......Pagou caro por seu espírito
de liberdade que o levou a ler textos não canônicos, não
recomendados pela hierarquia eclesiástica e de onde tirou algumas
luzes para seus veementes argumentos.
......Pagou caro por ser plenamente
fiel às luzes e inspirações do Espírito Santo,
ainda que pudesse, com isso, contrariar algumas posições da
hierarquia eclesiástica.
......Pagou caro por seu amor
incondicional ao seu país, apesar de espinafrar os demandos e a corrupção
de alguns políticos e líderes sociais.
......Pagou caro até
por seu amor incondicional à sua Igreja, apesar, por lealdade filial,
de fazer críticas aos desmandos de algumas figuras da estrutura eclesiástica,
por seus vícios notórios.
......6. Os contrariados armam ciladas e conspirações.
......Todas as pessoas e instituições
a que Vieira eventualmente desagradou ou até ofendeu, contrariando
seus interesses, ao defender a dignidade dos índios, dos negros,
dos pobres, dos judeus ou ao reivindicar a sua liberdade de pensamento à
luz do Evangelho; todas as manifestações proféticas
de Vieira, inclusive a defesa da independência de seu povo, sempre
armaram os “ofendidos” / “contrariados” contra ele.
......As pessoas interesseiras
ou de mau caráter não admitiam a intervenção
de Vieira em assuntos não religiosos. Negavam-lhe os direitos de
cidadão, apesar de ele ter todos os seus direitos garantidos.
......Assim, foram
armando conspirações em cima de conspirações
e intrigas sobre intrigas. Sofreu um golpe certeiro ao ser injuriado
e surpreendido numa grande armação em São Luis do Maranhão.
Foi agarrado e arrastado para uma nau, onde ficou detido e depois enviado
de volta para o Reino, para não falar mais ao povo.
......Em Portugal já
corria denúncia contra ele, questionando a ortodoxia de seus sermões,
de suas cartas, de sua doutrina e de sua interpretação das
Escrituras.
......Foi preso, desterrado,
interrogado, humilhado e vigiado, como pessoa anti-social, tendo seus movimentos
controlados e limitados. Foi interrogado em questões de fé
que até para um menino seriam primárias. (!!!) Até
para ir ao médico precisava pedir licença, apesar de estar
muito doente.
......Este calvário
Vieira passou em Coimbra, Porto e Lisboa. Quase foi condenado
à fogueira. Mas teve uma condenação grave: foi condenado
ao silêncio um dos maiores oradores de todos os tempos... Foi uma
afronta. Seria a destruição de toda a sua vida. Perderia toda
a credibilidade... É algo tão abominável como divulgar
falsamente que a água de um poço está envenenada ou
querer estancar as águas do mar.
......Entretanto a condenação
a este homem mais desonrou quem o condenou do que a ele mesmo.
......7. Defesa de Vieira em Roma.
......Mesmo punido, Vieira
conseguiu licença para ir a Roma com uma missão especial.
Aproveitou a fazer sua defesa junto ao Papa, por intermédio do Padre
Geral da Companhia de Jesus.
......Na sua defesa denuncia
as falcatruas dos membros da Inquisição, dizendo inclusive
que alguns de seus juízes eram também inimigos de Portugal,
que ele defendia e o condenavam por isto, etc, etc.
......Também denunciou
a conspiração armada pelos dominicanos que
se sentiram atingidos por suas farpas contra os maus pregadores que Vieira
tinha argüido no “Sermão da Sexagésima”
- “do Semeador”.
......O Papa o chamou de “dileto
filho” e o absolveu de todas as acusações.
Ainda o livrou da alçada da Inquisição de Portugal
e assumiu pessoalmente a proteção do grande pregador que passou
a depender diretamente do Papa, segundo consta.
......É sabido que
boa parte dos julgamentos da Inquisição tinham base em conspirações
políticas por interesses escusos. Isto ocorreu em todo o
mundo católico.
......Se isto tudo não
bastasse, já no final de sua vida, foi destratado pelo Governador
de Salvador, que denunciou o seu irmão mais velho, o Dr. Bernardo
Ravasco, sem qualquer prova, por um assassinato que jamais cometera. Só
no Reino conseguiu provar a sua inocência.
......Assim um homem de tão
densa, estatura moral, de vida dedicada e irrepreensível, que era
admirado por reis e rainhas, príncipes e princesas, ministros, papas
e cardeais, caíra nas mãos inábeis do governador de
precários princípios, por mais uma conspiração
tramada no palácio. Isto trouxe a Vieira, já muito doente,
grande inquietação e desgosto.
......8. Uma vida épica, cinematográfica.
......A vida de Vieira foi
uma grande e agitada epopéia. As conspirações, ódios,
intrigas e injúrias que sofreu são matéria vasta para
uma grande obra cinematográfica, com sucesso garantido. Um enredo
com tanta ação, tão variada atuação,
em tão variados espaços e contextos, num século de
tantas guerras e invasões que abalaram o Brasil, teriam certamente
grande interesse da sociedade atual.
......Se juntarmos a isto
os seus escritos e seus retumbantes Sermões, uma obra das dimensões
que aqui propomos, teria grande interesse social, desde que o autor saiba
captar o espírito do tempo e as forças que impulsionaram a
ação de Vieira, o “Imperador da Língua
Portuguesa” e o príncipe dos oradores
e o Defensor Perpétuo do Brasil.
......Mas é preciso
encontrar primeiro a alma de Vieira e entrar em sintonia com seu espírito
para além da letra que o deve refletir. Após sofrer as injúrias
e maus tratos da Inquisição, assim se manifesta:
............“Antes quero
viver afrontado na Pátria, entre os ódios dos naturais, que
ir buscar ............em outras melhores partes
do Mundo a honra, que sei me fazem por lá os estranhos.”
(Carta ao duque de Cadaval - 09.01.1668)